"cada vez mais compreendo Drummond" AL-Chaer

 

 

Existe um espaço onde diferentes visões de mundo se entrecruzam. É o espaço literário do tema exílio, do texto-matriz de Gonçalves Dias, escrito em 1843, aos textos-subsidiários do século XX. Este processo intertextual, com suas complexas relações, vão da paráfrase de Casimiro de Abreu, à polêmica e à paródia, como veremos, em seguida, nas canções de exílio dos escritores Oswald de Andrade, Murilo Mendes, Mario Quintana, Caetano Veloso, Affonso Romano de Sant'Anna e no poema inédito, que aqui apresentamos, de AL-Chaer. Cada um com seu objetivo poético, os autores acima citados não só retomaram o tema do exílio, com toda a conotação nacionalista, como o repensaram, segundo novas perspectivas históricas, ideológicas e estéticas.

 

 

AS CANÇÕES DA EVASÃO E O HOMEM SOCIAL

 

O enraizamento das artes das artes na trama da existência coletiva, longe de enfraquecer-lhe o poder, aumenta-lhe a significação comunicativa e prolonga-lhe o sentido. É esta abrangência de leitura que traz consigo uma preliminar consciência dos nexos, por meio dos quais o trabalho da linguagem se vincula à sociedade e à cultura sem abandonar sua especificidade nem sua autonomia. Uma sociedade viva vai servir de pano de fundo como princípio dinâmico e motor do conjunto. Ali cada um dos aspectos desse conjunto terá vários significados dentro da incessante transformação que permite e fomenta uma sociedade. Este conceito nos permite, então, situar a obra em um todo vivo, de que o poeta é o cristalizador momentâneo. Esta compreensão da criação artística, vinculada à criação social nos aparece, portanto, como o mais coerente, neste momento, para trabalharmos com os textos sugeridos que coincidem, como já é fato histórico e comprovado, com os grandes períodos criadores que se situam, quase todos, em momentos de crise ou ruptura sociais e na conseqüente necessidade de auto-afirmação desta mesma sociedade.

Não se trata aqui, naturalmente, de reduzir a obra de um autor à biografia e sim de situar a significação latente do tema tratado, enquanto tentativa de exteriorização e de objetivação, cujo verdadeiro alcance resulta do desejo de eficácia que encerra. A decifração poética da produção literária será realizada a partir da reintegração no sistema de sinais dinâmicos que o poeta constitui e de que devemos descobrir a íntima significação.

É possível estabelecer relações entre a totalidade da experiência social e a expressão que um indivíduo propõe da sua época, através de uma representação simbólica.

A investigação de Francastel prolonga esta direção e dá-lhe um sentido. O espaço torna-se um problema, porque o homem se apropria, através dele, de uma substância social que não depende de um intuição mística do real, que os materialistas pretendem impor. A genialidade da criação seria, portanto, a genealogia da vida social, e a vida social encontra, na especulação individual, o princípio e o moto de sua transformação.

Antes de darmos continuidade, valeria a pena fixar-nos no poema que enseja todo o discurso crítico ulterior da modernidade e nossa proposta de trabalho. O que primeiro se observa na "Canção de Exílio", de Gonçalves Dias, é que a temática envolve dois núcleos: um de partida e outro de conciliação. O núcleo inicial mostra desgarramento, descompromisso e uma certa atopicidade. Em outro movimento, conciliatório, o poeta tenta reinverter o vetor inicial: busca então um amparadouro tópico, um reencontro e a possibilidade de reatar com um passado. Ela, a Canção do Exílio matricial, é geradora de vários comportamentos do sentir brasileiro.

Sabe-se que a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, vem a ser a consolidação de um movimento nacionalista que já vinha se gestando antes do Romantismo e que este movimento artístico chegou a teorizar e concretizar em formas literárias que já tinham um passado recente na teoria e prática de Gonçalves de Magalhães. A busca de uma temática nacionalista vai permear toda a literatura romântica. E esta busca, confundida com o ufanismo, que teve em Afonso Celso no princípio do século, sua expressão emblemática, vai propiciar a ironia modernista. Ironia contraditória porque o Modernismo tem muito do Romantismo: nacionalismo — crítico ou não —, fontes populares, cotidianidade — v. romances urbanos de José de Alencar —, personagens símbolos da brasilidade. Já veremos, contudo, como uma pretensa crítica dos modernistas como Murilo Mendes e Oswald de Andrade, na verdade, voltam a repetir comportamentos míticos de nossa literatura. 

 

 

            OSWALD DE ANDRADE E O "CANTO DE REGRESSO À PÁTRIA"

 

Objetivando um distanciamento absoluto em relação ao tema de exílio, Oswald recorre, com seu "Canto de Regresso à Pátria" — publicado em Pau-Brasil, 1924 —, a um processo de inversão do sentido primeiro, proposto por Gonçalves Dias, em sua célebre Canção, estabelecendo uma paródia forte e extremamente crítica contra a alienação social, no Brasil.

"Canto de Regresso à Pátria" pertence à produção de Oswald de Andrade, realizada no início da década de 20, a mesma época da Semana da Arte Moderna.

Finalmente, como queriam nossos artistas revolucionários, estávamos comemorando a nossa independência cultural — cem anos após nossa independência política. Tínhamos tudo para isso: talento, vontade de mudar, necessidade urgente de auto-afirmação de nossa cultura brasileira, apoio de classes privilegiadas e propostas, senão claras, ao menos dignas do respeito da comunidade artística mundial: Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Villa-Lobos, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e outros, igualmente geniais, propunham a transformação, a evolução, a conscientização nacional, através da arte. Não eram apenas idealistas, traziam um projeto estético acompanhando o das vanguardas européias do começo do século e o ideológico, voltado para o conhecimento e a expressão da realidade do país.

A retomada do tema exílio por Oswald de Andrade caracteriza-se por um nacionalismo crítico. Como instrumento deste trabalho crítico, o poeta utiliza o humor, compondo um poema-paródia ao "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias. Oswald elaborou uma espécie de releitura de nosso texto-matriz, onde, por trás da sátira, permanece o caráter nacionalista, apenas dotado, agora, de uma nova perspectiva. O poeta, contudo, não critica como veremos a seguir, a valorização do elemento nacional na poesia, mas a forma ufanista de fazê-lo.

Oswald mantém o mesmo ritmo da canção-matriz — o jogo com os advérbios daqui/lá remete à distância espacial poeta/terra natal, efeito conseguido por Gonçalves Dias e aí repetido. A referência é que muda: o lá não se refere ao Brasil, país de sertão e litoral. A saudade do poeta é delimitada a São Paulo, a Rua 15, ao progresso de São Paulo. Há, na primeira estrofe, a quebra proposital do simbólico Canto do Sabiá, na palmeira. A terra de Oswald de Andrade "tem palmares", onde quem "gorjeia" é o mar (fato geograficamente correto).

 

Minha terra tem palmares

Onde gorjeia o mar

 

Em seguida, no terceiro verso da mesma estrofe, o poeta fala do canto dos passarinhos, desvinculando-os do espaço-referência da canção-matriz (o sabiá cantando na palmeira).

 

Os passarinhos daqui

Não cantam como os de lá

 

A segunda estrofe estrutura-se em torno de uma idéia nacionalista, pois o poeta relaciona, verso a verso, as virtudes de sua "terra" ("mais rosas, mais ouro, mais terra"). O segundo verso é de um realismo desconcertante, conseguido pelo "quase" que antecede o advérbio mais ("E quase que mais amores"). A terceira estrofe é uma seqüência que confirma a idéia da anterior e apresenta a repetição de dois versos do poema "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias: a súplica a Deus para que não o deixe morrer sem voltar a sua terra ("Não permita Deus que eu morra/sem que volte para lá"). O último verso da terceira estrofe é retomado em repetição enfática, no primeiro verso da quarta e última estrofe, onde, no verso seguinte, em seqüência, o poeta especifica e delimita o seu "lá" ("Sem que eu volte para São Paulo"). A sua terra, na realidade, é São Paulo, e mais, o que dá saudades é a Rua 15 ("Sem que veja a Rua 15"), símbolo da pujança econômica do Estado. Oswald de Andrade termina seu poema-paródia com a referência explícita ao "progresso de São Paulo". O que o poeta apresentou, portanto, foi uma maneira diferente de ler o convencional, na apresentação de novidades interpretativas e das contradições subliminares percebidas no desenvolvimento do tema por Gonçalves Dias. Falar de paródia é, pois, falar de intertextualidade das diferenças.

Representante da chamada "fase heróica" do Modernismo, Oswald foi prosador e poeta de altos e baixos. Sua obra foi rica de aventuras experimentais, tendo deixado momentos felizes de vanguardismo literário e outros nem tanto, de gratuidade ideológica. No entanto, havia nele todos os fatores sociais e psicológicos que concorreram para a construção do literato cosmopolita, daquele homo-ludens que se diverte com a íntima contradição ética alienado-revoltado diante de uma sociedade em mudança. Como informa Alfredo Bosi, é a partir de Oswald que se deve analisar criticamente o legado do Modernismo paulista, pois foi ele quem assimilou com naturalidade os traços conflitantes de uma inteligência burguesa em crise, nos anos que precederam e seguiram de perto os abalos de 1929/30.

Oswald de Andrade, não por acaso, no momento em que a nossa expressão literária e a própria brasilidade mais precisavam de afirmação, revigorou o texto que, durante um século foi o hino deste sentimento pátrio. Condicionado por sua própria vivência social e emocional e espelho de um tempo diverso do vivido por Gonçalves Dias, o autor de Canto de Regresso à Pátria acrescenta a seu poema o elemento crítico, tornando-o uma releitura bem-humorada e perspicaz do autor romântico-ufanista.

Contudo, no poema de Oswald não existe elemento novo algum além das peripécias verbais e paródicas: mesmo o prosaico do endereço é a reafirmação romântica do topos. O interessante é que mesmo demonstrando claramente que impunha a crítica e a ironia, Oswald não consegue liberar-se da série nacionalista. Fugindo por onde se entra, acaba entrando outra vez no labirinto da evasão e da nacionalidade cindida — seja ela o lugar das palmeiras ou seja ela um endereço paulistano. O modernismo tinha a clara consciência messiânica das vanguardas. As vanguardas, via de regra, não desejam apenas destruir os cânones, mas estabelecer outros novos. O espírito da vanguarda é didático. Ela pressupõe um ensinamento dos leitores, dos críticos, dos consumidores de artes plásticas, dos usuários de determinada arquitetura, enfim uma correção de rumos estéticos, uma apreciação reveladora. A criação de novos estetas implica explicar o passado, gerar uma nova leitura de velhos estilos a fim de que se crie uma linhagem que justifique inclusive os novos procedimentos da vanguarda. É uma arte que ensina. Diferente dos diluidores que já falam em um código pré-estabelecido. A dificuldade da vanguarda então é dupla. Ela diz o que quer dizer e ao mesmo tempo prepara o espírito do ouvinte-leitor-espectador para uma transformadora apreensão. O provérbio latino ensinare cum delectate não poderia, adaptando-se as situações, servir melhor para as vanguardas que se querem demolidoras quando empreendem na verdade uma missão pedagógica.

Dentro da iconoclastia modernista, o romantismo era um dos alvos do passadismo a ser demolido e uma das figuras elegidas como emblema foi o personagem Peri. Menotti del Picchia chegou a escrever, no Jornal do Comércio, em 1921 (Silva Brito: 192), um libelo onde atacava a mitologia romântica e todos os mitos que constituíam para ele o passado e o nacionalismo piegas: "Peri é o academismo arcaico dos Durões, dos Paranapiacaba; é o marca-passo político, é o ramerrão econômico, é a unicultura tradicionalista, é a escultura do Aleijadinho, é o regionalismo estreito da literatura pseudonacional, é Canudos, é numa palavra, tudo quanto é velho, obsoleto, anacrônico, ainda a atuar nas nossas letras...". Mais tarde Aleijadinho será recuperado pelos modernistas. E a crítica reconhecerá no Modernismo traços do Romantismo. Mas até então o índio romântico, como dizia Oswald de Andrade, era o índio de caixa de biscoito Aymoré. O indianismo — expressão mais estandartizada do romantismo — não cabe analisar aqui, mas se inclui num espectro ao qual pertence também a Canção do Exílio, não tanto como exaltação da nacionalidade, mas reafirmação de um lugar que não é o lugar europeu.

 

 

MURILO MENDES E SUA "CANÇÃO DO EXÍLIO"

 

Como Oswald de Andrade, Murilo Mendes retomou o tema do exílio através da paródia, isto é, da inversão do texto-matriz de Gonçalves Dias, com a intenção de produzir efeitos humorísticos e críticos.

Poeta da geração de 30, Murilo conquista dimensões temáticas novas: da religião à crítica política e social, buscando, no trabalho livre com as palavras, a expressão vigorosa e sensível das realidades de seu país. Conseguiu abrir o caminho da especulação intelectual aplicada à consciência positiva da invenção, o que observamos na sua capacidade de comunicar e de propor significações suscetíveis de cimentar uma experiência não só individual, mas coletiva.

O exílio de Murilo Mendes é um exílio simbólico, pois o poeta fala de dentro da terra natal. Sua intenção é a de mostrar a opressão que pessoalmente sofre pela invasão cultural estrangeira. Podemos perceber esta denúncia nas duas primeiras estrofes, em que vemos sucederem-se, em uma espécie de multiplicação do real, uma série de elementos insólitos.

No primeiro verso, o poeta diz "minha terra tem macieiras da Califórnia", rompendo com a imagem-símbolo de exaltação da flora brasileira, que é a palmeira de Gonçalves Dias, e nos apresentando a macieira como o símbolo da invasão cultural norte-americana. Na macieira (palmeira) não cantam mais, naturalmente, sabiás e sim gaturamos (pássaros multicoloridos), e de Veneza! "Onde cantam gaturamos de Veneza".

Nos quatro versos seguintes, o poeta apresenta uma total inversão de papéis ao dizer que "os sargentos do exército são monistas, cubistas", enfim, se preocupam com as idéias e a filosofia, enquanto que, por sua vez, os "filósofos são polacos vendendo a prestações". É o mundo de cabeça para baixo: embaixo o saber, em cima o espúrio. Sua denúncia torna-se mais ferina ainda nos versos posteriores, culminando com a idéia de que até os "sururus em família", esses atos íntimos entre pessoas que co-habitam, "têm por testemunha a Gioconda", um quadro clássico estrangeiro, desvinculado de nossa realidade.

A confissão explícita de sua angústia de cidadão vem em seguida, quando diz que morre "Sufocado/em terra estrangeira", ou seja, essa influência estrangeira é tão opressiva que sufoca o poeta em sua própria terra (caracterizando o exílio). Em Murilo Mendes, exacerba-se a tensão entre exílio/evasão, pois o poeta está exilado em sua própria terra e sonha outra, aqui mesmo, mais natural e próxima de sua cultura.

Retomando mais de perto os versos da Canção de Gonçalves Dias, Murilo Mendes concorda que "nossas flores são mais bonitas/nossas frutas mais gostosas", "mas" — e este mas é o gancho final da crítica à situação política, econômica e cultural da terra natal — "custam cem mil réis a dúzia".

A validade deste (conforme classificamos anteriormente) poema-paródia, está na relação que se estabelece entre o ato poético e estético e os demais atos humanos, em suas causas e conseqüências políticas, sociais e culturais. Se procuramos entender a prática da arte — em especial, aqui, da literatura — devemos tomá-la por aquilo que ela é, enraizada na trama da experiência coletiva, onde o indivíduo que assume procura, talvez, razões e justificativas, mas onde tem que, no fim das contas, enfrentar sua atividade específica, cujas implicações e relações intrínsecas e extrínsecas configuram o signo poético.

 

 

OS ANOS 60: O SABIÁ NA GAIOLA DO TROPICALISMO

 

A literatura, enquanto movimento de grupo, vai perder nos anos 60 o bonde da história. Na prosa, Guimarães Rosa, que já tinha consolidado sua obra em décadas passadas — principalmente com Grande Sertão: Veredas —, dá continuidade a sua proposta narrativa, cada vez mais ousando e experimentando, enquanto Clarice publicava o cume de sua obra novelesca: A Paixão segundo G.H. Não era, entretanto, um movimento estético e gregário como foram o modernismo e a geração de 30 do romance regionalista brasileiro. Na poesia, sim, havia dois movimentos: o concretismo (que levará mais tarde ao poema-processo, de mesma linhagem) e a poesia retórica e política (Ferreira Gullar, Thiago de Mello, Geir Campos e outros remanescentes mais politizados da Geração de 45) que se opunha a assepsia paulista dos irmãos Campos. De qualquer maneira, não tiveram o impacto teórico que os outros dois movimentos anteriores que nortearam e — pedagogicamente — indicaram caminhos para a arte brasileira. Mesmo o movimento concretista, que se dizia precursor ou mentor do tropicalismo, veremos que se comporta justamente como seu antídoto embora o convívio entre Haroldo de Campos e os tropicalistas seja visto como influência não, contudo, comprovada textualmente.

Era na música que se criava polêmica e se estabelecia comportamentos estéticos que orientavam a produção dos anos 60. A Bossa Nova inovava por introduzir na música brasileira compassos novos e sofrer a influência do jazz. Mas não era uma questão apenas musical: um segmento da Bossa Nova era politizado (Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré) e repetia, guardadas as proporções e as diferenças de gênero, o movimento da geração de 30 do romance nordestino. Veio o tropicalismo — alegre, moleque, internacional, oswaldiano, irreverente e anárquico — que trazia para a música — inconscientemente porque Caetano Veloso declarará no programa Roda Viva, 1997, que só depois de compor as músicas do disco Alegria, Alegria, Haroldo de Campos lhe apresenta Oswald de Andrade — a vertente de 22. O cubismo, a simultaneidade, o fragmentário, a introdução de instrumentos estrangeiros, a iconoclastia, o prosaico, a verve irônica, o jogo de palavras, a desconstrução.

Outra questão começava a impor-se no final dos anos 60. Como os movimentos de vanguarda — concretismo, práxis e processo — enveredavam por uma poesia para especialistas ou os poetas mais retóricos da geração de 65 embarcavam numa poesia hermética, simbólica, metapoética, o público passou a buscar em outras formas de linguagem o consumo de poeticidade que antes ia beber na tradicional forma livresca. É a partir daí que Caetano Veloso e Chico Buarque vão ser vistos e lidos como poetas.

 

Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

no planalto central

do país

 

Existe nos textos de Caetano uma certa dificuldade em discernir entre aquilo que é externo ao sujeito e aquilo que compõe sua intimidade. É a questão da identidade e da vitalidade do sujeito, que pressupõe um confronto com o que pode vir a acontecer em outro espaço. No entanto, o "eu" poético define-se positivamente e assegura uma volta, no momento adequado, para resgatar-se e ao que deixou neste lugar.

Caetano Veloso como homem e artista sofreu os ataques da censura, à época da ditadura militar dos anos 60 e 70, e foi obrigado a exilar-se em Londres, tendo composto, também, sobre o afastamento da terra natal. Caetano foi a nossa estrela nacionalista, aquela que "por entre fotos e nomes/sem livros e sem fuzil/sem fome sem telefone/no coração do Brasil", inaugurou um movimento cujas raízes estariam centrados nos problemas e nas possibilidades brasileiras e que foi denominado Tropicália. Era o Brasil urbano, interiorano e suburbano retratado ludicamente nas canções de Caetano: ("Viva Maria/Viva a Bahia (...) Viva Iracema/Viva Ipanema (...) Viva a Banda/Carmem Miranda").

O poema "Tropicália" não é uma Canção do Exílio, mas trata da nacionalidade cindida. Mais que a visão caleidoscópica de uma realidade está a crítica — também espectral e cubista — dos emblemas de gosto duvidoso da nossa nacionalidade: Bossa Nova, luar do sertão (Catulo da Paixão Cearense), olhos verdes da mulata (erotismo estandartizado), que tudo mais vá pro inferno (Roberto Carlos, que naquele momento representava a alienação e o comércio barato), viva a banda (crítica a Chico Buarque que, também naquele primeiro instante, era o opositor e representava o conservadorismo musical). É outra vez a função didática da vanguarda, repetindo 22 que indicava um cardápio de gostos, educava e dirigia, chegando ao ponto de organizar a desordem como orientar o carnaval.

Espírito irreverente, anárquico, dentro da esfera do "entendimento da nossa realidade", que permeia a literatura brasileira desde Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, o Mário de Andrade de Macunaíma, e muitos outros mais, "Tropicália", contudo, não faz par com a "Canção do Exílio", nem mesmo a modernista. Curiosamente, quem vai inserir-se nesta série é uma música contemporânea de "Tropicália": "Sabiá", de Chico Buarque, que significativamente remete à "Canção do Exílio" gonçalvina, onde retoma os paradigmas de utopia, evasão e ressentimento com a nacionalidade cindida dos modernistas.

Cem anos após Gonçalves Dias ter composto sua canção com os elementos-símbolos da terra Brasil, sobretudo o sabiá e a palmeira, o jovem poeta resgata estes mesmos símbolos numa época de crise social e política.

Os vocábulos noite e dia aparecem, em Sabiá, em seguida, como referentes para opressão, tempo sombrio e recomeço, esperança de novos tempos. A fé nesta reconstrução, apesar de tudo, aparece na seqüência:

 

As noites que eu não queria

E anunciar o dia

Vou voltar, sei que ainda

Vou voltar, sei que ainda

Vou voltar

Não vai ser em vão

 

O poeta termina sua composição rememorando os percalços por que teve de passar durante algum tempo, na intenção até de esquecer o lugar de sua origem, tantos eram os problemas que se apresentavam, mas não conseguiu. Ele termina com um outro tipo de reiteração da idéia do amor à pátria, colocando-se sentimentalmente no versos final.

 

Que fiz tantos planos de me enganar

Como fiz enganos de me encontrar

Com fiz estradas de me perder

Fiz de tudo e nada de te esquecer

 

É este o universo mental onde hoje estamos inseridos. Na meditação, através dos signos, entre o ato estético e os demais atos humanos, (sociais, políticos, econômicos...), vimos ressurgirem os símbolos de brasilidade em cada época de crise nacional, em cada período de perigo de desvalorização da terra natal. A "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, publicada nos primeiros momentos do Brasil independente, funcionou como nossa certidão de nascimento. Precisávamos, àquela época, do ufanismo do poeta romântico e da supervalorização de nossos maiores elementos nacionais. A Canção romântica foi o poema mais retomado na literatura brasileira através de estilizações, paráfrases ou paródias. Mais uma prova disto, bem mais recente, é o poema de Affonso Romano de Sant'Anna, a seguir.

 

 

AFFONSO  ROMANO  DE SANT’ANNA E A "CANÇÃO DO EXÍLIO MAIS

RECENTE"

 

A "Canção do Exílio mais Recente" apresenta uma reflexão sobre a distância espacial do eu lírico aliada a uma reflexão existencial sobre o problema da identidade do eu social. "Não ter um país / a essa altura da vida / a essa altura da história / a essa altura de mim / — é o que pode haver de desolado". O poeta lamenta em seus versos iniciais o atordoamento que tal fato provoca em sua vida, sobretudo o sofrimento que provém da falta de liberdade impingido pelos que detêm o poder autoritário: "Que tudo é deles / que me têm, detêm, retêm (...)". Atônito, tenta encontrar uma resposta para situar-se: "— Viver é isso? — É descobrir na pele dobras de paisagens novas, e lá fora ir perdendo a vista antiga? / — É renunciar ao ontem, refazer o ato? / e saber que em nosso corpo e país/ — o amanhã é um fogo-fátuo?".

As perguntas contêm o sentimento de indignação diante das perdas impostas. São estas perdas que impedem o eu lírico de reconhecer-se por pertencer a um espaço determinado, já que o que havia na memória — "País / era o quintal e a horta a alimentar a mim (...) País era como o São Francisco: inteiramente pobre e nosso" não funciona mais como suporte de identidade: "País como encontrar-se num, se mesmo o nosso quarto (antigo exílio) / a militar família penetra e fuxica / a vasculhar diários e delírios? (...)". Segue o poeta: "Será que sou um palestino? Alguém que já perdeu / de antemão todas as guerras? ou será que sou aqueles alemães?/". A situação provoca o sentimento de revolta, expresso nos versos: "(...) é proibido não ter um país dizem-me na alfândega. / No entanto, este não me serve como não me serviram os outros / quando os habitei maravilhado entre castelos / e vitrinas, entre hambúrgueres e neblinas (...) Este não me serve, assim dessa maneira, a me impingirem idéias mortas (...)". A conseqüência da usurpação de direitos e identidade são o reconhecimento, a um tempo atônito e triste, de um inexorável exílio externo e interno: "E eu aqui, no nenhum-desse-lugar, estrangeiro / exilando-me ao revés, vendo o passaporte roto de traças/ que transferem / para o nada/ a carcomida face". Como na canção  de Chico Buarque de Holanda, "Sabiá", a proposta final é um dia o retorno e o resgate de uma identidade pátria perdida: "(...) fico como  os povos navegantes, à mercê dos fados/sonhando no astrolábio (...) / À espera / que um vento louco me enfune as pandas velas/ (...) e eu chegue à terra santa e profanada (...)".

O exílio nos últimos versos é definitivamente caracterizado em toda a sua carga negativa na expressão vil degredo e a volta à pátria, por oposição essencial, como eterna festa. "E eu/jogando ao mar a cruz e a espada/ correndo para a praia/ peça para ser o menor deles/ e me aquecer à luz do fogo/ em meio à taba/ e transformar meu vil degredo/ — em eterna festa". Assim, o poeta abre à perspectiva temporal (sinalizada pelo advérbio eterna) manifestando um sentimento ufanista pela pátria, o lugar onde eternamente tudo será bom, alegre e compensador — a festa.

 

 

"LARANJAS LARANJEIRAS LARANJAIS" DE AL-CHAER

(a re-significação pós-moderna do mito)

 

Neste diálogo permanente com a tradição do cânone, chamo a atenção para o mais novo poema em vias de publicação, ainda inédito, sobre o tema, "Laranjas Laranjeiras Laranjais", do poeta AL-Chaer que incorpora tanto a função de inversão apresentada nos poemas de Oswald de Andrade e Murilo Mendes, como a tragicidade existencial do poema de Quintana; o desconforto do "ser" social em um novo tempo, dos poemas de Caetano e Chico e o salto existencial, propiciado pela memória, de Affonso Romano. O poema faz o resgate, via Drummond, da nostalgia inicial de Gonçalves Dias, re-significando os ícones da "canção" matriz.

 

Laranjas Laranjeiras Laranjais

 

no tempo das avós
com suas casas com quintal
e laranjeiras
quando
ainda não tinha espremedor industrial
nem lanchonetes

 

      os sabiás
      musicavam os sucos de laranja
      nas tardes dos netos

 

hoje
ainda tem avós
        mas as laranjas
        vêm escondidas em caixinhas Tetra-Pak

 

  nos shoppings e nos restaurantes
        o suco de laranja
        vem protegido por seguranças
        e walkie-talkies

 

    lá no centro da cidade
       as lanchonetes apressadas
       vendem laranjada
       espremida por um moço que usa luvas e gorro

 

um inverno rigoroso
castigou os laranjais no hemisfério norte

 

e daí?

 

        não planto laranjas

 

        as frutas cítricas
        já começam a causar acidez em mim

 

        a cidade só tem pardais

 

        minha avó
                       "é apenas uma fotografia na parede"

 

no museu de ornitologia
os estudantes
    vêem um sabiá

 

                  empalhado
        com o tempo

 

                         cada vez mais eu compreendo Drummond

 

A poética do espaço e a poética do tempo são, ambas, componentes da poética existencial de AL-Chaer. Utilizando-se de deslocamentos espaciais e remissões temporais, o poeta religa o passado, presentifica a realidade e aponta para o futuro.

O verso "Minha avó é apenas uma fotografia na parede" dialoga com "Confidência de Itabirano" e com "Cidadezinha Qualquer", de Carlos Drummond de Andrade. Além da "fotografia na parede", o poeta é trazido também por outro verso, desta vez não em apropriação, mas implicitamente — "Eta vida besta, meu Deus" —, do poema "Cidadezinha Qualquer". Só que a "vida besta" é agora a do espaço urbano cosmopolita. Natureza x civilização; tradição x modernidade; liberdade x cerceamento; composição (família) x a fragmentação dos (shoppings) são os temas abordados para expor a desreferencialização do real conhecido e a dessubstancialização pós-moderna do sujeito, cujo ícone maior no poema é a laranjada.

"Laranja Laranjeiras Laranjais" remete também ao clássico drummoniano "Nova Canção do Exílio". Este último concentra as reflexões do poeta em dois elementos básicos, o sabiá, representando o espaço do bom, e o longe, o tempo mais feliz: "um sabiá/ na palmeira, longe/ estas aves cantam /um outro canto".  Neste intenso diálogo do imaginário, podemos dizer que o sabiá e a fotografia de AL-Chaer e de Drummond apontam para uma mesma significância concentrada na lúcida nostalgia do "longe": o passado tempo das avós. Nesta sua "canção de exílio" do Terceiro Milênio, o poeta AL-Chaer realiza o que Habermas chamou de "crítica emancipatória", pela via do simbólico. Uma forma particular de racionalidade interessada, na identificação de suas dificuldades; racionalidade esta só conseguida pelo confronto do eu com sua alteridade coletiva. Nesse momento o sujeito sai do lugar da vítima lamentosa, num processo de estranhamento que "começa” a libertar ("começam a causar acidez em mim").

Uma leitura ideológica lembraria Marx em sua visão de temporalidade, para quem todo valor é uma questão de tempo. A importância desse poema, com a retomada de um dos mais fortes mitos identificatórios da nação Brasil se concentra no verso "e daí?", quando a consciência em expansão (e, de novo, o eu no presente imediato, "não planto..."), reunida à realidade, dá força e legitimidade à voz do sujeito capaz, não só de "ver-se", mas, sobretudo, de "falar-se", "falando para". A confirmação de sua auto-afirmação progressiva se dá no verso final — compreendo "cada vez mais". E... quem compreende, transforma; abre-se a possibilidades, por mais que a nota nostálgica e algo triste ainda permaneça por algum tempo.

"Laranjas Laranjeiras Laranjais", de AL-Chaer, integra, portanto, com maestria, a linhagem clássica, ideológica e instigadora dos poemas sobre a identidade do ser cultural brasileiro mitopoetizado.

 

 

CONCLUSÕES

 

O que vimos apontando é que existe na literatura brasileira uma temática persistente, um veio ideológico, que se reitera de tempos em tempos, em vários autores, de diversas formas, configurando o tema nostálgico do escapismo, da evasão travestida em canções do exílio, que nunca sofremos como outros povos a ponto de tornar-se uma temática entranhada na nacionalidade. A "Canção do Exílio" apresenta-se como uma máscara poética que esconde uma latente e confusa tentativa de, ao contrário do retorno do exílio, o poeta empreender uma viagem de dentro para fora, ou seja, de sair do País — ou estado psíquico — que o angustia.

A "canção de exílio" matriz mitificou-se através dos tempos e podemos percebê-lo pelas inúmeras composições que revigoraram os mitos espacializados de identidade cultural por ela propostos, das quais destacaremos as presentes. Há que se refletir muito sobre este fato. Não somos os primeiros a fazê-lo, nem seremos os últimos. O tema desdobra-se enquanto o estar existencial for a fundação inexorável do ser que busca identificar-se e reconhecer-se no tempo e no espaço.

 

(2003)

 

 

Referências

 

 

 

Sylvia Helena Cyntrão. Professora de literatura portuguesa e brasileira da Universidade de Brasília-UnB, doutora em literatura brasileira, poeta. Publicou Da paulicéia à centopéia desvairada: a MPB e as vanguardas (com Xico Chaves, Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999); A forma da festa: Tropicalismo, a explosão e seus estilhaços (org. Brasília: Editora da UnB, 2000); Como ler o texto poético: caminhos contemporâneos (Brasília: Editora Plano, 2004); Sopros e Mordidas (Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999); Coração em III atos (Rio de Janeiro: Elo Editora, 2001); O quarto e o ato (Brasília: Esquina da Palavra, 2006).

 

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