PORQUE DELAS É O REINO DOS CÉUS

 

 

"He ain't heavy, he's my brother".

The Hollies

 

 

Para meu irmão Marcos, porque sempre esteve lá.

 

 

         É estranho vê-Lo sorrindo agora, quase trinta anos depois. Mas o sorriso é o mesmo, não fossem as rugas e alguns cabelos brancos, eu poderia jurar que Ele ainda é o mesmo menino. Aproxima-se sem jeito, ainda rindo meio de lado e o sorriso dEle me desafina, me faz pensar que a minha vida inteira eu poderia ter sido uma pessoa melhor. Que eu poderia ter demonstrado mais o que sentia pelas pessoas e poderia ter feito mais por elas, entretanto, eu não fiz. O caso é que nunca fui mesmo muito bom com esse negócio de sentimentos e emoções. É minha natureza, ou será que esse negócio da natureza é só mais uma das minhas desculpas? Como aquelas que sempre inventei pra não ter assumido o filho que perdi, pra ter abandonado a mulher que amava, ou pra ter comido e descartado tantas outras mulheres pelas madrugadas do mundo? Vai saber.

         Ele, por seu turno, continua sorrindo. Eu tento sorrir de volta, contudo, há anos que desaprendi a sorrir e minha boca é  como uma pintura colada na cara.

         — Paga um doce. — Ele me pede, esfregando as mãos uma na outra, como sempre fez a vida inteira. Eu estou tomando uma cerveja só para me lembrar, porque, afinal de contas, esse bairro pequeno e perdido no subúrbio é a minha memória, o meu lado mais humano, bonito e verdadeiro. Havia cinco anos que eu não vinha aqui. Nesse meu ramo de negócios não podemos ser muito humanos e nem muito verdadeiros. O fato é que, apesar de tudo, meu trabalho me deu muito dinheiro, mas muito dinheiro mesmo. Mas Ele, meu amigo, não se importa com todo o meu dinheiro e continua esperando apenas o seu doce, ainda esfregando as mãos.

         — Ô seu Mariano, o senhor tem caixa de bombom aí? — Pergunto ao dono do bar.

         — Tenho.

         — Faz um favor, então, dá uma aqui pro meu amigo.

         O dono do bar continua o mesmo desde que tínhamos oito ou dez anos. Tudo aqui parece continuar o mesmo. As pessoas envelheceram, mas não mudaram o olhar e nem o sorriso. As casas mudaram de cor, contudo, conservaram o mesmo cheiro... o mesmo som. As ruas perderam o  paralelepípedo e ganharam um asfalto novo e bonito. com duas faixas amarelas pintadas no meio, no entanto. ainda são as mesmas ruas onde jogávamos bola com gols feitos de chinelo ou de pedra.

         — Posso me sentar aqui? — Ele pergunta com a caixa de bombom nas mãos, sorrindo ainda mais que antes.

         — Claro. — Respondo e então Ele se senta ao meu lado, no chão da porta de entrada do bar.

         — Desse jeito, vocês vão me fechar toda a porta e aí como é que os fregueses vão entrar? — Grita o seu Mariano de trás do balcão. Os pêlos do meu braço se arrepiam. Como é que pode? É a mesma frase que ele gritava pra gente trinta anos atrás, quando nos sentávamos ali na porta, toda a molecada, depois do futebol, pra tomar um refrigerante qualquer em copos descartáveis que ele nos dava pra não ter que lavar tantos copos depois.

         — Esquenta não, Seu Mariano. Eu dou uma caixinha gorda pro senhor depois. — Falo e ficamos os dois sentados ali, lado a lado, em silêncio, olhando a rua. Até que Ele abre um dos bombons e diz:

         — Esse é o que eu mais gosto.

         — Do que é?

         — De chocolate, ora.

         — Eu sei, mas ele não tem outro sabor, banana por exemplo?

         — Não sei.

         — Deixa eu ver a embalagem. — Ele me entrega o papel que envolvia o bombom. Crocante com recheio de creme de leite.

         Eu peço mais uma cerveja e reforço para o seu Mariano a idéia de que ele tem que pegar uma cerveja lá do fundo, porque elas é que são sempre mais geladas.

         — Tá tudo igual. — Ele grita de trás do balcão. Sempre teimoso e mal-humorado esse Seu Mariano. Há cinqüenta anos que vende a mesma cerveja morna.

         — Esse carro bonito é seu? Ele me pergunta com os dentes ainda cheios de chocolate, enquanto aponta para o meu carro preto, conversível e importado, com rodas de liga-leve, direção hidráulica, trio elétrico e sistema de freios ABS.

         — É sim, gostou?

         — É bonitão.

         Há trinta anos foi também um carro que mudou a nossa história. Tenho que pedir licença agora, pois o que vou contar não é algo de que me orgulho e também não é uma coisa lá muito bonita. Se quiser abandonar a história ainda é tempo. Se não, creio que o que devemos fazer é nos lembrar dos sapatos de plataforma, dos cabelos black power, das calças boca de sino, do senhor Emiliano Garrastazu Médici e de tudo o mais que compunha o cenário dos anos setenta.

         Não é necessário repetir que éramos pobres, entretanto, eu era o mais pobre de todos. Sempre descalço, sempre poupando o mesmo velho conga rasgado e vermelho pra escola. Filho de mãe solteira, empregada doméstica. Não era fácil suportar a tiração de sarro dos outros moleques. Ao contrário do que pregam, as crianças nem sempre são boas e inocentes, há muita maldade entre meninos. Mas eu não me deixava abater, porque era forte e despeitado, quatrocentas lutas e quatrocentas vitórias, de modo que eu era o líder da nossa turma, mas não era um líder bom e nem piedoso. Este mesmo rapaz que está aqui sentado ao meu lado agora, comendo inocentemente seus bombons, foi um dos que mais sofreu nas minhas mãos.Uma das diversões da nossa turma, talvez a maior delas, era persegui-lo pelo bairro, jogando pedras, paus, lixo, ratos mortos e tudo o mais que encontrávamos em cima dEle. Eu sempre na frente. Sempre liderando. Sempre tendo que me sobressair e mostrar a minha força, a minha coragem, a minha maldade. Não tinha mesmo piedade, se tivesse um revólver naquela época, talvez tivesse dado um tiro na cabeça dEle sem pensar duas vezes. Só pra mostrar o quanto eu era homem, o quanto eu era forte, o quanto eu era gigantesco, potente, maior, melhor, o quanto eu era inquestionavelmente um líder.

Todavia, um dia uma coisa aconteceu. É difícil contar isso com ele aqui ao meu lado, sorrindo e desembrulhando seus bombons, mas vou contar de qualquer forma. Mais um dia, como sempre, nós o estávamos perseguindo. Eu ia adiante dos outros, como de costume, jogando sobre ele tudo o que encontrava pela frente. Ele era tudo o que eu mais odiava em mim mesmo, ele era a representação física da fraqueza, e eu não podia deixar espaço para a fraqueza, nem uma brechinha sequer. Naquele dia, os outros desistiram cedo da perseguição, porque alguém havia acertado uma pedrada, ou uma paulada, ou coisa que o valha bem na cabeça dele e agora ela, a cabeça, sangrava em abundância e ele chorava, mas tinha que continuar correndo, porque eu estava atrás com toda a minha fúria. Era tarde já e eu era o único a continuar na perseguição que já devia durar mais de três horas. Lembro que saímos do bairro, atravessamos a linha do trem, a avenida onde os ônibus passavam, entramos no outro bairro, onde moravam outros meninos, nossos maiores inimigos, mas não paramos de correr. Então, de repente, na adrenalina da perseguição, atravessamos uma rua sem olhar pra lado algum. Só ouvi o barulho da buzina, e do carro derrapando, e então senti o baque nas minhas pernas e voei pelos ares. O carro desapareceu na rua escura. Não fez qualquer menção de parar. Minha testa agora também sangrava e minha perna devia estar quebrada, porque eu não conseguia movê-la um centímetro sequer.

Nem nós os havíamos percebido, nem eles nos haviam percebido, entretanto, com o barulho da batida, os meninos do outro bairro, que estavam jogando futebol justo ali, na esquina da próxima rua, pararam com a bola e foram ver o que tinha acontecido. Era muita sorte pra eles. Eu ali, no meio do bairro deles, caído no chão e com a perna quebrada. Nem em seus maiores delírios eles imaginavam um milagre desses. Nem em suas orações mais fervorosas eles tinham coragem de pedir a Deus que realizasse tamanho milagre, e, no entanto, era eu mesmo lá. Eles foram se aproximando devagar,  feito hienas, feito ratos, feito vermes. Eu não sentia medo, há poucos dias tinha assistido ao filme Warriors, Guerreiros da Noite na televisão e estava pronto para morrer representando minha gangue. Não fechei os olhos e nem tremi, e num determinado momento eles pararam, ficaram todos quietos no meio da rua. Eu não entendi. Esperava a surra, a depredação, o linchamento, a morte e nada disso vinha. Então, olhei pra trás e lá estava ele, com a testa sangrando, mas imenso, com um pedaço de pau enorme na mão. Depois de alguns minutos um dos meninos gritou:

— Ih! Olha lá! Agora o Doidinho pirou de vez. Vai enfrentar nós todos só com aquele pedaço de pau na mão.

Ele apenas levantou o pedaço de pau acima da cabeça e falou com uma voz grossa e calma, como se tivesse trinta e não dez ou doze anos.

— Vem pra você ver o que te acontece.

O menino fez uma cara de espanto, não, de espanto não, de medo mesmo e se enfiou entre os outros. Aos poucos, como um exército em retirada, eles foram se dispersando. Primeiro as fileiras de trás, depois as do meio e, por último, as da frente. Um dos derradeiros garotos ainda gritou:

— Vocês estão fodidos quando a gente pegar vocês, seus filhos da puta.

Ele fez mais uma ameaça com o pedaço de pau e o menino saiu correndo em disparada. Então Ele se abaixou e me pegou por baixo dos braços, de frente e me sorriu esse mesmo sorriso de agora e... por Deus... eu não pude entender mais nada e chorei... chorei... chorei... como nunca tinha chorado nem na frente do espelho e muito menos na frente de quem quer que fosse.

— Pára com isso Marquinhos, você é o líder! — Ele disse e então me jogou nas costas com uma facilidade e com uma força que eu nunca imaginei que ele tivesse e me carregou de volta para a nossa Vila, caminhando por mais de duas horas e doze quarteirões.

Agora ele sorri de novo comendo o último bombom e me pergunta enquanto eu limpo com o dedo a baba que escorre pelo canto da boca.

— Posso pedir um guaraná?

— Claro. —  Eu respondo.

Ainda sorrindo ele bebe todo o guaraná, reclamando que está doendo a testa porque o refrigerante é muito gelado.

— Então bebe devagar. —  Eu falo, só que, em vez de beber devagar, o que ele faz é virar todo o refrigerante na boca de uma vez. Depois exclama com a mão na testa.

— Ai!

Vendo que Ele não tem jeito mesmo, eu esboço também um sorriso com minha boca pintada na face e balanço a cabeça para os lados.

— Posso pedir uma última coisa. — Ele me diz.

— Vai lá, o que é?

Ele aponta para o carro meio sem jeito, sempre sorrindo.

— Que foi, quer dar uma volta? — Eu pergunto.

Ele balança a cabeça indicando que sim. Então eu pago a conta com uma nota de cinqüenta reais e mando o Seu Mariano ficar com o troco. Ele sorri, o Seu Mariano, como sempre sorri quando vê dinheiro e me diz pra voltar mais vezes, não sumir assim. Eu digo que volto sim e abro a porta do carro e mando Ele, não o seu Mariano mas meu amigo, entrar. Em seguida coloco o cinto de segurança n'Ele, em mim também, ligo o aparelho de som para ouvir o bom e velho Elvis Presley... Like a bridge over troubled water... e dou a partida. Ele ensaia uma pequena batucada sorridente no painel, ao mesmo tempo em que nós saímos pelas ruas do bairro em baixíssima velocidade.

Antes de alcançarmos a primeira esquina ele aponta para o alto.

— Que foi, quer que eu abaixe a capota? — Pergunto e ele mais uma vez balança a cabeça indicando que sim. Então aperto um botão e a capota aos poucos vai se guardando feito uma sanfona lá atrás. Ele está em êxtase e faz um dia lindo lá fora, como há muito tempo eu não via. Atrás do céu azul, espelho de tudo, devia estar o universo e, atrás do universo, um sorriso nos lábios de Deus... um sorriso nos lábios de Deus...
 

 

 
 
 

PIANISTA BOXEADOR

 

 

         Sempre gostei de rosas vermelhas!

         Difícil é te explicar porque foi que eu resolvi escrever depois de tanto tempo. Tudo parece tão absurdo que eu não consigo sequer imaginar um meio de começar a te contar. Talvez pelo início seja o melhor meio, mas é difícil também saber onde e quando tudo se iniciou. Vou começar então por onde a gente terminou. Naquela manhã chuvosa de domingo em que te perdi pra sempre. Talvez tudo tenha começado exatamente naquele momento, quando comecei a descer as escadas pra fugir do teu quarto e continuei a descê-las, mesmo quando cheguei ao porão. E continuei a descê-las, mesmo quando não havia mais escadas e eu arranquei as lajotas com as mãos e continuei a cavar e a descer até me embrenhar entre os vermes, longe das flores. Você sabe, sempre gostei de rosas vermelhas, embora aqui embaixo nunca tenha havido muitas delas.

         Quando saí da sua casa naquele dia percebi que não havia mais jeito, que não havia mais um meio de voltar àquele passado onde havíamos sido felizes, porque eu, sempre eu, tinha destruído tudo outra vez e, dessa vez, eu o sentia, era pra sempre. Então fugi. Abandonei os ringues, as luvas vermelhas, o cinturão de campeão brasileiro de boxe, categoria peso pesado. Então fugi e abandonei os pequenos palcos e o meu piano branco, e quebrei meus discos de vinil forte, e decidi que rolaria no estrume até onde minha alma pudesse suportar.

         Voltei pro crime. Você sabe que eu tenho habilidade pra isso. Retornei também ao pó que sempre me fez subir, mas que também já me passou rasteiras imensas. Estava sujo outra vez, mais sujo que nunca. Entretanto, no panorama negro da noite, entre cartas de baralho, carreiras, copos sujos de vodka, de conhaque e homens que atiravam com a mesma espontaneidade com que sorriam, muitas vezes me vinha nítida aos olhos a tua figura. Então eu me levantava no meio do jogo e tudo, e corria pra tentar tocar teus cabelos sempre amarelos e soltos, mas, quando chegava perto e tocava, só havia a noite, quente e densa. Aí eu voltava pra mesa e sorria  e meus companheiros, todos tão subterrâneos e brutos, alguns até mais subterrâneos e brutos que eu, aconselhavam-me para que parasse com o pó e deixasse um pouco o conhaque e a vodka de lado. Mas eles não entendiam que eu estava decidido. Não entendiam que nós havíamos sido crianças juntos. Você se lembra de quando me emprestava sua bicicleta verde e, à noite, brincávamos de pega-pega até nossas mães nos buscarem furiosas? Às vezes você ia na bicicleta e eu ia a pé, outras vezes eu ia na bicicleta e você ia a pé.  As mães ainda existiam naquela época. Mas agora não há mais mães. Agora está tudo fora de lugar e eu apunhalei meu anjo, esqueci de Jesus, da nossa professora de catecismo. TE PERDI PRA SEMPRE!

 

*

 

         Arquitetar crimes não é como compor canções, ou estudar um adversário no quadrilátero. Arquitetar crimes tem segredos e idiossincrasias específicas. Eu elaborei assaltos perfeitos. Transportei drogas em lugares que ninguém jamais poderia imaginar. Mas um dia falhei. Lembra do grande roubo à agência central do Banco do Brasil? Fui ferido. Na barriga. Quase morri, mas os anjos do mal que comigo andavam conseguiram um médico que aceitou me operar, mesmo num barraco de madeira podre, onde a noite entrava por todos os lados, entre as frestas. Sobrevivi. Ganhei uma cicatriz imensa na barriga e algumas dezenas de rugas em cantos do rosto, onde a barba não pode encobrir.

         Estava novamente de pé, na noite, e novamente o pó me acolheu e me levantou. Por pura maldade, atirei num cachorro branco que latia à noite na Rua Guaianases. Atirei também em alguns dos que se esforçaram pra me salvar. Não pelo egoísmo de ficar com todo o dinheiro, mas pelo simples gosto da traição, da mais vil traição. Quando era pequeno, também fiz desaparecer a aliança do teu padrasto, isso mesmo, fui eu quem roubou a aliança, e você apanhou até que na sua pele brotasse imensos vergões negros, feito lagartas. Você sabe... sempre gostei de rosas vermelhas.

         Mas vivemos sob as chagas de Cristo e às vezes, sempre na noite, eu chorava. Chorava pela loucura e o mal que usavam meu corpo, minha mente, meus braços. Chorava pelo pai que nunca tive. Chorava pelo nosso bebê que eu fiz você arrancar da barriga. Chorava por todos os crimes que havia cometido e por todos que sabia que ainda iria cometer. Chorava por ter ferido você, o anjo que perdi pra sempre. Longe de você, das luvas, das teclas, toda energia boa ou má que existia em mim e que poderia se transformar num beijo terno, num bom cruzado no ringue ou numa canção bonita se tornava atos vis e criminosos.

            Mas vivemos sob as chagas de Cristo e um dia, quando eu me sentia superior e imortal, senti brotar na minha barriga, ao lado da cicatriz da operação, um pequeno nódulo, talvez o primeiro sinal de uma inflamação. A princípio não dei atenção alguma, apenas continuei, na noite. Só que, quando amanheceu, eu vi que o nódulo havia explodido e que de dentro dele, além do pus, saía um pequeno pedaço de tecido vermelho. Tinha textura delicada, o tecido, parecia camurça, mas, por incrível que pareça, era ainda mais macio que a mais macia das camurças.

         Ó Deus, por que não fugimos pro meio do mato enquanto ainda era tempo? Por que não fizemos uma casinha simples, no pé de uma serra, onde nas janelas houvesse cortinas brancas, como se todas elas, as janelas, estivessem usando vestidos de noiva? Por quê?

         Agora é tarde, porque aquele pequeno pedaço de tecido que brotou na minha barriga, aos poucos, foi crescendo. E até que era bonito, mas o pus continuava a correr o tempo todo junto a ele e, Deus, como doía. Não soube muito bem o que fazer. Eu nunca soube muito bem o que fazer. Apenas ficava lá, suportando a dor e acariciando com a pontinha dos dedos aquele vermelho tão pequeno e delicado.

         Vermelho que crescia e desabrochava e parecia sugar todas as minhas forças, uma vez que eu me sentia fraco e minha pele, e meus olhos, estavam anêmicos, amarelos. Todavia, apesar da dor e do cansaço, eu estava feliz, porque do meio de todo aquele pus e daquela ferida, que agora era enorme, surgia algo bonito.

         Quer saber o que era aquele pedaço tão singelo de vermelho? Eu tive que esperar mais de uma dezena de dias pra que ele se mostrasse inteiro. Você não vai acreditar, eu mesmo não acreditaria se uma outra pessoa me dissesse. Apesar de hoje isso me parecer tão normal quanto uma espinha, naquele tempo eu custei muito a acreditar. Cheguei a pensar que estava enlouquecendo, ou que o pó já me dava alucinações. É difícil pra qualquer um ver brotar na sua barriga (violento, vermelho, macio, ereto) um botão de rosa. Isso mesmo, você sabe... sempre gostei de rosas vermelhas!

         Só que a coisa não ficou num botão apenas. Dia após dia, sugavam-me as forças, os galhos, os espinhos, as flores de toda uma roseira. Meus olhos, eu via no espelho, não tinham mais cor alguma. Cada espinho, da roseira que crescia, que passava pela minha barriga, fazia-me sentir dor como a de um dente arrancado sem anestesia. Mas a roseira era linda, a mais linda que eu já havia visto. Era bom acordar pela manhã e vê-la lá, tão imponente na minha barriga. Difíceis eram as coisas simples, como conseguir comida, ir ao banheiro ou levantar da cama. Eu já tinha perdido trinta quilos. Era bonita, a roseira, mas estava me sugando a vida, e eu sou feio, egoísta e mal. Dar cabo da roseira era preciso, antes que ela desse cabo de mim.

         Preparei minha navalha de cabo de marfim, um pano branco e o álcool indispensável. Manhã de outubro. Abri a navalha. Manhã de outubro. Bebi e fechei os olhos. Manhã de outubro.  Segurei o pezinho da roseira com uma das mãos e com a outra passei-lhe a lâmina... O sangue jorrou e, por Deus,  não existe dor maior no mundo... Apertei o pano forte contra a ferida e tentei me levantar, mas minhas vistas se escureceram e eu achei que tinha morrido.

         Entretanto, acordei e me sentia forte. Continuar a viver era necessário e até que era bom poder viver, e caminhar pelas ruas, e ser livre. Mas minha liberdade, eu ainda não sabia, duraria pouco, pois a chaga da barriga mal cicatrizara e já me brotava outra roseira no braço direito. Novamente repeti o processo da navalha, do marfim, manhã de novembro. Mas aí começou a nascer o vermelho na minha perna. Da perna espalhou-se para a virilha e por mais que eu repita, até hoje, o processo da navalha, das toalhas brancas, sei que não vai adiantar.

         Amanhã é natal. Cinco anos que eu não te vejo.Tenho aqui comigo um revólver. Quando terminar de ler esta carta, procure no jardim da sua casa a rosa que está num vaso de cerâmica branca. O corpo estará um pouco mais distante, na praça em frente à catedral.

         Feliz natal!  Se eu pudesse começar de novo, mudaria tudo.
 
 
 
 

 

 

 

 
 

 

DOR

 

                  

         Há certas coisas que, por mais que a gente tente, nunca consegue entender. Ele, por exemplo, não entendia porque ela tinha que passar por  aquilo. Justo ela, que sempre fora tão boa. Justo ela, que sempre tivera mãos tão delicadas e que cuidava das feridas dos outros com tanta destreza e ainda tocava a flauta branca com aquela ternura só sua. Não dava pra entender por que justo ela tinha que passar por tudo aquilo. Tocou-a na cabeça. Já estava acostumado a não encontrar cabelos ali, onde antes eles eram abundantes. Deixou a mão escorrer sobre o rosto pálido e magro. Ela não acordaria, não sob o efeito da morfina. Definitivamente não entendia por que ela tinha que passar por aquilo. Se pelo menos a coisa tivesse acontecendo com ele. Escritor fracassado, músico esculhambado, pintor de paisagens idiotas, bêbado inveterado. Se pelo menos a coisa tivesse entrado nele,  ou em qualquer outro filho da puta... Há tantos pelo mundo... Mas não, teve que entrar dentro dela, feito uma coruja que se enfia no meio de um bando de andorinhas e insiste em ficar voando junto delas.

Difícil mesmo seria dar a notícia às crianças. Elas sabiam que a mãe andava mal, mas como seria chegar e dizer que ela, a mãe deles, havia morrido? Há apenas um ano e meio ela era tão forte. E há dez anos era a mulher mais bonita do mundo inteiro. Agora, o tumor, a quimio, todo o tratamento, tinham acabado com tudo. Doença do caralho. Era feito um vampiro, a doença, um vampiro jogando xadrez. Beijou-a na boca. Era o melhor beijo que poderia ter, o mais cheio de ternura e das coisas belas que moravam dentro dele. Sentiu a garganta travar. Não queria chorar, não gostava de chorar, homem não chora, porra. Queria mesmo era ter nas mãos algum poder ou algum instrumento musical e mágico que fizesse o tempo parar agora e voltar pra trás, até essa espécie de morte às avessas que é o nascer, ou o estar do outro lado do ventre. Ela ficaria saudável e bonita  de novo. Os cabelos voltariam a nascer em sua cabeça. As crianças encolheriam. Ela ficaria novamente grávida e depois não mais grávida. E depois ficaria grávida outra vez e novamente não grávida. Então eles tirariam as alianças e sairiam da igreja de costas, mas felizes. E depois eles se divertiriam um bocado e então eles se desconheceriam, sem dor, e viveriam suas vidas, até tornarem-se crianças, bebês, fetos, alguma coisa indefinível do outro lado. Mas os ponteiros dos relógios, inexoravelmente, seguiam sempre em frente.

As mãos dela estavam frias. Ainda respirava, mas era devagar, como se não precisasse mais de tanto ar. Queria pedir a ela, mais uma vez, desculpas por todas aquelas bebedeiras, por todos aqueles fracassos, por todas as vezes, até mesmo as minúsculas vezes, em que a havia magoado. Queria pedir desculpas pela vez em que se separaram e por todas as baratas que havia deixado escapar. Queria entender cada detalhe do que ela era, porque ela ainda era, e muito. Os pardais faziam festa na árvore em frente à janela, não sabiam de nada, eram apenas pardais, mas pardais diferentes, porque ela morria.

Sentiu um cheiro acre, estranho, azedo, invadir o quarto. Havia pequenas sombras em todos os cantos de parede e num deles uma aranha tecia humildemente sua teia. Bateram na porta. Ele não respondeu, mas logo em seguida os dois médicos ruivos, irmãos gêmeos, estavam a seu lado. "Ande, descanse um pouco, vá tomar um café, você parece muito cansado". Disseram, como se fossem um só ser. Não queria muito sair dali, mas não tinha mais forças pra argumentar.

Saiu do quarto. Desceu as escadas. Ganhou a rua. Os carros e caminhões soltavam suas fumaças. No meio-fio havia um palito de fósforo, cuja pólvora só havia queimado pela metade. Achou estranho. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. Pequenas gotas da garoa de São Paulo molharam seu rosto. Era carnaval. Não gostava de café. Sabia que quando voltasse ela não estaria mais lá. Mesmo assim continuou caminhando. Era um homem.

 
 
 
 
 
(imagens ©mqlig)
 
 
 

Daniel Lopes. Formado em letras pela UNESP, participa do curso de mestrado em teoria literária na USP. É professor de Literatura e Língua Portuguesa e Espanhola do Colégio Objetivo e da Rede Pública Estadual. Em 2008, lança seu primeiro romance, É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, pela Editora Os Viralata. Edita o blogue Pianista Boxeador21.