(Sem título)

 

A mó

roda incessante

na vitrola.

Rola a fala lúcida

e preclara

pedra da minha

lua

disco de face

avara

memória do antro

úmido

chuva do meu

escuro

círculo do beco

sujo lamentações

linhas mortas

ouro usura

santos óleos

e blas-

fêmeas palavras

lavras há

as que me

golpeiam.

 

 

 

 

 

 

Evocação do Recife

 

I

 

Na trilha de Capiba

a bandinha mambembe

ataca o frevo.

 

Recife escoa pelo saxofone

cheiros de mangue

e pitangueiras.

 

 

II

 

A lua nos pés

você descalça

caminha em seus sapatos de areia.

 

Mancha vermelha

a sua roupa

escreve em ondas

poemas com o meu

desejo.

 

 

III

 

Contraste da mão

sobre a toalha:

nervosa arquitetura de nódulos

entalhe de sensível

tatuagem.

 

Na obscuridade da nave

o poema borda suas rendas

em trajes eclesiais,

profanos bares.

 

 

IV

 

A lua minguante sobre o mangue

revela o Recife

puro sangue dos rios

se exalando.

 

O corpo do mar

deita ondas

em decúbito na praia:

o sal nos lambe.

 

 

V

 

Te ofereço uma concha

três uísques três

desejos atados

no meu pulso.

 

No horizonte

crepuscular o coração

se lança

máquina de sonho enredada

nos seus vícios.

 

 

 

 

 

 

Réquiem para a Serra do Caraça

 

Minha terra não dorme em berço esplêndido

nem mais palmeiras

ou sabiás de frondosa memória.

Quintais e abacateiros

onde mais?

 

Cascalho ingrato

verte seu cio mineral pelos trilhos

da serra ao porto

num caminho homogêneo de eucaliptos.

 

A capelinha branca

encolhe-se em seus portais azuis

abalada pelo rumor das máquinas.

Os novos mineradores

olham com indiferença

esse ponto minúsculo da memória.

 

Um outro século

deixa escorrer seus resíduos

pelo rio cada vez mais anônimo e sujo

desprotegido de seu santo.

 

Atores dessa nova ordem

pragmática e econômica

avançam suas escavadeiras

pelas serras e minas abandonadas.

O ferro e o ouro não dormirão por muito tempo

nas grotas do Caraça, São Bento

Capanema, Catas Altas.

 

Arraiais viram acampamentos e

a verdura dos capões de mato, violentada

expõe um vermelho de poeira e desalento.

Roceiros de capacete adaptam-se à engrenagem

movida a dólar, diesel e aço.

Para esses sempre restarão

casas populares

e o angu com couve dos escravos.


 

 

 

 

 
 
 

Libertários

 

Para Dora

 

A fanfarra do século

dobra a esquina austral do Continente

entre fogos e sinos.

Era o Século das Luzes que chegava

em nova edição

revista e comentada.

 

Já não mais liberais

mas Libertários

rompendo os grilhões do opróbrio

e da opressão.

Trazem esses iluminados

pássaros e foices nas mãos

como um desejo

de desfolhar todas as páginas da História.

 

Urge agora recontá-la

feita promessa à luz

do sol americano.

Presos nos laços do futuro

homens e mulheres todavia irmãos

vêm transgredir a sorte

resgatando-a

na metáfora do próprio cotidiano.

 

A liberdade é tudo unir

a família a escola as leis

o coração: grãos de utopia

num mundo sem medo

e sem maldade.

 

 

 

 

 

Encantamento de Lídia

 

Com tua morte ainda colada

à pele de meus dias

 

como um visgo, uma nuvem

absurda que se veste

 

quero saber o que de ti

já não mais desejas

nem podes ou mesmo deves

 

mas transita

pelos poros

de nossas lembranças

 

e tudo o que em equilíbrio se sugere

entre pontes sobre o caos

 

ou como amarras

de uma nova edificação

agora já completa.

 

E porque o enuncias

na arquitetura de sombras

onde desaguam

 

tais presságios se tornam

para sempre

cotas de amor e amargor

que nos legaste.

 

 

 

 

 

 

Moscas

 

Zumbem

sobre a mesa

os dois pontinhos

doidos.

 

Sujos

nos restos de gordura

como plenos

frutos maduros.

 

Esquivas

as moscas se rendem

ao espaço

e ao possuí-lo.

 

Pousadas

sobre o pão, migalhas

como sonolentas

vêm e vão

mais vivas.

 

Duas.

Feito imãs

se alternam

se atraem.

 

Copulam no ar

e estão de novo

livres. Voam

imprevisíveis.

 

Moscas

escuras sobre

sujo igual

felizes.

 

Se confundem

com as mãos, utensílios

dos não-moscas

íntimos parecidos.

 

 

 

 

 

 

Fotografias retínicas

 

a bala

vem do soco

bem no plexo

como o boxe

 

as unhas

na carne

do seu braço

 

tiras finas

das ranhuras

sangue em gotas

 

imprimiram

na retina

toda a cena

 

o coice

do cavalo

na pupila

 

o coito

dos leões

feito na tela

 

a sangria

selvagem

nas vitrinas

 

o buraco

do olho espia

quase um hóspede

 

nas crateras

da avenida

nos perdemos

 

labirintos

de memória

e fantasia

 

 

 

 

 

 

Da carne

 

És pele

e pêlos. E sob tua relva

resguardas

a acesa máquina.

 

Despertas e

imaginas teu ritmo

de sombra na água.

 

És ágil e concluis

o aparecer do mundo.

Chama devoradora de silêncios

que não admite a paz.

 

Submetida ao voraz apelo

no ocaso das forças

te reproduzes avidamente em mim.

 

 

 

 

 

 

Cântico

 

Amor que me interroga

há de trazer-me

alerta para o êxtase.

 

Limpa o pó das coisas

que sutil espelho

capta-as em seu mistério.

 

Em tantos horizontes

a dividir-me o tempo.

Quero. E o querer

torna-me raro.

 

Amor, transparente contato

aos olhos surpresos,

põe a tua mesa!

Em nós alarga teu estro

Contra os seus avessos.

 

Estende os olhos infinitos

ao alcance mais vasto

dentro de mim mesmo.

 

 

 

 

 

 

Afeto

 

Lembranças diamantinas

são assim claras:

a flor silvestre sobre a rocha

a transparência do ar no seu olhar

e o recorte da montanha

que a retina e a fotografia

eternizaram nessa memória

tão cristalina.

 

 

 

[Dos livros publicados Queima de arquivo, Opus circus e Trama tato texto, e

dos inéditos O atleta hipocondríaco e Candongas d'amores]

 
 
(imagens ©trinka)
 
 

 

Regis Gonçalves: Nasci à sombra da Serra do Caraça, na velha Minas colonial, onde meus olhos foram deslumbrados pela pintura barroca do Ataíde e as narinas embriagadas pelo perfume de incenso espargido durante as missas na matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara. Essa origem, simultaneamente à revolta contra ela, é o cerne da poesia que faço. Estudei em Ouro Preto até me mudar com a família para Belo Horizonte, onde vivo. Estudante pobre, freqüentador de cursos noturnos, fui escriturário, bancário e contabilista, estudei sociologia, fui militante revolucionário e me tornei jornalista, atualmente, freelancer. Publiquei esparsamente em inúmeras publicações, entre elas, o Suplemento Literário do Minas Gerais. Ganhei alguns concursos de poesia, aí incluído o prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores. No final da década de 1970, participei do movimento de poesia alternativa, como um dos editores do saquinho "Poesia Livre". Somente em 1984, publiquei meu primeiro livro, aos quais se seguiram outros dois. Tenho mais dois guardados na gaveta ao lado de uma produção irregular, mas constante. Considero a poesia um vício solitário e irremediável.