©john foxx
 
 
 
 

 

 

Extra! Extra!! Extra!!! A nau dos loucos chega a sua improvável segunda edição — ainda não internaram o capitão da temível, aterrorizante naviloca, graças aos devidos habeas corpus daqueles amigos que tocam fogos em cartas e fotografias e que alimentam os esquilos. Ufa! Uma loucura! Vamos falando aqui de... da lama de futurama? Ah, sei lá... Pode ser. Let's go! Neste número 2 vou falar, mesmo que rapidamente, de alguns livros de poesia que não deu tempo de falar aqui — afinal, a nau dos loucos é uma garota ainda bem jovem, novinha em folha, e só dá as caras a cada três meses (é isso né, dear Silvana?). Quero colocar na prosa os livros de poesia de Paulo Ferraz (De novo nada e Evidências pedestres), o de Gabriel Pedrosa (Ícaro), e o de Mário Alex Rosa (ABC futebol clube e Outros poemas), livro de poemas infantis. Mais ainda: um bonus track: traduções minhas de dois poemas de Ernesto Che Guevara e de um poema de Julio Cortázar e outro de Joan Brossa, ambos em homenagem ao Che — minha modesta homenagem a um dos sujeitos mais importantes de nossa História, nos 40 anos de sua morte, ocorrida em 9 de outubro de 1967, quando foi covardemente assassinado por tropas do exército boliviano, com o auxílio da CIA. E mais os toques de sempre sobre poesia. Na esperança que dê, a você, meu cansado leitor, algum prazer. Vamos lá então. (Ah, antes que eu me esqueça: chegaram alguns e-mails à redação dizendo que sou preconceituoso, que existe prosa boa e etc. e tal. Claro que tem! Óbvio, fatigados leitores. E eu adoro prosa! Exempli gratia: li há pouco o fantástico Crime e Castigo de Dostoiévski. Não faz muito, li uma prosa incrivelmente linda do Joseph Brodsky chamada Marca D'água, recentemente lançada no Brasil, com tradução de Júlio Castañon Guimarães. Além disso, posso citar a obra de Bernardo Carvalho — um prosador de primeiríssima, inteligência aguda. E uma descoberta recente recente recente: Samuel Rawet. Portanto: eu gosto demais de prosa! O que eu não gosto é de conversa pra boi dormir. A imensa maioria da prosa que se comete hoje no país é emoção barata. E, como diz meu amigo e poeta Zhô Bertholini, de emoção barata qualquer filhinho de papai gosta. Só isso, babies. Let's go?)

 

 

1. Ploc

 

Bem, antes de mais nada, um toque bem bem bem legal: um lançamento triplo da Editora 34, que já faz algum tempo não colocava poesia na praça. São os lançamentos deste que vos fala com Sangüínea; de Fabio Weintraub com Baque e de Ruy Proença com Visão do térreo. Corram atrás de seus exemplares antes que se esgotem! Poesia, lembrem-se!, prato do dia! Todo dia!!! * Ainda aguardamos, agora para o ano que vem, o lançamento do esperado livro do poeta e tradutor Dirceu Villa: Icterofagia. * Depois de 25 anos de poesia (e da maior curtição com poesia) ouvimos agora o canto do cisne d'A Cigarra - revista andreense bem legal, editada pelos poetas Zhô Bertholini e Jurema Barreto de Souza. Uma edição especialíssima, muito legal e com gente light da pesada: Augusto de Campos, Marcelo Montenegro, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Tarso de Melo, Helinho Neri, entre outros. Corram já atrás de seus exemplares ou peçam pelo email: acigarra@ig.com.br * A já clássica e imprescindível Inimigo Rumor também chega a um número especial. Tá no forno o número 20 — dizem os deuses dos becos e um Baco louco louco louco. No final do mês na praça. * E por falar em revista de poesia, a revista que edito com Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, Modo de Usar & Co., terá seu n.1 lançado neste novembro também. Entre os nossos convidados deste número estão: Carlito Azevedo, Franklin Alves Dassie, Benjamín Prado, Veronica Stigger, Walter Gam, Juliana Krapp e muito muito muito muito mais. Fiquem ligados, meus caros leitores! Aguardem! * Uma coisa engraçada que anda acontecendo nesta minha província: a explosão de sebos! Nunca vi uma concentração tão grande de livrarias de usados assim. Uau! Mas o engraçado é notar a inércia (ensebação) de quase todos eles. Digo QUASE, porque com exceção da livraria Alpharrabio, que sempre promoveu lances de craque no campo cultural da cidade, nenhum deles se preocupou jamais em sequer organizar uma leitura, um café pra discussão, anunciar numa revista, publicar um zinezinho que seja. Isso demonstra toda a pobreza de espírito desses apaixonados por livr... ops, pelo dinheiro que os livros dão. Uma pena. Coisa de província mesmo. Bem, é bastante ruim, mas cada cidade tem o livreiro que merece. Infelizmente, enquanto enchem seus bolsos com gordas e ricas notas de Reais Fortes, vão se esfacelando numa mórbida e maldita pobreza de espírito. * Escutem essa: pegaram o gerúndio pra cristo. Agora ele é proibido em todos os órgãos públicos do Distrito Federal. Bem, como se não houvesse um mundo para se fazer neste "país do futuro". O gerúndio estará sendo crucificado enquanto alguém estará passando a lábia pra estar faturando um tutu. É... neste país da festa da bolacha mabel encantada, a grande e melhor sacada é mesmo do Zé Simão: país da piada feita. Parfait! * E a CosacNaify lançou faz um pouco bem pouco tempo um livro de ensaios instigante: trata-se de Da poesia à prosa de Alfonso Berardinelli, um crítico italiano daqueles cuja leitura dão um prazer incrível, uma alegria sem fim. Crítica com inteligência. Crítica sem pedantismo. Indico aos meus poucos e cansadíssimos leitores. * Alguém aí se lembra da Fanta Uva e da Fanta Guaraná? * Parece que o Marcelo Montenegro lança livro novo em breve. Ele já voltou a botar suas letras elétricas na internet, com seu blog (um dos 2 ou 3 blogs suportáveis nesse mar de miséria virtual) Orfanato Portátil. * A carne é triste mesmo e tudo existe para acabar numa conta bancária (de preferência nas Ilhas Canárias). * Êta, ferro... * That's all folks!

 

 

2. ASAS FUNDIDAS POR CONCRETO: ÍCARO DE GABRIEL PEDROSA

 

 

 

 

"arcadas, abóbadas, galerias sibilantes, cavernas anfractuosas..."

James Joyce

 

O livro de estréia do poeta paulista Gabriel Pedrosa, Ícaro (Ateliê Editorial, 2007), é uma das boas surpresas literárias desse ano.

 

Gabriel não é um poeta concreto. Não é um poeta visual. Não é um poeta que segue modas. Gabriel Pedrosa é um poeta contemporâneo que sabe de seu ofício, de seu tempo e seu espaço. E faz, neste trabalho de estréia, uma estranha música incrustada dentro de um estranho concreto que só se percebe dentro da não menos estranha composição estética que compõe este Ícaro. Este estranho vôo circunflexo.

 

Há um certo brutalismo na composição gráfica do trabalho, uso interessante do espaço (inclusive com intervenções geométricas) e um aspecto sujo nos poemas, que causam uma colisão interessante — o que poderia marcar, "de cara", a idéia freqüente de "poeta de invenção". Não é nada disso. A poesia de Pedrosa experimenta possibilidades possíveis dentro de seu repertório pessoal, de seus eventos. Há muito mais aqui um contato, às vezes tenso, noutras reverente, com a tradição recente da poesia brasileira do que propriamente uma busca mais radical pelo novo — uso aqui esta palavra perigosa, sabendo de tudo que ela implica, para o bem e para o mal.

 

Gabriel Pedrosa é arquiteto de formação. Faz mestrado onde pesquisa a interação entre a palavra e o espaço na arte contemporânea. Imagina-se, pois, o quanto o autor preza a construção editorial em seu livro. Mais que simples disposições espaciais, o poeta buscou engendrar espaços para as suas palavras. Espaços de habitações poéticas. Onde haja luz, espaço, ventilação, som e sentido. Esforços em busca de uma simetria disforme, cujas cúpulas, pilastras e abóbodas se dêem também calculadas à margem de erro, em suas quixotescas aventuras sintático-semânticas. A arquitetura aqui é um mito. Um vôo com destino à colisão. Estilhaços de vidro, carne e circunstâncias explodidas como gesto de interação entre o que se diz e o que se vive. O mito não caiu no mar. O mito desabou na enchente e foi tragado por um bueiro, indo parar, morto, em qualquer dos rios poluídos da cidade.

 

Os poemas de Pedrosa em muitos momentos assumem os santos alheios. Além de Augusto e Haroldo de Campos, presenças centrais, há Paulo Leminski e Torquato Neto, compositores populares como Chico Buarque e Caetano Veloso, entre outros. Entre todas as referências explícitas, que constroem um corpo forte e ao mesmo tempo flexível, pode-se notar a voz de um poeta, sobretudo lírico, que ousa ainda falar de amor e, tão jovem, a cavar a memória na busca dos cacos de vidro de sua história pessoal.

 

Outra presença, a de Manuel Bandeira, ultrapassa as reapropriações propriamente ditas do mesmo, partindo para um modo de composição que lembra a dicção simples e certeira, o tom de desilusão com apego do maestro pernambucano. Explicitamente, como a imagem recorrente do pássaro morto, estilhaçado, sob a chuva, sem asas, que lembra o poema "Pardalzinho", da Lira dos Cinqüent'Anos, em outro foco, porém, pois para Pedrosa "o céu dos passarinhos" é o céu dos aviões, dos urubus, da lua, do sol, das estrelas, das pipas. Um céu concreto.

 

Os seres do céu (pássaros, urubus, aviões, pipas, papagaios etc.) são presença constante. Figuras concretas e muitas vezes indissolúveis ("trago em mim / um monte / de PÁSSAROS / e MULHERES / e MENINOS // que matei pelo caminho / e não tive ocasião de enterrar"), como se estes estivessem colados à trajetória dos poemas não com cera — tal Ícaro que, por vacilo, aproximou-se demais do sol que lhe derreteu as asas e acabou caindo no Mar Egeu, morrendo afogado, e ainda assim, "caiu sorrindo" —, mas, sim com chumbo, que impossibilita a desconexão fácil, que cultiva a memória mesmo que a contragosto. Ao mesmo tempo, esses seres do céu travam uma intensa disputa com a idéia do céu místico (cristão), como no ótimo "Poema plano": "quando eu nasci / os anjos todos / mesmo os tortos, safados, loucos / estavam dando plantão na decoração dos shoppings". Através de uma ácida ironia, demonstra que o mar não está para peixes, assim como o céu não está para anjos. Os anjos estão ocupados em garantir o pão de cada dia, figurando no museu de história sobrenatural para a alegria do capitalismo ultra-selvagem. O sujeito é tão gauche, mas tão gauche, que os anjos todos não vieram dar-lhe nenhuma bênção, sobrando-lhe então a necessidade de "estar / a tempo / e sorte", para que possa, senão desafinar, dar as costas ao coro dos contentes e à comoção infernal.

 

No poema "bambus em cruz um ponto funda o fundo azul / gira a folha vermelha sobre seu centro de céu // tiras de saco de lixo encompridando movimentos / começo a imaginar a pipa que me invento construindo // contra o vento só atrás o sol / até queimar sua forma em meu olhar até ensurdecer seu ciciar de sopro sobre a seda até sedado me esquecer / e me encontrar voando feito em pipa. que desbota um dia / chovendo colorido em minha cova", uma certa exaltação do simples, filtrado pela memória, ecoando um tom menor, com uma sonoridade bonita e funcional — é de se notar a grande influência da música popular em poetas jovens no Brasil, Pedrosa entre eles.

 

O poema "[não te sabem...]" talvez seja o mais interessante do livro. Através de diferentes usos da fonte (caixa alta, negrito e redonda), o poema, pelo menos em sua estrofe central, pode ser lido por mais de uma maneira, o que gera significações interessantes, ampliando a sua força atrativa, girando como um carrossel, moldando-se dentro da estrutura geral do livro como um alento desmitificador. O poema mantém, ainda, um diálogo metafísico com outros mestres, às claras e também às escuras. Naquele "a me embebedar mais de sonho que de cachaça" a ressoar o Ezra Pound de "E assim em Nínive" ("Sou um Poeta, e bebo vida / Como os homens menores bebem vinho".); ou aquele "a vida por viver", como uma afirmação àqueles belos versos de Robert Creeley no poema "End": "let the world stay // open to me/ day after day, // words to say, / things to be". Ou mesmo aquela construção sintática espontaneísta (usando de anacoluto) que avisa que Guimarães Rosa passou por ali —  no verso "TEM GENTE QUE NEM NÃO NASCE E AINDA MATA A MÃE DE TRISTEZA". Os diálogos, muitas vezes por simples pontos de contato, noutras vezes por reapropriações explícitas, situam Pedrosa num espaço saudável de retomada da tradição com olhar crítico, perceber de dentro os fluxos e influxos que, diacronicamente, compõem o painel em que trabalha.

 

     não te sabem

                          não sabem ainda que ainda

que cinco minutos antes do nada

                                   nada houvesse de certo decerto

que havia amores boiando no infinito existente

 

todo o existido fora apenas a preparação deste encontro

que o amor não cabe na carne do tempo

(a carne do tempo o tempo da carne

TEM GENTE QUE MORRE ATRAVESSANDO A RUA

não fosse sobretudo esse verso girando mais

(A VIDA ASSIM BESTAMENTE FRACA)

que o mais das coisas de forma

o tempo esfriando no café

o tempo crescendo nas unhas

TEM GENTE QUE NEM NÃO NASCE E AINDA MATA A MÃE DE TRISTEZA

o tempo fazendo melado nas frutas do gullar)

COMO O QUE EU QUIS VIVERMOS

a me embebedar mais de sonho que de cachaça

TE SENTIR ME ENGOLINDO NOS

desandando do tempo das coisas o tempo nas coisas

NO MEIO DAS NOSSAS VIDAS

a vida por viver

NO MEIO DAS TUAS PERNAS

suspensa (meu sentires meu sonhares meu seres

DE ONDE NASCERAM AS COISAS TODAS

tudo o que há-se pra contar

HÁ UNS TREZE BILHÕES DE MILÉSIMOS DE SEGUNDO

é já passado)

TODAS AS COISAS FEITAS SE FAZENDO SENTIDO EM TI

 

não faças versos sobre acontecimentos

tivesse visto teus olhos aquela noite àquela lua àquele conhaque

e todos seus versos seriam sempre um mesmo débil verso

sob este acontecimento

sobre este acontecimento

 

Os momentos mais problemáticos do livro são, no meu modo de ver, onde Pedrosa emula excessivamente procedimentos usados por Haroldo de Campos — claramente de Galáxias, um dos livros mais importantes da poesia em língua portuguesa. Creio que muitas das palavras-valise que Pedrosa usa, soam em lugares-comuns, isso acaba depondo contra. Nestes momentos, pesam os cacoetes, e estes dão muita instabilidade ao conjunto, que poderia ter sido pensado de outra forma, mesmo que o autor assuma explicitamente essa emulação (nas notas do final do livro).

 

Ainda assim, Ícaro é uma boa estréia. E mostra desde já as qualidades de um poeta sobretudo inteligente. Por isso, com meus aplausos sinceros, havia assim de acabar o texto.

 

 

3. DOSE DUPLA DE PAULO FERRAZ: EVIDÊNCIAS PEDESTRES & DE NOVO NADA

 

 

 

 

 

Paulo Ferraz não lançava um livro de poemas faz um bom tempo. Este ano chegou às mãos dos poucos que foram atrás, os livros Evidências pedestres e De novo nada. Dose dupla de poesia pelo selo Sebastião Grifo — que em outros tempos publicava a saudosa revista Sebastião. Bem, isso quer dizer: independente. Às próprias custas ltda. (A poesia, como nos dizem todos os editores do país há pelo menos 783 anos, não vende. E dá-lhe prosa de quinta, de sexta, e no sábado, prosa, mas sempre uma endomingada prosa sabor groselha).

 

À Poesia, pois:

 

1 de 2

 

Da lente aberta à cidade e seus enredos. O poeta e suas andanças. O poeta e sua solidão. Memória, paisagem, pernas, diálogos, coisas. O poeta e suas Evidências pedestres.

 

Creio que Ferraz acerta em muitos momentos de seu livro. Dialogando em muitos instantes com a dicção que consagrou os primeiros modernistas (e também os da segunda geração, pois é evidente a batuta de Drummond regendo muitos dos poemas), o poeta, porém, coloca sua marca nas composições, fugindo do mero e tão praticado dublê.

 

Sem nenhuma divisão, o livro caminha, em linha reta, debruçando olhos pela geometria sinuosa da vida moderna, muitas vezes com humor (como em "De uma crítica publicada em um suplemento cultural de domingo"), outras tantas vezes pondo sensualidade aos poemas (como em "Só no mundo"), ainda vê as desavenças da cidade, sua sujeira (na cidade, no corpo, na mente dos que vivem na cidade), sua multidão, sua solidão — o que nos faria lembrar aqui Charles Baudelaire: "Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão, tampouco sabe estar só em meio a uma massa atarefada".

 

Com bom humor, construindo paralelos entre o grave (a hedionda adversidade) e o patético (a débil imperfeição), Ferraz, põe sua crítica em ação quando demonstra a desalentadora impotência da arte para reverter os passos do mundo. Trata-se do poema "Da utilidade da poesia (e do poeta)", onde uma sintaxe elíptica condensa os versos longos, imprimindo ao verso elegante sonoridade e requinte construtivo.

 

eu pensava no próximo homem-bomba — e em

como (aos pedaços?) gozaria de suas setenta virgens, e nos

homens-alvo tomando café, esperando o ônibus, sem saber que, e nos

tratores demolindo casas com moradores sabendo que, e nos

agentes do Mossad teleguiando mísseis, e no

choro materno e vidual das filhas de Is

                                               r/ m

                           ael

- e nessas outras coisas que

nem minha poesia nem homens como nós

podem resolver,

quando uma moça em minha frente,

chupando sorvete, me puxou de volta

com sua língua a cuidadosamente moldar

a massa em espirais. Pensei avisá-la

que uma gota marrom espessa escorria

dos lábios até o queixo, mas,

antes de abrir a boca,

um namorado chega e a limpa com um beijo.

 

Mais um problema que

nem minha poesia nem homens como nós podem resolver.

 

Da poesia contemporânea, quando se fala em poder questionador, abre-se um silêncio enorme, pois quase não há assunto. Os poetas, preocupados excessivamente com a linguagem, deixam de lado posturas éticas ou críticas. Quando usam da crítica, o caldo geralmente entorna, pois se cai no mais aguado blablablá, cheio de falsetes ideológicos e vazios poéticos. Tal equação realmente não é fácil, pois as questões envolvidas são muitas e intrincadas. No poema acima, p. ex., o poeta diz da incapacidade de resolver coisa qualquer que seja. Para que então questionar? Bem, uma resposta pessoal seria: questionar, pois somos animais políticos — entenda-se aqui como antonímia de "politiqueiro", como, infelizmente, parece que nos tornamos. Um artista não é um enviado da divina providência. E todo assunto cabe num poema desde que lhe seja dada a devida atenção e o devido rigor. Bem, sei que isso não resolve a questão (e nem é minha intenção em tão pouquíssimas linhas), mas já podemos começar a falar um pouco mais de um dos melhores poemas deste livro: "De uma crítica publicada em um suplemento cultural de domingo".

 

Neste poema, uma sátira sobre o típico artista oportunista (destes exemplares facílimos que infestam o mundo midiático), Ferraz coloca o caso de um artista-plástico que expõe sua macumba culta para endinheirados turistas da classe A em excursão pelas vernissages, também classe A, com o devido fim de se distrair com a desumana realidade da classe miserável. É o ponto onde a estetização da miséria torna-se imensamente lucrativa. A sátira certeira ao artista e a voz que diz poema (o "o crítico de arte" dos cadernos de cultura dos grandes e pequenos jornais) demonstram que autor busca, como em outros momentos do livro, um efeito mais que plástico à sua escrita, dando-lhe também uma postura saborosamente crítica. E talvez o mais importante dessa crítica seja justamente o fato de ela revelar uma consciência reflexiva, passando ao longe da mera descrição acéfala.

 

 

I. (o artista: um retrato)

 

A estréia de J.G.C. aos

32 anos, na quinta-

feira, é a certidão de nasci-

mento de um artista em dia com as

demandas de nosso tempo.

Tendo, nos últimos 12

se dedicado a oficinas,

cursos, viagens e visitas

a exposições, sua obra pôde es-

perar o momento certo

para eclodir, não sofrendo

da habitual ingenuidade

que caracteriza todos

os dublês de Duchamp, pois o

seu domínio sobre o espaço e

sobre a matéria é absoluto,

bem como sua força suges-

tiva, tanto que estimula

sensações inexistentes

em um público pouco ou nada

familiarizado com a

realidade que retrata.

 

 

II. (o artista: depoimento)

 

Estudei dos 20 aos 30

na Europa, tempo de intenso a-

prendizado, mas só conto os

dois anos depois da volta, es-

senciais para a concreção do

meu estilo, pois passei longos

meses nas ruas e favelas,

freqüentei cortiço, abrigo e

bueiro, conheço essa gente

pelos nomes, inclusive

seus cachorros, cheguei mesmo a

me sentir igual a eles.

 

 

III. (a obra: o conceito)

 

Foi essa bizarra experiência

que lhe permitiu trazer à

galeria sacos e sacos

de latinhas de alumínio,

pilhas de papelão (os quais o

público pode tocar) e

duas carroças que estão livres

para quem quiser puxá-las.

A cena é um divertimento à

parte: há muito riso, já que

nem sempre os músculos das a-

cademias são aptos para

vencer os quilos de entulho. As

demais obras aprofundam-

se nesse universo excluído:

bancos (camas) de concreto

salpicados de excremento,

panos puídos pendurados,

secando ao sol (um holofote) —

fachos que atravessam os furos

criam uma trama no espaço

-, cobertores embebidos

em querosene na espera

de um fósforo e, o principal, um

barraco inteiro, legítimo,

no qual entram dez pessoas de

cada vez. Lá: colchões velhos,

recortes tampando as frinchas

das paredes (o olho atento a-

qui diferencia as texturas

de cada, das tantas, tábua),

panelas com restos pelos

cantos e roupas imundas —

tudo bastante insalubre. A

visita não dura mais que

dois minutos, e é tão real que

na estréia alguns vomitaram.

J.G.C esperava o

vômito de quem, como ele,

não sabe o que é o inabitável.

 

 

IV. (nota final)

 

Os antigos moradores

foram com justiça pagos

pelo barraco e por tudo

que eles tinham, inclusive as

roupas, podendo a família

toda regressar ao mato

do qual os coitados nunca

deviam ter posto o pé fora.

Se você ficou curioso,

mas crê que toda a sujeira

pode te macular, saiba

que os monitores do evento

num átimo providenciam a

completa assepsia de todos

logo que se sai da sala.

 

   (Ah, o vinho era de ótima safra.)

 

 

Em outros momentos, onde o fragmento do puzzle fotográfico da cidade nos mostra outra paisagem, o poeta, entre o sensual e o jocoso, nos presenteia com este "Mulher de saia descendo as escadas (eu subindo)":

 

Vista em seu constrangimento

de descer de um nível a outro,

quase que despida para

quem sobe e impossibilitada

de qualquer reação — fosse antes

uma lufada de vento, e

se defenderia firmando as

mãos sobre as coxas —, sublima-

se no mais perfeito exemplo

de chiaroscuro (um abajur de

lingerie — ou de algodão? — brilha

pra mim lá onde o sol não bate.

 

Ou com este "Mulher na memória":

 

Poderia guardar o

cheiro, o gosto, as formas

na memória, tê-la

quando bem quisesse

sem contato, mas o

diabo da cabeça

resolveu (que tosca)

guardar justamente o

vermelho do esmalte

na sua unha encravada.

 

No primeiro, a situação cotidiana do subir e descer escadas se transforma num poema muito interessante, com erotismo suave, e um ritmo quebrado, como que imitando o desconcentrar do sujeito que sobe a escada, enquanto um exemplo perfeito da perspectiva tonal de Da Vinci (o chiaroscuro) se desvenda a ele, como um oásis no meio de uma escadaria qualquer de uma qualquer repartição pública.

 

No segundo, um sabor de Woody Allen e seu estilo "ruína de interiores" (aquele de coisas tipo: "Se tivesse nascido na Polônia, daria um belo abajur"), que, hilário, entre Bergman e Bozo, não entende as travessuras da mente ("diabo da cabeça") a atormentar-lhe com um misto de sexy (o vermelho do esmalte) e desestimulante (a unha encravada).

 

Há uma coisa que incomoda neste livro (e também no outro, De novo nada): a exagerada implosão de vocábulos em quase todos os poemas. Em alguns momentos, pouquíssimos, esses cortes vocabulares parecem possuir alguma funcionalidade, pois a meu ver, Ferraz busca sempre uma sonoridade mais fechada, quase que diria fixa, mesmo quando os poemas não obedecem a uma métrica exata. Além de não fazerem suporte a qualquer tipo de isomorfismo (ou mesmo a alguma intenção melódica), os cortes estragam, a meu ver, a leitura, deturpando o ritmo, dando-lhe inconvenientes solavancos.

 

À parte isso, Evidências pedestres é sim um bom livro, porque de alguma maneira procurar devastar alguns caminhos que não foram por completo explorados, mesmo que perigosos, pois batidos. Pensar a cidade, através de suas experiências múltiplas e densas, é cada vez mais regência importante ao pensamento de arte — de todas as artes. A complexidade do diálogo entre o artista contemporâneo e seu espaço (por deslocamento, seu público) é do mesmo tamanho do complicado modelo construtivo de uma sociedade cada vez mais sufocada em seu próprio beco sem saída. Do mesmo beco sem saída, o poeta procura diferentes modos de observar, e este Evidências pedestres em muitos momentos consegue.

 

 

2 de 2

 

De novo nada é um poema narrativo, longo. Na orelha ao livro, Viviana Bosi escreve que "Essa peça poética de tantos tons e vozes gira em várias direções, lançando lampejos de sensação e pensamento que se interrompem e voltam adiante (...)". Creio que a professora está correta na afirmação, mas o que podemos concluir após a leitura desse poema é que, mesmo com sua boa intenção (e claros bons momentos), o trabalho acaba se perdendo justamente nessas "direções" por onde o poema gira e não chega a nenhuma. Talvez pelo fato da falta de um objetivo mais preciso e por um certo desandar construtivo, o alvo a ser atingido ficou longe. Tem-se a impressão de grandes vácuos entre o que se pretendia ligar. Já que se trata de um poema longo e a ambição não é caleidoscópica, não se forma de brutais colisões temáticas e sim vai num caminhar mais próximo à narrativa tradicional, apenas perturbada por uma ou outra simulação de vertigem lingüística. Deste modo, a respiração do poema acaba por sufocá-lo, por não ser contínua.

 

É perceptível em vários momentos o quanto faria bem ao poema um enxugamento. E isso por conta de passagens inteligentes, onde Ferraz permite-se gradações entre a mais pesada observação e o mais instigante humor com relação aos elementos importantes ao poema (o homem que observa, o outdoor observado, a mulher, Haroldo O-Que-Sabe, a cigana, a mendiga). Assim, a persona destila um cinismo confuso (chegando a citar, pouco mais adiante, Drummond), no primeiro fragmento, e um humor crítico, no segundo:

 

"(...) Saio para dentro,

meu intelecto só compreende o

lugar onde estava, nunca o

que estou, por isso preciso

sair e entrar de novo: estava

num bairro onde se ouvem gatas,

e cadáveres vivos geram

focos de infecção, quem passa

por lá, passa tal cavalo

de hipismo, me incluo, saltando

barreiras, sem ver mais que o que

nos deixam os antolhos. Nunca

paramos, porém podemos

ao menos sentir seus cheiros,

sua carência involuntária

de higiene, eu também, em verdade,

sou muito pobre, não raro

conto moedas pra pagar a

condução, mas tomo banho

de dia e de noite como índio

que sou. (...)"

 

 

"(...) Haroldo, O-

Que-Sabe, me deu conselhos:

'- Ela amadurece alhures

certas frutas'? Ele bebeu do

vinho da vaidade, quis o

dia que virá, quis fazer de

si o dia que virá, mudando os

dias já vividos, e quando o

dia veio, pegou-o no passado,

sua Eurídice foi o novo.

(...)"

 

À procura de seu destino, o sujeito (o poema) termina dentro de seu próprio pasmo — entre a paisagem de dentro e a de fora. Termina em desalento, numa chave nada estranha, como se pudéssemos (nós, os leitores) perceber que assim se sucederia. Poucas fechaduras para uma chave tão grande.

 

Fica a sensação de que nos poemas curtos de Evidências pedestres, com sua menor sisudez e sua "ruína e projeto", Ferraz resolve melhor as questões que sua poesia propõe e inclusive os problemas que tenta desatar neste De novo nada.

 

 

4. ABC FUTEBOL CLUBE E OUTROS POEMAS DE MÁRIO ALEX ROSA

 

 

 

 

Mário Alex Rosa, poeta mineiro, conhecido pelos poemas publicados em suplementos literários país afora, lança seu livro de estréia: ABC futebol clube e Outros poemas (Bagagem, 2007).

 

Trata-se de um livro de poemas infantis. Mas aqui não há poemas com "lições de moral", que ensinem às crianças os hábitos de higiene bucal. Não há poemas para o Dia das Mães e nem em louvor à "pátria amada". Alex Rosa trata seu leitor como gente grande. E isso, por si só, já torna a leitura do livro agradável. ABC futebol clube e Outros poemas é um trabalho bem feito, com boas ilustrações e, acima de tudo, divertido.

 

São 16 poemas. Tratam de variados temas — crianças, planetas, bichos e, claro, futebol. São poemas que têm aquela graça dos escritores que gostam de brincar muito seriamente com as palavras. São poemas que têm delicadeza — esta coisa tão démodée em nossos dias violentíssimos e sem alma.

 

Saber fazer música das palavras é outra coisa que agrada aos ouvidos dos guris e dos leitores em geral — nuestros oídos tan acostumbrados con la hermosura de la canción popular. Rosa consegue boas sonoridades por todo o livro, como no poema "Fui no Itororó", um diálogo com uma conhecida cantiga de roda de mesmo nome: "Aproveita minha menina / que uma noite não é nada, / se me ler agora, amanhã sonhará / com as estrelas da madrugada". Ou mesmo, em outro diálogo com outra peça de nosso cancioneiro popular (e também com a respiração daquele Drummond de "O lutador"), no bonito "O poeta brigou com a palavra": "O poeta brigou com a palavra / diante do papel em branco, / o poeta saiu ferido / e a palavra adormecida".

 

Nas páginas desdobráveis centrais, o leitor pode, como diria o saudoso locutor Fiori Gigliotti, abrir as cortinas e começar a fruir o espetáculo no campo de futebol onde os jogadores são crianças-letras, cada qual em sua função, num divertido jogo cuja bola e a poesia são os artistas centrais: "(...) / antigo Ponta, / é o bam bam bam do abc, / e logo apronta, / inverte, dribla / Parte Para a metáfora / ele é o Poeta da bola / vai à linha de fundo / cruza para o Q, / conhecido como mineiro / por gostar muito de Queijo, / mas parece mais um Quiabo / na área do adversário. / O jeito é chamar o R, / Reserva que dá conta do Recado / (...)".

 

José Paulo Paes dizia que a poesia "não é mais que uma brincadeira com as palavras. Nessa brincadeira, cada palavra pode e deve significar mais de uma coisa ao mesmo tempo: isso aí é também isso ali. Toda poesia tem que ter uma surpresa. Se não tiver, não é poesia: é papo furado". Bem, a vocês, como arremate, uma pequena surpresa, deste livro cheio de surpresas, de Mário Alex Rosa:

 

Pé-de-moleque

 

Pé-de-moleque

na mão de menino

é doce.

 

Pé-de-moleque

no chão

é quase pedra sabão.

 

 

5.  HOMENAGEM A ERNESTO CHE GUEVARA (1928-1967)

 

Che Discursa na ONU — 1964

 

Ernesto Guevara de la Serna foi um dos homens mais importantes do século XX. Tudo que se diga aqui, nesta homenagem, é muitíssimo pouco, é quase nada.

 

Nasceu em Rosário, Argentina, formou-se em medicina, viajou pela América Latina e presenciou in loco os horrores de um subcontinente entregue à miséria, à exploração, à fome, à desesperança. Percebeu que o único modo de mudar essa situação bárbara era promovendo o socialismo, através da luta armada — pois sabia, clara e sabiamente, que eleição não mudaria nada. E assim o fez. Participando da vitoriosa Revolução Cubana, ao lado de Fidel Castro. Depois de ter sido Ministro do governo de Castro, decide continuar a guerrilha por toda a América Latina. Numa dessas empreitadas, nas selvas da Bolívia, seria brutal e covardemente assassinado pelo exército boliviano com a ajuda das forças norte-americanas.

 

Che Guevara, o homem cujo coração batia sem medo, foi carne, sangue e osso do sonho de um mundo mais justo. O revolucionário-poeta que deu a vida pela causa dos olvidados.

 

De um continente ao qual pertenço e sinto orgulho colossal. Do mesmo continente que cambió a estadística pela politicagem. Do mesmo continente em que o povo ainda pena com a miséria imensa. Daqui deixo ao Che o maior de meus cumprimentos e minha admiração.

 

P.S.: Abaixo, dois poemas de Che + um poema de Julio Cortázar + um poema visual de Joan Brossa, ambos para o Maestro.  - trad.: Fabiano Calixto. (Agradeço as dicas do camarada Iván García Lopez).

 

P.S.2: Aqui na concha do ouvido continua ressoando o refrão: Power to the people! It's easy if we try...

 

 

VIEJA MARIA

 

Vieja María, vas a morir,

quiero hablarte en serio.

Tu vida fue un rosario completo de agonías,

no hubo hombre amado, ni salud, ni dinero,

apenas el hambre para ser compartida;

quiero hablar de tu esperanza,

de las tres distintas esperanzas

que tu hija fabricó sin saber cómo.

Toma esta mano que parece de niño

en las tuyas pulidas por el jabón amarillo.

Restriega tus callos duros y los nudillos puros

en la suave vergüenza de mi mano de médico.

Escucha, abuela proletaria:

cree en el hombre que llega,

cree en el futuro que nunca verás.

Ni reces al dios inclemente

que toda una vida mintió tu esperanza;

ni pidas clemencia a la muerte

para ver crecer a tus caricias pardas;

los cielos son sordos y en ti manda el oscuro,

sobre todo tendrás una roja venganza

lo juro por la exacta dimensión de mis ideales.

Muere en paz, vieja luchadora.

Vas a morir, vieja María;

treinta proyectos de mortaja

dirán adiós con la mirada

el día de estos que te vayas.

Vas a morir, vieja María,

quedarán mudas las paredes de la sala

cuando la muerte se conjugue con el asma

y copulen su amor en tu garganta.

Eres tres caricias construidas de bronce

(la única luz que alivia tu noche),

esos tres nietos vestidos de hambre,

añorarán los nudos de los dedos viejos

donde siempre encontraban alguna sonrisa.

Eso era todo, vieja María.

Tu vida fue un rosario de flacas agonías,

no hubo hombre amado, salud, alegría,

apenas el hambre para ser compartida,

tu vida fue triste, vieja María.

Cuando el anuncio de descanso eterno

enturbia el dolor de tus pupilas,

cuando tus manos de perpetua fregona

absorban la última ingenua caricia,

piensas en ellos. Y lloras,

pobre vieja María.

¡No, no lo hagas!

No ores al dios indolente

que toda una vida mintió tu esperanza;

ni pidas clemencia a la muerte

tu vida fue horriblemente vestida de hambre,

acaba vestida de asma.

Pero quiero anunciarte

en voz baja y viril de las esperanzas,

la más roja y viril de las venganzas,

quiero jurarlo por la exacta

dimensión de mis ideales.

Toma esta mano que parece de niño

en las tuyas pulidas por el jabón amarillo,

restriega los callos duros y los nudillos puros

en la suave vergüenza de mi mano de médico.

Descansa en paz, vieja María,

descansa en paz, vieja luchadora,

tus nietos todos vivirán la aurora,

LO JURO.

 

 

Velha Maria

 

Velha Maria, vais morrer,

quero conversar seriamente.

Tua vida foi um rosário repleto de agonias,

não tiveste um grande amor, nem saúde, nem dinheiro,

apenas a fome para ser dividida;

quero falar da tua esperança,

das três distintas esperanças

que tua filha fabricou sem saber como.

Toma esta mão que parece de menino

nas tuas mãos polidas pelo sabão amarelo.

Esfrega teus calos duros e os nódulos puros

na suave vergonha da minha mão de médico.

Escuta, vovó proletária:

crê no homem que chega,

crê no futuro que nunca verás.

Não rezes ao deus inclemente

que a vida toda mentiu para tua esperança;

nem peças clemência à morte

para ver crescer tuas carícias pardas;

os céus são surdos e em ti o escuro impera,

terás uma vingança vermelha sobre tudo,

juro pela exata dimensão de meus ideais.

Descansa em paz, velha lutadora.

Vais morrer, velha Maria:

trinta projetos de mortalha

dirão adeus com os olhos,

no dia que partires.

Vais morrer, velha Maria,

cairão em silêncio as paredes da sala

quando a morte se conjugar com a asma

e copular seu amor em tua garganta.

És três carícias construídas de bronze

(a única luz que alivia tua noite),

esses três netos vestidos de fome

sentirão saudade dos nós de tuas mãos velhas

onde sempre encontravam um sorriso.

Isso era tudo, velha Maria.

Tua vida foi um rosário de fracas agonias,

não houve homem amado, saúde, alegria,

apenas a fome para ser dividida,

tua vida foi triste, velha Maria.

Quando o anúncio do descanso eterno

escurecer a dor de tuas pupilas,

quando tuas mãos de eterna faxineira

absorverem a última e ingênua carícia,

penses neles. E chores,

pobre velha Maria.

Não, não o faças!

Não rezes ao deus indolente

que a vida toda mentiu para tua esperança,

nem peças clemência à morte.

Tua vida foi terrivelmente trajada de fome,

termina trajada de asma.

Mas quero dizer-te

em voz baixa e viril sobre as esperanças,

a mais vermelha e viril das vinganças,

juro, pela exata

dimensão de meus ideais.

Toma esta mão que parece de menino

nas tuas mãos polidas pelo sabão amarelo.

Esfrega teus calos duros e os nódulos puros

na suave vergonha de minha mão de médico.

Descansa em paz, velha Maria,

descansa em paz, velha lutadora,

todos teus netos viverão a aurora,

EU JURO!

 

(Poema escrito a uma paciente terminal de Che, quando este atuava como médico num hospital do México. Pouco antes de sua partida rumo à vitoriosa e gloriosa luta guerrilheira em Sierra Maestra)

 

 

Autorretrato oscuro

 

De una joven nación de raíces de hierbas

raíces que niegan la rabia de América

vengo a ustedes, hermanos norteños.

Cargado de gritos de desaliento y de fe

vengo a ustedes, hermanos norteños,

vengo de donde venimos los "homos sapiens"

devoré kilómetros en ritos trashumantes

con mi materia asmática que cargo como una cruz

y en la extraña entrada de metáfora inconexa.

La ruta fue muy larga y muy grande la carga,

persiste en mí el aroma de los pasos vagabundos

y aún en el naufragio de mi ser subterráneo,

a pesar que se anuncia orillas salvadoras

nado displicente contra la resaca

conservando intacta la condición de náufrago.

Estoy solo frente a la noche inexorable

y a cierto dejo dulzón de los billetes

Europa me llama con voz de vino añejo

aliento de carne rubia, objetos de museo.

Y en la clarinada de países nuevos

yo recibo de frente el impacto difuso

de la canción, de Marx y Engels

que Lenin ejecuta y entonan los pueblos.

 

 

Auto-retrato escuro

 

De uma jovem nação de raízes de capim

raízes que negam a ira da América

venho a vocês, irmãos do Norte.

Carregado de gritos de desalento e de fé

venho a vocês, irmãos do Norte,

venho de onde vêm os "homo sapiens"

devorei quilômetros como um nômade

com minha matéria asmática que carrego como uma cruz

e na estranha entrada de metáfora desconexa.

A rota foi enorme e muito grande a carga,

persiste em mim o aroma dos passos vagabundos

e ainda no naufrágio de meu ser subterrâneo,

apesar de que se anunciam beiras salvadoras

nado displicente contra a maré

conservando intacta minha condição de náufrago.

Estou só em frente à noite inexorável

e uma espécie de careta doce nos bilhetes.

A Europa me chama com voz de vinho envelhecido

alento de carne loira, objetos de museu.

E na clarinada de países novos

recebo de frente o impacto difuso

da canção de Marx & Engels

que Lênin executa e entoam os povos.

 

 

CHE

 

Yo tuve un hermano.

No nos vimos nunca

pero no importaba.

 

Yo tuve un hermano

que iba por los montes

mientras yo dormía.

Lo quise a mi modo,

le tomé su voz

libre como el agua,

caminé de ratos

cerca de su sombra.

 

No nos vimos nunca

pero no importaba,

mi hermano despierto

mientras yo dormía,

mi hermano mostrándome

detrás de la noche

su estrella elegida.

 

Julio Cortázar

 

 

Che

 

Eu tive um irmão.

Jamais nos vimos,

mas não importava.

 

Eu tive um irmão

que atravessava as montanhas

enquanto eu dormia.

O estimei do meu jeito,

emprestei sua voz

livre como a água,

caminhei algumas vezes

perto de sua sombra.

 

Jamais nos vimos,

mas não importava,

meu irmão desperto,

enquanto eu dormia.

Meu irmão mostrando-me

atrás da noite

sua estrela eleita.

 

 

 

 

Joan Brossa

 

 

 

Esta Stultifera Navis 2 foi escrita num fim de semana de chuva ao som de:

 

Are you experienced? — Jimi Hendrix

Bebadosamba — Paulinho da Viola

Bicho de 7 cabeças — Itamar Assumpção

Born to run — Bruce Springsteen

Cocos, cirandas e canções — Ana Diniz

Disraeli gears — Cream

Eu quero é botar meu bloco na rua — Sérgio Sampaio

Líricas — Zeca Baleiro

Paratodos — Chico Buarque

Pink moon — Nick Drake

Room of fire — The Strokes

Rubber soul — The Beatles

 

 

 

dezembro, 2007

 

 

 

 

 

 

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