©vilda
 
 
 
 
 
 


 

Sinopse: cansada de humilhações nos lares, a cachaça vai à forra. Sem perder a elegância jamais, deixa a sua crítica da ressaca moral pura. Acompanhem:

 

— Ou ela ou eu — disse Germana, toda metida no seu vestidinho de palha, seu Ronaldo Fraga de palha de bananeira.

 

O pobre do cachaceiro ficou passado, perplexo no seu zarolhismo a 45º de graduação alcoólica.

 

Arrastá-lo dos bares era um serviço humanitário tão comum à patroa quanto lavar roupa suja ou discutir a relação envelhecida em barris de estrago.

 

Mas naquele dia tudo seria diferente. Deparou-se logo com a birra da empalhada, que reivindicava, no mínimo, mais gratidão do cachaceiro a quem tanto manguaçara.

 

— Ou ela ou eu — disse de novo, botando fogo pelas ventas.

 

Sem permitir a réplica feminina, dona pinga incendiou mais ainda o ambiente, a Mercearia São Pedro, diga-se, ali no alto da vila Madalena:

 

— Cansei de te derrubar em colo de vagabunda...

 

Embora muito educada, uma fofa, a patroa não suportou  a humilhação:

 

— Você está acabando com a vida desse infeliz... Repare só o farrapo humano que virou.

 

— Ah, minha santa, a graça desse bofe sou eu, Bovary ces't moi. Dou-lhe verve, ânimo, o luxo da coragem, mato-lhe a timidez e os assombros...

 

— Desalmada, destruidora de lares, você acaba com o que sobra desse infeliz...

 

Marquinhos abaixa o portão de ferro.    

 

Germana adora aquele barulho. É música, é Mozart, diz, assanhada. Sabe que o bicho pega e cresce o amor incondicional dos homens por ela. "Viagem ao fim da noite", batizou assim aquele congraçamento entre os machos de boa vontade. Na sua elegância de palha, Germana detesta quando os homens pedem "mais uma". Ela gosta de ser chamada pelo nome, com devoção, olhinho baixo e tudo.

 

E a peleja continuou:

 

— O que acaba com essa criatura é a tua rabugice, a tua carranca, já te viste no espelho quando acordas? Que cabelo é aquele, dona?

 

— Pois saiba que esse desalmado acorda te maldizendo, numa ressaca miserável, sempre como aquele corvo, never more, never more, never more...   

 

— Quando se recompõe volta aos meus caprichos... É um doente por mim, queres devoção maior?

 

— Eu sou a cura...

 

— Tu és mesmo um banho frio, sem alma, bálsamo chinfrim... És tão sólida na vida dele quanto um Sonrisal...

 

— És a ruína desse infeliz...

 

— Apenas não desejo que ele morra cheio de saúde... Já pensou que triste?

 

— Cínica.

 

— Gorda.

 

— Invejosa, enquanto dás a queda eu dou um colo macio e reconfortante...

 

— Se ele erra o prumo de casa é por conta da tua feiúra...

 

— Mas nunca errou o buraco da fechadura...

 

As duas se engalfinham. A mercearia vem abaixo. Marquinhos levanta o portão de ferro. O sol por testemunha de mais uma peleja entre a mulher e a cachaça. Ah, por isso que eu não quero que me faltem essas danadas. Tão passionais, tão iguais, tão donas das nossas quedas e baques.

 

 

 

dezembro, 2007