©ryan mc vay
 
 
 
 
 
 
 

Em todas as literaturas, o verso clássico é anterior ao verso livre, diz Jorge Luis Borges, leitor fervoroso de Robert Louis Stevenson, para quem, desde que se encontre uma unidade métrica — seja um hexâmetro, um endecassílabo ou um alexandrino —, fácil é fazer um poema, basta repetir uma unidade. A prosa, porém, seria muito mais difícil porque é preciso variar a unidade e, ao mesmo tempo, essa variação deve ser grata ao ouvido. Borges disse isso, um ano e meio antes de morrer, num diálogo que manteve com o escritor e crítico Jorge Cruz em Abril de 1985, no palco do Teatro Coliseo, em Buenos Aires, por ocasião da Semana Cultural promovida pelo jornal La Nación, que tive a sorte de acompanhar pessoalmente por uma dessas circunstâncias felizes que a vida, às vezes, nos proporciona.

Talvez seja por isso que, como deixa entrever a idéia de Stevenson, os escritores comecem a sua trajetória quase sempre pelo verso, passando só mais tarde para a prosa, como fez Borges. Quem sabe isso se dê porque a juventude seja a época dos experimentos, das tentativas de mudar o mundo, ainda que o instrumento seja apenas a palavra, enquanto a maturidade leva ao conformismo, à aceitação da irreversibilidade das coisas.

Portanto, que um autor venha cumprindo essa trajetória ao inverso, é fato que, de imediato, deveria chamar a atenção da crítica. Esse autor é Moacir Amâncio que, depois de uma estréia quase despercebida com a novela O Saco Plástico, de 1973, surpreendeu com a prosa fragmentária e experimental de Estação dos Confundidos (São Paulo, Símbolo, 1977), romance que trata da vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado da terra perdido na desumana e impessoal cidade de São Paulo.

Redator de texto conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior parte de sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, publicou ainda o livro de contos O Riso do Dragão (São Paulo, Ática, 1981), em que parece já disposto a extravasar as fronteiras do gênero, deixando de lado um certo convencionalismo dos primeiros livros, embora o fragmentarismo e as quebras de frase já indicassem o caminho futuro.

Esse procedimento se acentuou em Súcia de Mafagafos (São Paulo, TA Queiroz Editor, 1982), que reúne duas histórias bastante fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia, num tom meio juvenil. Quem sabe por dentro o autor já carregasse a idéia de refazer sua carreira literária, mas agora dentro dos limites extensos da poesia. De qualquer modo, o que se pode concluir é que a experiência de texto tinha por objetivo levá-lo à poesia.

O autor não renega sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere deixá-la esquecida, pois não consta dos dados bibliográficos que aparecem em seus livros mais recentes. O que se conhece é que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando lançou Do Objeto Útil (São Paulo, Iluminuras), disposto a oferecer uma nova proposta ao gênero, como se tivesse por meta escapar de uma certa linguagem exaurida pelo uso ao longo de todo um século de experimentação, repetição e diluições, para se assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes escreveu na apresentação de Contar a Romã (São Paulo, Record, 2001).

Essa virada, por coincidência ou não, deu-se depois que Amâncio imergiu na cultura judaica, talvez em meados da década de 1980, pois de 1987 é a temporada que passou em Jerusalém, que não só lhe inspirou parte dos poemas de Do Objeto Útil, como o fez há poucos anos reencaminhar a sua vida como professor de Literatura Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ao deixar para trás o cotidiano da redação de O Estado de S.Paulo, passando a atuar apenas como colaborador de seu caderno de variedades.

Também aqui fez carreira inversa: preparou-se muito bem antes de entrar numa sala de aula como professor numa altura da vida em que a maioria dos docentes já sonha com a aposentadoria. Doutorou-se na área de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo com a tese Dois palhaços e uma alcachofra (São Paulo, Editora Nankin, 2001) em que discute as diferentes formas de se ver o Holocausto. Em traduções recentes, busca um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e Córdoba.

Na poesia, tem procurado reconstruir a linguagem, virando-a do avesso para criar "mundos paralelos como se fossem dimensões fantásticas da realidade objetiva", como observou Eustáquio Gomes. O resultado tem sido uma linguagem muito própria, que está longe de oferecer fácil acesso ou que pode mesmo ser considerada hermética, mas que é resultado de meticuloso trabalho de um  artesão da palavra, ou melhor, de um artífice, enfim, de um poeta superiormente culto.

Em Figuras na Sala, de 1996, o autor faz uma homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Mas não deixa de impregnar os seus versos com um certo simbolismo que faz lembrar o português Camilo Pessanha:

 

Rotina que se quebra/ chama que irrompe/ dentro da chama,/ ou apaga. / Refletes/ um rastro/ e te dispersas.

 

Em 1997, publica um livro de reportagens e artigos, Os Bons Samaritanos e Outros Filhos de Israel (São Paulo, Editora Musa), interrompendo a seqüência de livros dedicados à poesia. Mas logo volta com O Olho do Canário (São Paulo, Musa Editora, 1998), que, aliás, diferencia-se de seus livros anteriores de poesia na alternância e variedade dos ritmos, como observou Carlos Vogt na apresentação. Aqui o verso começa sério, para, depois, inflar-se, abrindo espaço para a prosa poética no meio, adquirindo velocidade para retornar, por fim, a decassílabos sonantes. Por este breve panorama, via-se que a poética de Amâncio ainda estava inconclusa e sofria alterações de uma edição para a outra, sempre em benefício da criatividade.

Como gosta de jogar com a idéia de que as línguas latinas são na verdade um só idioma, defendendo o argumento de que determinadas emoções e idéias só caberiam adequadamente em italiano, outras em francês, em português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio publica Colores Siguientes (São Paulo, Musa Editora, 1999) em que reuniu poemas escritos em castelhano.

Em Contar a Romã (São Paulo, Record, 2001) também não deixa de prestar homenagem ao idioma de Góngora, Quevedo e Cervantes, especialmente em Duelo de la nariz y la cara em que transita do espanhol para o português e igualmente da poesia para a prosa poética (e vice-versa) sem perder o sentido.

Com a maior desenvolvura, faz poesia dos grandes temas culturais e históricos. O que não é fácil, pois nem todos os grandes poetas sabem fazer da matéria cultural ou histórica o fulcro de sua temática. E, assim como transita entre as formas poéticas, também o faz, de um salto, da (ainda) agreste paisagem sul-americana para o Velho Mundo, cantando tanto a pequena Aiuruoca, no interior de Minas Gerais, numa homenagem ao poeta Dantas Motta, como a Madrid do Museu do Prado, de Bosco e Velázquez, ou a Lisboa do Palácio do Marquês da Fronteira, de Camões, de Pessoa.

Agora, Amâncio lança pela Travessa dos Editores, de Curitiba, Óbvio, em que radicaliza as preocupações estéticas de livros anteriores, desta vez, compondo um poema, Arghvan, em inglês, a exemplo do que fizera em espanhol em Colores Siguientes, quem sabe inconformado com as amarras linguísticas e as limitações do português. Esse longo poema, que melhor seria definido como um conto em versos, constitui a segunda parte do livro, mas se entrecruza com as duas outras partes.

A primeira parte, Luz Acesa, que ocupa a maior parte do livro, é também um longo poema, outra vez em decassílabos. Ao largo desse poema, sentimos a presença da tradição judaica, nunca descrita, mas sugerida, de que Amâncio, hoje, no Brasil, é um dos maiores conhecedores.

Se este texto começou com Borges, por alguma razão é. Borges não só se deixou envolver pelo mistério da cabala, da tradição judaica, como fez com que em sua obra alguns temas se repetissem como obsessões. Essas mesmas obsessões se repetem na poesia de Amâncio, como os olhos da pantera, os espelhos, o labirinto, que não só remetem o seu fazer poético para o mestre argentino como para T.S. Eliot e, mais para atrás, Walt Whitman e Mallarmé.

Em Método, que faz parte do terceiro livro, Óbvio, que dá título ao volume, o poeta diz:


Quanto a saber as mãos impõe-se encarar os olhos da pantera eles são as garras dela apenas não vacilam quando mostram plenos pelos desvãos do espelho um acordo com a chama recortada dos cristais modo de seu ataque aquele relâmpago em detalhes brota do choque da luz com espanto o rigor repete se avançam.

 

           Se não se cita aqui nenhum parente brasileiro de uma possível família literária do fazer poético de Amâncio, é porque o poeta já começa a correr em faixa própria. Que neste livro já tenha escapado da influência de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto é sinal de que a poesia brasileira começa a trilhar novos caminhos.

 

 

 

O livro: ÓBVIO, de Moacir Amâncio. Curitiba: Travessa dos Editores, 123 págs., R$ 32. 

 

 

 

abril, 2005
 
 
 
Adelto Gonçalves é Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa: Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage — o Perfil Perdido (Lisboa: Caminho, 2003).
 
 
 

(Texto originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil)