underground/noite

 

no submundo eu sou herói

meu cão pastor não gosta de ovelhas

na lareira já é de manhã

na barra negra, já nasce o sol.

 

 

 

 

 

 

farelos

 

acordo acendendo um cigarro

e no travesseiro repasso

os farelos do que me sobrou

da noite anterior.

minha cama me segura

e eu grudo nela

como se fosse ela

a minha tábua de salvação

nessa ressaca cinza.

 

 

 

 

 

 

voz muda

 

gritar por socorro ali

mas a voz não saía

era como uma caneta

que não escrevia

arranhando o papel

como a voz muda

arranha a garganta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

faxina

 

com seu jornal do high society

embrulhei o lixo do meu quarto

o que sobrou do nosso amor

pelos cantos

nas frestas do assoalho

embaixo da cama

 

 

 

 

 

 

o avesso do tropeço

 

não falo nada

nem ajo na calada

anoiteço

e aconteço

 

faço jus

à minha luz

 

o apreço ao permaneço avesso

 

 

 

 

 

 

   alguns segredos do tempo

 

                                                               di  dentro  deste  avião  a  metró

                                                               pole  parou e as nuvens  si  mov

                                                               imentam  pelas  nossas  janelas.

                                                               o   ônibus  ficou vazio, o  motor

                                                               ista  disse   fim  da  linha   e  sai

                                                               u  fora  apagando as  luzes  pard

                                                               as   e  coletivas .  di   dentro  pra

                                                               fora  a  poesia     havia  mi  inv

                                                               adido    algumas  quadras dali

                                                               . desci  as   escadas   devagar   e

                                                               mi  vi  no  espelho  da  cidade. a

                                                               s  ruas  luzes   e  a  gente ,  ali  p

                                                               equenos  animais  e  baratas  a p

                                                               rocura  de  alimentos  e  abrigo .

                                                               uma  rua pára  pra  mim,  e  nela

                                                               entro um  pouco temeroso roçan

                                                               do a cabeça  nas  árvores  sombr

                                                               as  objetos  e   clarões  luminoso

                                                               s.  um cão late  pra  mi  dar cora

                                                               gem. a mulher  mi ama  e eu a a

                                                               mo.  a  criança  mi  purifica  até

                                                               cessar  o  arrepio.  e  a  sensaçã

                                                               o  de  qui    estive   aqui  antes

                                                               nalguns segredos do tempo.

 

 

 

 

 

 

a ilógica coincidência na matéria realidade

 

dentro de instantes

fazer uma nova tentativa

e ver se a coisa ainda anda

no seu caminho, pois aquelas

milhares de milhões de facetas

de uma mesma realidade

poderiam confundir tudo o

que ali si esconde,

assim a mim se apresentando.

 

 

 

 

 

 

uma nova tentativa

 

o fazer constante elimina

o legítimo acaso,

pelo processo interior

de quem está no fazer constante,

pelo ritmo produzido racionalmente

e, pelos espaços prontos

só pro acaso acontecer

não sendo espaço portanto

ao genuíno acaso

à ilógica coincidência.

 

talvez por isso

queria saber sempre a razão das coisas.

a simples racionalização, a conclusão

dos fatos se desenvolvendo

aliviava qualquer tensão ou perigo.

também não interessava capturar

um fragmento de qualquer situação

uma dessas facetas e colocá-la ali

figurando naquele cenário.

mas não. a coisa mesmo já vem

si fazendo. é só questão

de um pouco de paz e ciência.

o momento da energia ficar pronta

e ser o fato, a situação

a matéria realidade.

 

 

 

 

 

 

gente

 

gente não é rebanho

gente é nuvem solta na noite

se fazendo, desfazendo e refazendo

ali mais na frente

 

gente não é massa

gente não é povo

gente não é gado

 

a massa faz o pão

o povo faz a política

o gado faz a religião

 

e gente faz gente

que faz gente que faz gente que faz gente

 

que é como nuvem solta na noite

se fazendo desfazendo e refazendo

ali mais na frente

 

 

 

 

 

 

profissional liberal

 

yé só agir pelo coração

aqui estou eu

duro de novo, e falando

que merda, qui merda, quimeras

 

se eu fico frio

calculando y colando

meu rastro na estrada

meus bolsos se enchem

saio dando duras

em tudo e em todos

e vou recolhendo a grana

são festas intermináveis

nos castelos de moedas de ouro

no reino dos burocratas

 

então acho que tenho direito ao amor

a fortuna midá esse direito

 

yeu amo, amo, amo, amo, amo

 

yé só agir pelo coração

aqui estou eu

duro de novo, e falando

que merda, quimerda, quimeras...

 

 

 

 

 

 

porre

 

eis aqui,

um poeta em frangalhos

com infinitas saudades

de um futuro que pode ter ficado

num trecho difuso

da estrada dos sonhos.

 

o poeta em frangalhos

derrama lágrimas tristes

num travesseiro morto

 

torto porto onde o poeta chora

tentando avivar

com a própria água

o cerne de um tempo

que nem se sabe onde estará.

 

 

 

 

 

 

marpraquê?!!!

 

sob o sol frio e matinal

desse inverno

cortei as minhas unhas

 

deixei espalhadas

no meio fio

 

partículas de mim

 

vão descer na enxurrada

da próxima chuva

as extremas

extremidades

dos meus membros

 

talvez um dia consigam

chegar ao mar

 

 

 

Gilberto de Abreu (Espinosa/MG, 1953). Pintor, ilustrador, desenhista, cenógrafo e poeta. Iniciou sua carreira artística como autodidata na década de 1970. Posteriormente, estudou por alguns meses, como ouvinte, na Escola Guignard, Belo Horizonte, onde vive. Criou a I Feira de Arte Mineira. Em paralelo às artes plásticas, ilustrou capas e encartes de vários discos, entre eles Diamond land, de Toninho Horta; Via láctea, de Lô Borges, Estrela da canção, de Angela Maria. Trabalhou como cenógrafo em peças teatrais e apresentou pinturas nos filmes de longa metragem: Dança dos bonecos, de Helvécio Ratton e Um filme 100% brasileiro, de José Sette de Barros. Suas pinturas e trabalhos artísticos já participaram de inúmeras exposições solos e coletivas nas principais galerias de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil e exterior. Durante as últimas décadas, vem publicando diversos álbuns/livros de desenhos, quadrinhos e poemas, destacando-se: Acontece o que a gente teve, O avesso do tropeço e Campo magnético. Mais informações aqui e em seu site oficial, aqui.