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Ensaio dedicado à Márcio-André e Victor Paes, que sempre me dão o que pensar

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"ocupa o rosto

do infante feito ao sopro

do primeiro nome

em sua árvore de meras flamas crepitantes".

Gerardo Mello Mourão

 

 

A edição impressa da revista eletrônica Confraria do Vento é o mais representativo painel do transe estético vivido pela Alta Literatura brasileira nos últimos anos.

Reflito a partir do texto do editor Márcio-André: "Contaminações". O veículo é fonte-ponte contaminante bem mais que 'apanhado' da produção autoral contemporânea: no instante de 'desnorteio' crítico diante da 'atopia' dissoluta e dissolvente do fluxo internético, é preciso extrair das 'catacumbas digitais' o tanto de precioso em retroalimentação no meio virtual. O site literário, a nave-mãe cibernética deve sim ser congelada em periódicos que retenham de maneira volume-livro os picos mais representativos do Oceano-chip que acelera imagética, provoca inteiração, promove intercâmbio online de escritores, mas ainda deve ao suporte 'revista' menor acompanhamento reflexivo.

Confraria do Vento produz efeito de síntese virtuosamente 'precária': é convergência em assíndeto deleuziano. Diz o mestre Deleuze corroborando as "contaminações" benfazejas: "O mundo expresso é feito de relações diferenciais e de singularidades adjacentes. Ele forma precisamente um mundo na medida em que as séries que dependem de cada singularidade convergem com aquela que dependem das outras: é esta convergência que define a "compossibilidade" como regra de uma síntese do mundo (...) A extraordinária noção de compossibilidade se define como um 'continuum'  de singuralidades".

Enquanto os cada vez mais idiotizados cadernos literários dos diários nacionais de entretenimento e desinformação se restrigem a elaboração comercial dum cânone feito por encomenda ao gosto comum, cabe a sites como a Confraria, Cronópios e Germina essa intensificação do rastreamento do que surge em invenção, experimento, adensamento conteudal e novas linguagens formais, naquilo que comungamos ser Literatura Brasileira.  Confraria enfecha em cadinho desdobrável o 'que-não-se-dá-conta': escritura rizomática de um beatnik, concretista, de um pantaneiro, de pós-concretistas, poetas literalmente periféricos, pensadores do pós-urbano, acadêmicos e regurgitofágicos. Heteróclito anti-ortodoxo: reunir Augusto de Campos, Manoel de Barros e Ferreira Gullar é desdenhar de qualquer patrulhamento, igrejinha ideológica e tratamento estanque do subjetivo alçado à patrimônio imagético-composicional de nosso sincretismo intelectual: os três compõem a Santíssima Trindade, coroando miríade de multiplicidades encadeantes. Convergir em Confraria foi denúncia da estreiteza de supostos antípodas e subversão de nosso vezo excludente: Augusto pode, Gullar não pode e vice-versos. Criar é resistir: desdenhar fórmulas em compotas ou tarjas indicativo-classificatórias  é serviço à disseminação contaminatória. Não se impõe aqui um estatuto conceitual restrito: a Revista identifica-se com 'inclusão não-combinatória' por relevância e poder 'incomodatício' de seus colaboradores. Não se trata de compêndio crítico, sua própria disposição resolutiva é um atentado ao absolutismo das antologias-sarcófagos, que engessam discursos sem possibilidade ao interpretante, senão a de viés catalogatório. Sobre crítica estrita, Confraria reproduz inéditos de nossos dois maiores pensadores literários: Silviano Santiago e Nelson de Oliveira, que têm em comum seriedade de tratamento, sobriedade e não-exposição hipermidiática. Nelson é, especialmente, um dos cérebros do contemporâneo.

A inserção desses dois luminares já identifica o que ele representam: urgência de um radar amplo, não-fossilizado da escritura pós-advento-internético. Nós que fazemos Alta Literatura somos tão poucos que estamos 'condenados' à generosidade sem compadrio, nepotismo e favorecimento: essas pragas sociais transplantadas ao ambiente artístico. Devemos ter uma crítica com densidade de Marilena Chauí e 'praxis' despudorada de Dercy Gonçalves: o jornalismo literário morreu ou é vendido (dá na mesma) e quem faz escritura de invenção deve resistir em qualquer frente, sem medo de porra nenhuma: toda literatura é comercializável, mas a comercial é que antecede funcionalidade, eficiência mercadológica e feitio de fruição burguesa: enredamento de significação aplicada e linearidade frásica. Destaco um título que é orgasmo-insight: "A LITERATURA É A COISA MAIS INTERESSANTE DO MUNDO, TALVEZ MAIS INTERESSANTE QUE O MUNDO". Derrida citado pela professora Elizabeth Muylaert Duque Estrada: "Sem o poder e a vontade de dizer a verdade, ela é o talvez do talvez de tudo o que há no mundo, e por isso talvez seja, como quer Derrida, a coisa mais interessante do mundo. Literatura é o que 'interessa' ao mundo: devemos sujarmo-nos de plurisignificados na intensificação poundiana dos signos mais e mais atomizantes: contaminarmos o discurso pela oratória pulsante do silêncio que se extravia em palavra re-significada. O texto literário é a intoxicação da Doxa: excrecência não-valorativa hierarquicamente: desprezo da utilidade: não existe Literatura, tão somente subversivos inventores. Perversidade do escritor (seu prazer de escrever não tem função), dupla e tripla perversidade do crítico e do seu leitor, até o infinito".

Barthes explica. Compromisso com infinito da expressão: embriões consentidamente inutilizáveis na confecção duma constelação embrionária refletindo o Vazio do Nada: "A única tradição poética é a voz que sai da moita em chamas. O resto é lixo e vai ser consumido". (Allen Ginsberg). Onanista, sodomita, pervertida, a escritura não mais depende de comoditties, da cotação do café modernista (Oswald), do futurismo automobilístico: o mundo da linguagem e precisamente da escritura é transe esquizóide a partir do Vale do Silício, com imenso e perpétuo conflito de paranóias: lançamos textos-pontes, moldando rede de resistência ao utilitário. Hermetismo, inentiligibilidade, paradoxalidade: a escritura embaraça os sentidos, distingue Mercado Editorial (braço 'embalado' do Capitalismo fatídico-triunfante) e escritura destoante, linguagem hiper-inventiva: fóton-texto, acelerador de signos, sintagmas, miscigenador de idioletos. "Escrever no caminho da verdade até aqui irreconhecível da própria sinceridade, beirar o desconhecido, incluindo a evitável beleza das ruínas...". (Allen Ginsberg); o beat traduzido originalmente para Confraria do Vento por Hugo Lagone é um dos eixos a partir dos quais sigo as "Contaminações" de Márcio-André: ler é deixar-se contaminar em gozo desdobrado: catilinária neural, androginia semiológica sob a égide dum Tirésias além de Homero e Borges: cego olhar para dentro, forjando imagética projetada ao Caosmo de virtualidades não-acontecentes.

O texto inventivo é essa não-acontecência quintessencial: a literatura torna-se virtuosa deficiência da memória e da razão. Poeta é aquele que não está no gibi: pretender ser pauta de Daniel Piza, José Castello ou Edney Silvestre é definitivamente não pretender escritura, é buscar bigbrodização da poética: um dado impressionante é o temor: não se dá nomes: eu nomeio cancros como quem comete morticínio bem-sucedidos: Maria Carolina de Jesus, José Mauro de Vasconcellos como quem barateia: Lya Luft, Ferréz, Paulo Lins, Mirisola ou Hatoum: são cânones da Companhia das Índias das Letras ou da compadecida Heloisa Buarque de Holanda: LITERATURA É DO CARALHO OU NÃO É: É FODA, PRENSA NO ESTABELECIDO-CONSERVADO-CONSENTIDO. Paternalismo e populismo compadecido não dão futuro: faturam alto no compadrio Zona-Sul envergonhado.

Literatura não tem zona: tematizar é botar grife. A maior transgressão à sociedade de mercado é criar: linguagem bárbara, enviezada, tonitroante, de Lobo Antunes à David Lynch, devemos des-normatizar o pastoreio de cordeiros do nexo. "Esta experiência de contaminação, fantástica, mas real, e por isso ainda mais fantástica, fez-me perceber, entre outras coisas, que somos seres essencialmente em contaminação. A palavra contaminação vem do latim 'contaminatio', que, por sua vez, é uma variação de 'contamino', que designava a prática da contaminação, isto é, o ato de fundir em um só, várias comédias ou contos. Por extensão, veio a sugerir o sentido de 'entrar em contato' e, só posteriormente, o sentido pejorativo de "sujar, infectar, manchar". Márcio-André corresponde ao entendimento que Foucault fazia da escritura: "A folha de papel, para mim, talvez seja como os corpos dos outros. Com minha escrita, eu percorro o corpo do outro, faço incisões nele; me vejo na situação do anatomista que faz uma autópsia. A escritura, esse coração venenoso das coisas e dos homens — é isso, no fundo, o que eu sempre procurei trazer à tona". Sujar-se de universo, transgredir a Lei pela linguagem como sugere Raul Antelo a partir de Lacan: "vislumbrar uma saída a introduzir, por cima da moral, uma erótica, uma linguagem de ruptura imanente". Confraria do Vento é algo que deita raízes além da espetacularização da Literatura em 'e-ventos': factóides, excesso de exposição, flips, flops; um encontro onde um verso de Ivo Barros me remete à João Cabral de Mello Neto: "A esperança é o desespero de quem espera", diz Ivo ao que remeto: "Fazer o que seja é inútil. Não fazer nada é inútil. Mas entre fazer e não fazer mais vale o inútil do fazer". Esse poema cabralino é meu dístico: escrever sem preocupar-se nem com publicação: satisfazer-me pela tessitura das palavras, seu veludo ou pano acre, o tesão da Alma que transcorre no intuído e por já existente: a fenomenologia poética em decalque ou segunda pele dos objetos e sua factualidade sujeitadas ao termo Vida, esta encerrada no simulacro que tolda e submete epifanias abortadas, pondo travo no transporte miraculoso nos "longos ramos da suposição" (Ivo Barroso).

Suplantamos gêneros: instauramos a "proesia"; a prosa também não mais conduz a 'alguma coisa' como 'signo-para', "mas foge do automatismo, a prosa começa a ver, sentir , ouvir, pensar, apalpar as palavras, então as palavras começam a se transformar em signos-de" (Décio Pignatari). Tentar exprimir é fadado pousar na numenescente superfície de estrelas.

"Não é a diversidade, a fantasia e a anarquia dos experimentos que fazem da literatura um mundo disperso. É preciso exprimir-se de outra maneira, e dizer: a experiência da literatura é ela mesma experimento de dispersão, é a aproximação do que escapa à unidade, experiência do que é sem entendimento, sem acordo, sem direito — o erro e o fora, o inacessível e o irregular".

Blanchot é supremo guia: "Sabemos que só escrevemos quando o salto foi dado, mas para dá-lo é preciso primeiro escrever, escrever sem fim, escrever a partir do infinito (...) o que Éluard pretendia ser 'poesia ininterrupta'".

Orgasmos múltiplos! Deus é Joyce e Mallarmé o seu profeta, proclamamos nós os masturbadores férteis da palavra: instaurada seja a "curtição" da linguagem. Elaborar ao máximo esse exercício de inacessibilidade: não é mais possível um Balzac inventariando coisas, hábitos, personagens: o ritmo de vídeo-clipe, a construção dodecafônica, a centrífuga do entendimento hipermoderno nos impossibilita duração-constante: tencionamos estar no fluxo através dessa literatura do estilhaço. "Porque nos encerrámos assim — não paravam de bramir todas as fechaduras com suas portas e suas chaves — nós, que somos tudo o que te quis encerrar?", elucidativo trecho de "As mães no estábulo", de Artaud, traduzido por Nuno Rocha para Confraria: por que atemorizamos diante da literatura ordinária ganhando estatuto de digerível, palatável e menos elaborada para o senso comum?

O que se exige de um artista, em especial, escritor, é seriedade: a Confraria do Vento delimita o que seja Alta Literatura: essa delimitação é insuperável entre fogo-fátuo e permanência. O que aprofunda, permanece. Ouço Pound em sua jaula: "Como o artista falso de seriedade constitui o tipo mais comum, existindo em número muito maior que o sério, e levando, o falso artista, uma vantagem temporária e aparente ao obter as recompensas que caberiam ao verdadeiro, é natural que o artista não-sério faça todo o possível por confundir as linhas de demarcação". Propósito é nítido: as malhas do mercado não digerem estilhaço nético: a escritura deve deixar crítica e consumo 'sem-dar-conta' do poder criativo revolucionário conteudal e formalmente.

Antonio Candido sempre denunciou frivolidade e bacharelismo medíocre em nossas revistas e periódicos literários: a burguesia desconfia e sabota qualquer arte elaborada, mas é inevitável que se imponha 'reposição de estoque' e o experimento sobreviva: Confraria do Vento é expoente dessa literatura 'glocalizada', feito apanhador de fragmento de  um vulcão pós-erupto: as regionalidades, tribos, peculiaridades técnico-estruturais escoam para esse Oceano-Mar da escritura.

Ler Boaventura de Souza Santos, Baudrilhard, um conto sofisticadíssimo do também editor Victor Paes me fazem ter Fé, como os personagens de Tchekhov em "A Gaivota": fazer Arte é saber carregar a Cruz e ter Fé.

Recorro ao poema de Arnaut Daniel, traduzido brilhantemente por Haroldo de Campos, o Haroldo que nos protege: "Eu sou Arnaut que acumula brisa / E caça lebre com boi / E nada contra a maré". Repriso primeiro editorial da Confraria: "Confraria é com-fluir de idéias opostas, sem buscar sínteses. Não procuramos respostas, preferimos a dúvida. Preferimos as diferenças ao consenso que tudo dilui (...) Na era das egogaláxias, dos gênios encastelados em suas verdades, Confraria quer as falsas verdades e as mentiras autênticas".

Sinto-me francamente honrado em participar dessa Confraria, como quem diz ter um lado dessa verdade inaudita e dúbia... brisa, vento noroeste aqui desse porto de Elizabeth Bishop e Vicente de Carvalho, meu pedaço de Atlântico onde vago e velo.

 

 

 

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A revista: Márcio-André, Ronaldo Ferrito e Victor Paes (org.). Confraria do

Vento, 140 págs., R$35,00, pode ser adquirida clicando aqui.

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março, 2008

 

 

 

 

 

Flávio Viegas Amoreira (Santos-SP, 1965). Escritor, crítico literário e jornalista. Publicou cinco livros pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro: Maralto (2002, poesia); A biblioteca submergida (2003, poesia); Contogramas (2004, contos); Escorbuto, cantos da costa (2005, poesia) e Edoardo, o ele de nós (2007, romance). Publicou, ainda, Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais, de poesia, editado pelo selo experimental Dulcinéia Catadora e Sampoema, pelo Atêlie Acaia, ambos de São Paulo.  Considerado um dos mais inovadores autores de vanguarda brasileiro, foi incluído na denominada Geração 00,  grupo de escritores que se destacaram na primeira década do século e que terá reunido suas obras numa antologia organizada pelo crítico literário Nelson de Oliveira, para a Editora Boitempo, em 2010. Colaborador de diversos jornais, revistas literárias e sites, seus livros foram adotados por universidades norte-americanas e européias, tendo obras traduzidas para o inglês pelo professor e "brasilianist" Charles Perrone, da Florida of University e comentada pelo acadêmico português Luis Serguilha. Dramaturgo, estreou em junho de 2009 o monólogo Clarice Lispector: roteiro do insondável e prepara-se para lançar dois novos livros: Santiago além de João, sobre a obra do cineasta João Moreira Salles e O vazio refletido na luz do nada, onde implode a noção de gêneros, como prosa e poesia. Ativista cultural e libertário, o autor participa de vários movimentos pela Cultura e pelos direitos homossexuais. Já foi musicado pelo compositor Gilberto Mendes, tem parcerias com artistas plásticos e liderou 2 movimentos literários: "A literatura do Estilhaço" e "Transmodernidade". Recentemente, causou enorme polêmica ao ser entrevistado no programa "Provocações", de Antonio Abujamra. Historiador, luta pelo resgate das tradições de vanguarda do Litoral Paulista e nos meios iconoclastas de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2009, lança No Vinho, o Verso, de poesia, com gravuras de Paulo Von Poser e coordenação de Cláudio Vasquez, impressor de Tomie Ohtake.
 
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