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Há um chavão evangélico muito ouvido nas casas de detenção que reproduz a cabulosa pregação dos industriários. Diz: "a mente ociosa é a oficina do diabo". É de se estranhar que na mente mais vagal não entre a mínima réstia de um propósito edificante ou que ali o bem não se aloje. Se na mente ociosa só há lugar para o mal, ou o bem é um péssimo posseiro ou no fundo é uma presença indesejável. E como seria capaz de vicejar nos mosteiros e conventos? Eis o mistério.

 

A ideologia sacana da frase é visível. Na origem, deve ter sido proferida por algum atucanado chefete da linha de montagem, incansável ente cegado pela função, incapaz de ver algum proveito no ócio e na contemplação.  Um desses que nas ruas pregam com estridência a paz, o amor, a cordialidade e o bem, mas frustram o homem da paz consigo próprio e duvidam da faculdade para rever seus atos.

 

É certo que o isolamento, tal como quer a falácia burguesa das reclusões criadoras, não concede nenhum benefício destacável para a arte, nem para a vida pessoal, como recomenda os gurus da ilha de Caras. Quem sabe certa dose de concentração no que se está fazendo e algum ânimo para os projetos em que não se necessite do concurso rumoroso de outro sujeito. Sabe-se também que o "conhecimento de si", no fundo, é um conhecimento de um ego ditado de fora. Constitui, afinal, uma norma programática vaga, adaptável a um desprevenido e lacunoso "eu" que se nega a auto-administrar-se. Quem recomenda "conhece-te a ti mesmo" não se reconhece nem respeita a faculdade de o outro livremente se ignorar. A viagem a si a que me refiro não se faz com pretensões epistemológicas nem com lemes talhados na consciência de si. Talvez neste exílio quem fala ao sujeito desde a proa seja uma in-consciência rebelde que não teme a ruína nem providencia a glória. 

 

Assim, um cair fora do reino assoberbado do homem ativo e multifuncional, onde tudo, até o pensamento é esforço físico ou reflexo condicionado, talvez seja a saída possível para a mente que, tal qual um censor de internato, se atribui a toda hora a tarefa irritante de denunciar ilusões e desvarios. O iso/lamento radical a que me refiro, decerto proporciona ao homem pelo menos a consciência de tornar-se contrário aos esquemas de dominação e despersonalização intensiva. Falo, portanto, desse grave entre-instante em que após remoer sucessos, frustrações e medos, o indivíduo prepara o seu salto.

 

O homem sozinho é autor. Ainda que conduzido por pensamentos e objeções vindas dos vários mundos onde foi mero figurante ou peça manipulável. E ainda que todas as coisas, livremente apreendidas ou impostas, determinem por um instante parte de suas solitárias cismas, em confinamento ele está construindo algo por sua conta e risco. Enfim, é um autor; antes de ser suspeito, ele suspeita.

 

Quase todos os esforços da comunidade dão-se no sentido de criar mecanismos virtuais, muletas mecânicas e químicas (drogas do êxito) que a aliviem da atração perniciosa da nostalgia e da impotência. No entanto, nesse estado rente às sombras o indivíduo é perfeitamente capaz de ter consciência de seus próprios limites, o que não é pouco.

 

Faz tempo que esse estado de melancolia, vem sendo guindado à condição de estágio patológico mórbido e improdutivo que reduz o indivíduo a um ser vil, hesitante, pobre, claudicante, susceptível, quer dizer, humano. As normas da auto-ajuda proclamam que não se pode mais ser fiel à companhia de nossa torpeza sem que isso nos incapacite a viver em um mundo super-producente. Essa cultura, derivada da cartilha politicamente correta e que reproduz em certos momentos o repúdio trotskista à angústia individual que corrói as macro-construções políticas, tem gerado diversas formas de fascismo e distúrbios massificantes, massificados, massacrantes.

 

Ao homem não é dado mais ficar a sós. Virtualmente acossado, ele tem que estar acompanhado de algo, exceto dele mesmo. Ninguém pode mais tecer ao redor de si uma teia refratária às imposturas do meio. Ao homem não é dado pôr-se ao largo dos modelos programados de vida, do jogral aeróbico cotidiano. Curiosamente as teorias que abordam a emancipação do homem consideram-no somente enquanto peça de um todo, tomam como fato consumado o dogma de que o homem é somente um animal da polis, quer dizer, ente submetido às regras do compartilhamento compulsório sem, no entanto, adverti-lo de sua vida útil enquanto peça de um jogo de interesses financeiramente avaliáveis.

 

Mas não seria naquele outro profundo retiro onde ele se permite uma existência única, inalienável? É possível afirmar que a proibição a esse viver-à-parte-dos-ritos-do-homem-massificado nega ao sujeito suas potencialidades imaginativas, veda-lhe a porta de saída para outros mundos, outras relações críticas de e desde si mesmo e a afirmação de sua persona pelo menos nos mundos que inaugura por sua conta e risco. A vigilância a um só tempo paternalista e misericordiosa destinada ao homem produtivo e urbano, tem-se mostrado inapta para lidar com a melancolia radical, com os acessos críticos, as insurreições momentâneas. Sempre falta algo não suprível pela venturosa mão do Estado.

 

 

Close na dissidência

 

Em um contexto social em que a língua e a cultura não raro são apropriados por uma intenção mercadológica, tráfego de valores fincados na perspectiva do lucro, é possível indicar o recolhimento do homem a suas visões (não confundir com os glamurosos retiros espirituais, "encontro consigo mesmo" e os "passeios com Jesus") como uma autêntica empresa de ruptura. A história sempre tomou o isolamento como apenação, represália, castigo próprio dos que não se enquadram em determinado tipo de conduta socialmente tolerável. Há, no entanto, a segregação voluntária, as fugas silenciosas do ar sufocante da ágora, e aquela inércia radical traduzida como manifestação surda de quem não tem o que festejar. Retorne-se ao bordão citado de que a mente ociosa é a morada do demônio.

 

Ora, o homem em estado de introspecção (Bachelard diria algo como devaneio), silencioso, isolado, nem sempre está maquinando algo, nem sempre está desperto ou disposto a mudar de estado. Nessa viagem, o bem e o mal são paraísos desprezíveis. Quer dizer, ambos não entram no espaço de um espírito que se imagina e que se dispõe a obedecer a seu silêncio. Numa mente envolvida com seus próprios impasses, dificilmente há lugar para a subserviência a esses fetiches do maniqueísmo. O viajante não quer servir nem ser servido. Aliás, ali o caráter utilitário dos gestos e das intenções encontra-se perfeitamente esgarçado, suspenso, adiado. O solitário pode estar fazendo justamente aquilo que geralmente as intensas relações sociais de múltiplo esforço não lhe permitem: pensando.

 

Nesse singular "estado de coisa", ele também pode realizar pequenas conciliações, impensáveis projetos, absurdas reciprocidades. Medo, invenção, mundos inconciliáveis; aí o homem é ousado em sua solidão, revigora a audácia de suas hesitações desconcertantes. Pratica o seu corrosivo desprendimento; é inventivo, sob o álibi de ser nefasto somente a si, como o bêbado. Alimentando, por exemplo, uma desistência, pode até estar contrariando um projeto objetivo alheio às suas possibilidades, mas não alienará suas forças criativas a quem quer que seja. Pelo contrário, no mínimo, estará evitando uma cômoda vassalagem ao hábito. Tudo isso, a meu ver, é também performance.

 

 "Só se veja o cão", diz a idosa senhora. É um paradoxo ver-se no homem só, desarmado, desprevenido, mais força propulsora do que no homem em grupo. Visão assim talvez se justifique pela segurança e eficiência com que o tecido social é rastreado de alto a baixo pela vigilância (pública e privada), ou pela confiança (privada e pública) em que nenhuma ou quase nenhuma idéia disruptiva é mais possível de ser compartilhada com poder de fogo. Mas, afinal, seria tão sólida assim a certeza de que as insatisfações pessoais não põem mais em risco as construções do Estado? Ou que nenhuma inquietação é mais possível de perfurar a teia social sem ser previamente detectada e abortada na origem, em tempo real? O poder de duvidar já não é mais uma arma tão destruidora. Mas parece que temem que o homem taciturno retro-alimente alguma máquina de incentivar desistências, sabotagens, motins e vacilações mortais.

 

Cabe aqui um parêntese para considerar a estratégia camaleônica oficial, copiada do mercado, de se apropriar sutilmente das dissidências para com o mesmo arsenal de linguagem e gestos, aliciar (chantagear?) a intransigência individual para um espetáculo de aparente consenso. Na mesma arena oficial se perfilam de um lado a aquiescência oficial, de leve contrafeita, e do outro o agente indecoroso, até certo ponto aceito. Então, para alívio geral, o gesto daninho, perigoso, contraproducente, poeticamente incorreto, patrocina um lance de mórbida irreverência padronizada.

 

Por tudo isso, a melancolia vista como um procedimento até certo ponto trabalhado, se não imuniza o homem da interferência das idéias trazidas do entorno (algo que não nos cabe assegurar), tem-se mostrado contundente na medida em que todos os rostos se viram para um mesmo movimento coordenado por instruções desconhecidas. Então, por que subtrair o sujeito desse mundo sem recompensa, promoção e sem o mérito subalterno das produções submetidas à avaliação alheia?

 

Visto que as proposições ideológicas dos diversos sistemas políticos não raro se mostram ou se mostraram insuficientes e incapazes até agora de corresponderem às vantagens públicas semeadas, por que poupar o homem de romper com uma despótica forma de “destino social” sem que isto signifique criar em cativeiro uma versão hipostasiada de seu falível ego? Afinal, as aberrações dos reis e dos súditos se equivalem e independem de uma circunstância propícia à catarse e à dilaceração (chantagens econômicas, extermínios, faxinas étnicas, etc.).

 

E já que esse estado de fuga do sujeito de forma alguma discrepa de toda uma política com vistas à construção de um ideal de cidadania que cobra diariamente do estado atos, omissões e recursos mais ou menos acessíveis, por que impedir o cidadão de fugir da ditadura do útil? Por que negar ao homem pelo menos o exercício humílimo e solitário de sua autonomia?

 

Que mal há em ele degustar, remoer, macerar seus desencantos informes, seus planos malogrados pela indefinição, sua intratável, intransitiva melancolia?  Afinal, que mal há em permanecer na contramão dos aliciamentos despóticos da igreja, do estado e do mercado, ou alguma outra iniciativa sufragada pelo despotismo e a intolerância? 

 

 

 

 

abril, 2007

 

 
 
 
Cândido Rolim é poeta e crítico, com publicações na web, em jornais e revistas do país. Publicou os livros Exemplos alados (1997), Pedra habitada (2002) e Fragma (2007), entre outros. Vive em Fortaleza.
 
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