Livro que vende

 

 

(Trecho de Livro que Vende. São Paulo: Editora Altana, 2004)

 

 

Rostos e mãos de crianças em carne viva.

 

O professor tenta manter-se calmo, Ter problema é normal, ter problema é normal. Inspira o ar, imprime o vapor na vidraça, solta os olhos na rua.

 

O sócio-majoritário estaciona a BMW e afasta uma repórter de tevê, Fale com o nosso advogado. Um porteirinho corre para o patrão em pulos de pardal, toma-lhe a pasta, escolta-o até o elevador, devolve-lhe a pasta sem ganhar o obrigado. Esse carcamano casca-grossa sempre esquece de agradecer, o porteiro gostaria de declarar aos jornalistas, e Deus castiga, bem-feito.

 

Sobe o sócio-majoritário para a sala de reunião, chega o diretor editorial — e nem são oito da manhã. O diretor editorial declara nada a declarar aos jornalistas, assina o livro à recepção, atropela duas revisoras ao relógio de ponto, afunda o botão do elevador.

 

Rostos e mãos de crianças em carne viva. O pensamento do professor corre na rua, foge na pressa das pessoas. Ter problema é normal. O que é que empurra aquela gente pelas calçadas, cruzamentos, passarelas? Conflitos, problemas.  Problemas são movimento, não acabam. Na ilusão de resolvê-los, as pessoas tomam iniciativas, envolvem outras pessoas e as contaminam. A tendência dos problemas é proliferar. E, já que é assim, por que alguém deveria ficar preocupado? Problemas humanos são ninharias, e nosso universo é tão grande. Como ele, outros bilhões de universos se expandem, sem falar nos que se contraem, cada um com bilhões de galáxias distantes bilhões de anos-luz entre si e com bilhões de estrelas cada uma. O planeta em que arrastamos nossos problemas mixurucas depende de uma estrelica chamada Sol, um pontinho embaçado na periferia da Via Láctea, que é uma galáxia com bilhões de sóis, bilhões de rostos e mãos de crianças em carne viva, rostos e mãos de crianças em carne viva.

 

Entra na sala o sócio-majoritário e, atrás, o diretor editorial. Olhos baixos, boca fechada, roncam bom-dia para os sapatos do professor. O diretor digita um número, Só responde a secretária eletrônica, passei a noite toda ligando, vamos começar assim mesmo.

 

Reuniões sem rodeios nem cafezinho metem medo no professor, que se remexe na cadeira. Um azar o sócio-majoritário ter sabido da notícia pelo telejornal, junto com mais sessenta milhões de olhos hipnotizados pelo livro de ciências, pelos adolescentes com caras de bobo, pela menina enfaixada no hospital, pelo batom em forma de bicota da apresentadora.

 

Quatro alunos da sétima série ficaram feridos devido a uma experiência com material explosivo, durante aulas de ciências, em duas escolas do país. A experiência faz parte do livro A Magia da Ciência, de Sandoval Cafeteira. Ao seguirem as instruções para a experiência, os estudantes misturaram ácido sulfúrico concentrado a uma substância que, em contato com o ácido, provocou uma explosão.  Esta estudante de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, corre o risco de perder os dedos da mão direita e deverá submeter-se a uma cirurgia corretiva nos lábios. Os pais e os professores das vítimas pretendem mover uma ação conjunta contra a editora Tornatore, que publicou o livro. O autor, professor Sandoval Cafeteira, não quis dar entrevista.

 

O professor apaga as estrelas da tevê, rostos e mãos de crianças. Na sua frente, inflamam-se o sócio-majoritário e seu charuto, expandem-se e contraem-se as carótidas do diretor editorial. Em volta da mesa de reunião, os três profissionais aplicam sua experiência de décadas na criação e produção de livros didáticos para administrarem as conseqüências do acidente com responsabilidade e espírito cooperativo.

 

 

 
 

— Eu não vou assumir essa merda — trituram o charuto os dentes do sócio-majoritário. — Não fui eu que explodi a cara das crianças. Eu só banco os profissionais, porra, e um profissional tem a obrigação de saber o que está fazendo.

 

O diretor editorial esmurra a indireta na mesa:

 

— Se a empresa não assume a responsabilidade, muito menos eu, um pau-mandado, pago para cumprir ordens. Me mandam investir só nos títulos que já estão vendendo, eu invisto. E se os títulos são uma merda, não é culpa minha, eu não sou autor.

 

O professor se empina, escoiceia, rebate:

 

— Eu que assino a obra, mas não sou eu que escrevo o livro! — e todos sabem como é difícil para ele admitir aquilo. — Nas provas que eu chequei não tem experiência explosiva, podem conferir!

 

Diretor editorial e sócio-majoritário examinam as provas xerocadas do professor, mesmo sem entender nada de química.

 

— Cês vão conferir também o arquivo da empresa — sacode o pé o professor. — Nas provas do meu livro não tem nenhuma experiência com ácido concentrado, que o governo condena.  Não tem nenhuma experiência sem o sinal da caveirinha indicando o perigo do ácido sulfúrico ácido muriático permanganato de potássio hidróxido de sódio álcool querosene cal formol tintura de iodo acetona água sanitária naftalina água oxigenada, essa perfumaria toda que o ministério considera tóxica. Está tudo como manda o figurino, embora eu ache um exagero. O que o governo quer é transformar os estudantes deste país nuns bundas-moles. Pois como é que um professor de ciências vai promover o conhecimento científico pela prática e a observação, se hoje em dia ele não pode mais nem acender um fósforo na classe?

 

Os dedos do diretor editorial farejam as páginas, nervosos:

 

— Você pode ter deixado escapar uma experiência perigosa, por engano...

 

— Estão me sacaneando — diz o professor. — Fale com a Maritza, Douglas, ela que acompanhou a produção do começo ao fim.

 

O diretor editorial afunda as teclas do celular, onde será que ela se meteu? será que está viajando? dando para algum macho?

 

— Morta, minha nossa senhora! — a faxineira chora, arranca-se do apartamento, grita para o zelador, o porteiro, os vizinhos. — A dona Maritza tá morta!

 

O corpo está no chão do quarto, envolto  num formulário contínuo com um texto em versos, de título ROCKORDEL. Embaixo do título, a faxineira teria sido capaz de ler DE SANDOVAL CAFETEIRA, se não fosse analfabeta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Regina Rheda, escritora paulista, emergiu nos anos 90, quando foi premiada com o Jabuti. O interesse principal de sua ficção tem estado nos temas cosmopolitismo, imigração, globalização, direitos animais, sexualidade humana e a necessidade de se democratizar a ciência. Seus romances e contos combinam o sério ao brincalhão, o trágico ao irreverente, o patético ao paródico. A maioria está publicada também em inglês. A autora mora nos Estados Unidos desde 1999.

 

Livros: Arca sem Noé — Histórias do Edifício Copan — contos (São Paulo: Paulicéia, 1994, 1ª. Edição; Rio de Janeiro: Booklink, 2002, 2ª. Edição); Pau-de-arara Classe Turística — romance (Rio de Janeiro: Record, 1996); Amor sem-vergonha — contos  (Rio de Janeiro: Record, 1997); Livro que vende – romance (São Paulo: Altana, 2003).

 

Participação em antologias: "O Santuário" (em Pátria Estranha. São Paulo: Nova Alexandria, 2002); "Dona Carminda e o Príncipe" (em Histórias dos Tempos de Escola. São Paulo: Nova Alexandria, 2002); "A Frente" (em Mais trinta mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2005).

 

Trabalhos publicados em inglês: First World Third Class and Other Tales of the Global Mix — volume com a maioria de seus trabalhos (Austin: University of Texas Press, 2005); "Miss Carminda and the Prince" — conto (revista Meridians: feminism, race, transnationalism. Smith College e Indiana University Press, Outono 2004). Mais em seu blogue: http://reginarhedaescritora.blogspot.com.

 

 

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