A tarde já ia ao fim. Os flocos de neve começavam a cair com uma intensidade maior, cobrindo todo o cume do monte Hiei. Os monges já haviam se recolhido e o silêncio era quebrado apenas pelo ranger dos galhos das árvores, balançando com o vento frio que começava a soprar. Além desse, o único movimento que se podia perceber no ambiente era a fumaça elevando-se da cozinha. O pátio localizado entre o templo e a floresta encontrava-se vazio e, no chão, pegadas recentes marcavam a neve, vindas da única trilha que ligava o templo ao mundo exterior.

Yumi entrou assim que acabou de acender os lampiões do pátio. Parou no corredor que levava à cozinha e ficou por um longo tempo admirando pela janela a placidez da cena lá fora. Encolheu os braços e colocou as mãos debaixo das axilas, num gesto de satisfação por encontrar-se protegida e aquecida e por sentir o cheiro bom da lenha e o crepitar do fogo na lareira. Ficou observando o pátio na penumbra, até que teve a impressão de ter visto alguém nos degraus. Aguçou o olhar e constatou que não estava enganada: em um dos cantos havia um jovem sentado. Intrigada, concentrou-se para tentar descobrir quem era, contudo, a pouca luz do ambiente e a neve caindo dificultavam o reconhecimento. Mesmo nestas condições, percebeu que as roupas dele não eram adequadas à temperatura do lado de fora. Devia ser um peregrino recém-chegado, os monges que lá habitavam não se arriscariam em passeios nesta época do ano com roupas tão leves. Como estava acostumada a fazer quando chegavam viajantes ao templo, Yumi apressou-se para receber o rapaz. Devia estar com frio e cansado da extenuante viagem pela trilha íngreme, ansiando por um prato de comida quente.

Sendo aquele templo um seguidor da linhagem Rinzai, a preferida entre os samurais, era comum aparecer por ali guerreiros em busca de iluminação espiritual. Por isso não se assustou quando percebeu que o jovem trazia nas costas uma espada de madeira. Caminhou na direção dele, parando um passo à sua frente. O rapaz continuou imóvel, com o olhar compenetrado em algum ponto além do horizonte. Mas apesar de estar de olhos abertos, a impressão era a de que o horizonte que ele contemplava estava dentro de si mesmo. Yumi ainda não tinha como saber, mas aquele olhar ficaria gravado em sua memória para sempre.

Timidamente, fez uma reverência e estendeu-lhe o braço, convidando-o a acompanhá-la. Então percebeu uma grande mancha vermelha na neve ao redor dos pés do jovem rounin. Ele já devia estar ali há algum tempo, pois o sangue no chão encontrava-se congelado, seus lábios estavam roxos e os cabelos, escondidos debaixo de uma camada de neve acumulada. Yumi continuou com o braço esticado por algum tempo, até que finalmente percebeu uma reação: o jovem olhara na direção dela e, num gesto rápido, levantou-se e fez uma reverência profunda, para, em seguida, cair desfalecido no chão.

****

Da estrada já podiam ver a capital ao longe. O aglomerado de construções novas, o tráfego maior de pessoas, tudo indicava que a viagem estava chegando ao fim. Hisashi e Sayako estavam tristes por ter que se separar de Kakua, o estranho monge que conheceram durante a viagem e que passara a acompanhá-los, tornando divertidos os dias com sua flauta e perguntas aparentemente sem sentido.

Ao entrarem na cidade, resolveram parar numa estalagem para, enfim, comer uma refeição completa. Enquanto esperavam os bolinhos de arroz e o cozido de peixe e legumes que o senhor lhes garantira ser o melhor da cidade, Hisashi foi procurar informações sobre o mestre de caligrafia. Voltou rapidamente, surpreso e satisfeito por tê-las conseguido com tanta facilidade.

Após a refeição — devorada com enorme apetite pelos três e dividida com o simpático e magro vira-latas que ficara rondando a mesa — Kakua levantou-se e disse que a partir dali se separariam. Suas jornadas tomariam rumos diferentes, mas logo poderiam tornar a se encontrar, caso outros assuntos não o atrasassem mais do que o necessário. Pediu-lhes que enviassem as mais efusivas saudações ao mestre Moka, dizendo-lhe que talvez eles tornassem a se ver em breve. Ao terminar a última frase, fez uma longa reverência, virou-se e foi andando para fora do estabelecimento sem olhar para trás.

Os anos passados em meditação dentro dos templos e em contato com a natureza faziam Kakua sentir-se estranho naquele ambiente tão urbano. A velocidade das pessoas era exagerada, pareciam não se dar conta de que estavam perdendo um tempo precioso de suas vidas com preocupações inúteis. Todos pareciam voltados para si mesmos, cegos ao ambiente e incapazes de se deslumbrar com o espetáculo e a benção de simplesmente poder respirar e sentir-se vivo. Tudo isso fazia Kakua ansiar por cumprir a missão que viera realizar.

Queria solicitar logo a audiência ao imperador e ir embora dali. Talvez visitasse velhos amigos depois, se sobrasse tempo. Por isso, dirigiu-se diretamente ao palácio imperial, disposto a livrar-se daquilo o mais rapidamente possível.

Ao chegar ao palácio e se anunciar, foi recebido por um jovem assessor do imperador. Ele parecia feliz em recebê-lo, e disse que a sua presença ali era muito aguardada. Por sorte, o imperador se encontrava no Palácio e poderia recebê-lo na manhã seguinte, depois do desjejum, quando poderiam conversar tranqüilamente. Kakua agradeceu a acolhida e mostrou-se satisfeito com tais determinações, pois assim teria tempo de livrar-se da poeira da estrada e descansar um pouco antes do encontro.

A manhã seguinte encontrou Kakua de pé. Foi providenciada uma farta refeição para o monge, no entanto, este aceitara apenas a xícara de chá. Logo em seguida estava sendo guiado por um ansioso assessor através dos salões do palácio, para o local onde o imperador o aguardava.

Enfim, o momento chegara. Além do imperador, outras pessoas aguardavam Kakua sem disfarçar a ansiedade em torno daquele encontro. Foram feitas as apresentações, logo em seguida o imperador tomou a palavra para si:

— Mestre Kakua, as notícias de tua viagem pela China, onde foste estudar uma nova disciplina conhecida por Zen, chegaram até a mim. Fui informado também de que tu és o primeiro monge japonês que adquiriu tais ensinamentos. Portanto, o meu pedido para que viesses a esta audiência é para falar-nos do que aprendeste nestes anos de estudo no exterior. Diz-nos, Mestre Kakua, o que vem a ser o Zen?

Neste momento todos os olhos voltaram-se na direção de Kakua. Ele deu um passo à frente, abriu um largo sorriso e fez uma longa reverência.

****

Vagarosamente
o horizonte se revela.
Dissipa-se a névoa.

sara fazib

No monte, um templo
envolto em neve azulada.
A noite começa.

sara fazib

Folhagem de outono.
Quanto amarelo e vermelho
cabe numa tarde!

sara fazib

Inverno rigoroso.
O rubor aquece a face
da minha amada.

sara fazib

O monge Kakua parou para descansar. Já estava caminhando há horas e os pés começavam-lhe a acusar o esforço. Afastou-se um pouco da trilha e sentou-se recostado a uma pedra onde o sol ainda batia. Retirou uma flauta das dobras do quimono e começou a tocar. Uma melodia triste invadiu a área, quebrando o silêncio da tarde precocemente fria que caía na região do monte Hiei.

Dias atrás, Kakua encontrava-se meditando no templo quando soube da chegada de um mensageiro do imperador. Este, de algum modo, ficara sabendo da viagem dele à China alguns anos antes para estudar uma nova disciplina conhecida por Zen, e gostaria de interrogá-lo sobre ela. Kakua concordou em comparecer à importante audiência, e o mensageiro partiu na manhã seguinte com a notícia. O monge, no entanto, ainda ia se demorar uns dias para poder se preparar para a viagem.

Nos dias que se seguiram à partida do mensageiro, Kakua pôs-se a caminhar pelo bosque ao redor do templo, sempre acompanhado da flauta. Levava horas contemplando uma flor, outras vezes parecia extasiar-se com o canto de um pássaro.

Os outros monges e os aprendizes não conseguiam entender que espécie de preparativos era aquele. Apesar disso, permaneciam calados em uma distante admiração. E assim os dias foram passando, até que em uma manhã deram pela falta de Kakua. Partira cedo, sem avisar, e sem preparar uma sacola com roupas e mantimentos. Ganhara a estrada apenas com seu hábito e a inseparável companheira, a flauta.

Enquanto tocava flauta e o conforto provocado pelos últimos raios de sol ia diminuindo, Kakua pensava sobre o rumo que tomaria na bifurcação que se abria à sua frente. Foi interrompido pelo som de vozes: pela estrada, vinham caminhando um velho e uma jovem. Ele, na casa de seus sessenta anos, caminhando com uma certa dificuldade, utilizando um bastão de madeira como apoio. Ela, uma jovem que ainda não completara quinze. Ambos pareciam cansados e o velho alertava para a necessidade de procurarem um abrigo para pernoitar e se protegerem do frio. Kakua pensou que seria uma boa oportunidade para ter companhia e resolveu ir ter com eles. Guardou a flauta e caminhou de volta até a trilha.

— O inverno chegou cedo mesmo este ano, não foi? — perguntou Kakua, após uma longa reverência.
— Sim, chegou — respondeu o velho tranqüilamente, também fazendo uma reverência. Estamos procurando abrigo para esta noite. Conheces algum por aqui?
— Sim, um pouco mais adiante existe uma cabana para os viajantes. Eu estava mesmo pensando em passar a noite lá. Posso acompanhá-los?
— Sim, ter a companhia de um monge por algum tempo será interessante. Eu me chamo Kubota Hisashi, e esta jovem é minha neta, Sayako.
— E o que fazem na estrada nesta época do ano? Estão indo para a capital?
— Sim, estamos. Sayako irá estudar o Shô, a arte da caligrafia. É uma tradição em nossa família. Como hoje em dia o melhor mestre, Moka, vive na capital, estamos indo até lá para lhe pedir que a aceite como discípula.

Kakua assentiu com um gesto, como se concordasse com a opinião do velho a respeito do mestre Moka. Seus olhos se perderam e, por um momento, parecia estar sendo assaltado por velhas lembranças. Com um sorriso quase imperceptível, deu meia volta e seguiu em direção à cabana. O velho e a neta foram logo atrás.

Caminharam por pouco mais de uma hora, quando finalmente avistaram a cabana. Era um pequeno abrigo de madeira, mas daria para os três dormirem confortavelmente, protegidos do frio que chegaria com a noite. Muitos viajantes faziam uso desta cabana, deram sorte desta vez: não havia ninguém lá. Puderam entrar e se instalar à vontade.

Apesar de muito cansado, Hisashi providenciou uns gravetos para acender uma fogueira. Os três reuniram-se ao redor dela e, enquanto preparavam o chá, Kakua retirou a flauta das dobras do quimono e pôs-se a tocar uma alegre canção. Tanto Hisashi como Sayako pareceram gostar, pois abriram largos sorrisos. Ficaram ouvindo extasiados e, ao fim da música, se curvaram, agradecendo. Kakua parecia radiante também e por isso resolveu propor-lhes um kôan.

— Mas o que vem a ser um kôan, mestre Kakua?
— Uma espécie de jogo. Vou lhes dar algo para pensar a respeito e talvez os caminhos por onde vossa mente passear, em busca de uma resposta, acabarão fazendo com que experimentem o satori. Posso continuar?

Sayako olhou para o avô com os olhos mais carentes que podia ter, ele percebeu a curiosidade da neta e assentiu com a cabeça para que Kakua continuasse. Estavam ambos ansiando por aquela novidade, embora não quisessem demonstrar.

— Qual o som de uma só mão batendo palmas? — perguntou Kakua, enquanto se ajeitava na esteira estendida no chão. Hisashi e Sayako entreolharam-se, atônitos.

****

Yumi descansava sentada no tatami quando ouviu uns resmungos vindos da direção de onde estava o jovem rounin ferido. Levantou-se rapidamente e foi até ele.

— Ah, finalmente acordou! — disse Yumi. Está se sentindo melhor?
— Mestre Kakua... preciso vê-lo! — insistiu o rounin, sem disfarçar a ansiedade que tomava conta de si.
— Temo que tenha chegado tarde. Kakua partiu no final do outono para a capital.
— Preciso vê-lo! — repetiu, ao mesmo tempo em que tentava se levantar e desistia com uma expressão de dor.
— Você ainda não está em condições de ir embora. Nos últimos três dias teve convulsões e febre alta. O corte em sua perna foi profundo, perdeu muito sangue. Vai ter que repousar por um bom tempo ainda.

Após dizer isso, Yumi levantou-se e saiu do aposento onde instalara o rapaz. Voltou logo em seguida, trazendo uma bandeja com chá quente e alguns bolinhos. Ajoelhou-se ao seu lado e depositou a bandeja no chão, com cuidado.

— Coma, vai lhe fazer bem.

Neste momento Yumi fez menção de se levantar, porém foi contida: o rapaz segurou-lhe a mão e olhou-a nos olhos. Durante algum tempo ficaram mudos, sem saber o quê dizer.

— Obrigado... Acho que ainda não nos apresentamos, não é?

Yumi não respondeu nada. Apenas abaixou os olhos, desviando-os daquele olhar que, por algum motivo, tanto a incomodava.

— Eu me chamo Nishimura Iori. E você?
— Kishida Yumi.
— Obrigado por me acolher.

Yumi livrou sua mão, levantou-se e saiu apressada. Já no final do corredor não agüentou e começou a correr. Sentia o rosto queimar e cobriu as bochechas com as mãos, para que os monges não reparassem no quanto deviam estar vermelhas. Foi para seus aposentos e não saiu de lá até a manhã seguinte.

Iori acordou bem disposto. As dores estavam mais suportáveis. Sentia-se mais forte após uma noite bem dormida e da refeição quente levada para ele por Yumi. Onde estaria ela agora? Enquanto pensava se a tinha assustado, um noviço apareceu no quarto.

— Está um dia claro e frio, Iori-sama. Este inverno será rigoroso, não acha?
— Sim.
— Eu soube que você está à procura de Mestre Kakua. Infelizmente, ele teve que partir para o Palácio Imperial, o imperador quer interrogá-lo a respeito de seus estudos no período em que esteve na China. Bom, acho melhor deixá-lo descansar mais. Daqui a pouco Yumi trará chá. Com licença.

Iori ficou pensando no quê o tinha trazido até aquele templo: a necessidade de conversar com Kakua. Alguns anos atrás, era ainda um adolescente vivendo no campo e pensando sempre em como fazer o pai se orgulhar dele. O avô tinha sido um respeitado samurai, todavia, o pai não pôde seguir-lhe os passos. Os tempos estavam se tornando difíceis, encontrar um daimyo que pagasse um estipêndio era coisa rara para jovens espadachins. Ainda mais depois que conhecera sua mãe e esta engravidara. Precisava sustentar a nova família, e não poderia ficar muito tempo sem um ofício. Resolveu ir para o campo e decidiu que não tinha mais honra para usar o nome paterno. Seus descendentes só poderiam voltar a usar o nome da família Nishimura, quando voltassem a seguir o bushido, o caminho da espada. Enquanto fossem camponeses, atenderiam por Tosaka.

Por isso, enquanto esteve vivendo no campo, Iori acostumou-se a ser chamado de Iori Tosaka. No entanto, a vontade de seguir os passos do avô samurai — e assim ser um motivo de orgulho para o próprio pai — começou a falar mais alto quando ganhou a primeira espada de madeira. Andava de um lado para o outro com a espada às costas, disposto a desafiar qualquer um. Só que esta disposição começou a se tornar uma fonte de encrencas. Por várias vezes envolveu-se em brigas, e teve seu nome ligado a uma turma de jovens desajustados e marginalizados.

O pai não podia aceitar o rumo que o filho estava tomando. Decidiu procurar alguém para orientá-lo. Foi até o templo da região e soube que lá havia um monge de partida para a China, onde estudaria novas disciplinas. Seu nome era Kakua. Conversou com ele e pediu-lhe que aconselhasse o jovem Iori antes de viajar.

Justamente naquela semana houve um acontecimento mais grave. Iori fora apanhado numa séria briga que havia resultado no ferimento de dois rapazes. A revolta da população com os jovens baderneiros estava chegando ao limite. Resolveram amarrar Iori num local público do pequeno povoado, para servir de exemplo e de punição. O desespero de sua família chegou ao auge e, então, Kakua resolveu agir. Dirigiu-se até o local onde o jovem havia sido amarrado, onde encontrou uma pequena multidão furiosa. O pai do rapaz defendia-o empunhando uma espada, não deixando ninguém se aproximar.

— Mas o que este jovem fez de tão grave para merecer esta punição toda? — gritou Kakua, silenciando a turba. Não vêem que ele precisa de orientação ao invés de punição?

Algumas vozes levantaram-se nervosas, mas aos poucos foram se acalmando, até restar apenas um longo silêncio.

— Prestem atenção à proposta que tenho para lhes fazer: eu levarei este rapaz comigo e o educarei. Isto é, se seus pais permitirem.

Aos poucos, alguns murmúrios de aprovação ao monge começaram a ser ouvidos. Restava saber o que o pai de Iori diria. Neste momento, ele levantou a espada, pedindo a palavra.

— Não me resta muita escolha. Entrego o destino de meu filho ao monge Kakua. Que ele consiga dar um rumo à vida dele, que eu não consegui. E que volte um dia orgulhoso de seus feitos, podendo andar de cabeça erguida entre nós.

Dito isso, pôde-se perceber a satisfação dos presentes com a solução que se apresentava. O único que não parecia nada feliz com a novidade era o próprio Iori. Não tinha coragem de contestar a decisão do pai, ainda mais publicamente. Porém sua expressão não deixava dúvidas. Lágrimas rolaram-lhe do rosto no momento em que viu o pai indo embora sem olhar para trás, dispersando-se no meio da multidão de desconhecidos.

Kakua imediatamente pegou a estrada, acompanhado do novo discípulo. Conversavam pouco, pois o jovem não se mostrava muito disposto a falar. De início, sentiu ódio daquele monge que o havia tirado da família, no entanto, com o passar dos dias, começou a se sentir confortável com a presença de Kakua, mesmo apesar de todo o silêncio.

Um dia, enquanto visitavam um templo, Kakua decidiu que aquele era um bom local para deixar Iori. Falou-lhe que precisava ir à China estudar uma nova disciplina por alguns anos, seria melhor que Iori continuasse no Japão. Chamou o monge mais graduado do templo e expôs-lhe a situação. Combinaram que Iori não sairia dos limites do mosteiro, enquanto não tivesse lido todos os livros sobre poesia, história, arte e religião que encontrasse lá dentro. Esta estadia seria a primeira etapa de sua formação. Caso ele resolvesse escolher qualquer outro rumo na vida, a base já estaria pronta. Combinaram isso e Kakua despediu-se do jovem Iori, dizendo que muito provavelmente seus caminhos ainda se cruzariam novamente, mas em outras circunstâncias. Iori novamente odiou o monge, por achar que estava traindo a palavra que dera a seu pai e por estar deixando-o dentro de um templo, enquanto ele gostaria de entrar para uma academia de esgrima e de treinar para se tornar um samurai e resgatar o nome da família.

Um dia, após três anos estudando no templo, Iori foi chamado à presença do monge com quem Kakua havia combinado os termos de sua reclusão. Há muito esta reclusão deixara de ser indesejada por parte de Iori, que ultimamente vinha sentindo um prazer imenso em estar ali, estudando tantas coisas interessantes nos livros. Seu espírito finalmente parecia estar se acalmando, criando novas demandas que ele próprio jamais imaginara. O monge, porém, trouxe uma notícia perturbadora.

— Iori, recebi a notícia de que seu pai não está bem de saúde. Portanto, a partir de agora, considere-se livre para fazer o que quiser. Se preferir continuar no templo estudando, será muito bem recebido como foi até hoje, mas se quiser ir se encontrar com seu pai e lhe dar algum conforto, não o impedirei. Acho que o propósito de Kakua já foi cumprido, sua estadia entre nós me parece que foi muito bem aproveitada. Está na hora de dar mais responsabilidade a você, para ver como lidará com ela.

Iori não teve dúvidas. Aprontou imediatamente uma pequena sacola com alguns mantimentos, pegou uma velha espada de madeira no templo e partiu de volta à terra natal. Após tanto tempo, veria de novo a família... Será que o receberiam bem?

Ao chegar em casa foi recebido com muita alegria. Todos ansiavam por seu retorno há muito tempo e o pai remoía-se de culpa por tê-lo entregue ao monge. A sensação de todos era que a partir de agora tudo ficaria bem. Com Iori podendo ajudar nas pesadas tarefas rurais, a saúde do pai seria mais rapidamente restabelecida.

Tudo transcorria normalmente: Iori mostrava que aprendera a controlar seu espírito mais selvagem trabalhando nas tarefas de casa e freqüentando o templo, sempre que podia. Mostrava perante a comunidade um autocontrole insuspeito para quem o conhecera adolescente. Além disso, a saúde do pai dava sensíveis sinais de melhora. Até que um dia um mensageiro trouxe uma correspondência para a família Tosaka. Viera da China, e era assinada por Kakua. Ele dizia que retornaria em breve ao Japão e provavelmente se instalaria por uns tempos no templo Enriaku-ji, localizado no monte Hiei. Gostaria de rever o jovem Iori.

A esta altura, o pai de Iori já havia se recuperado. Então, disse-lhe que era necessário que fosse visitar Kakua, para transmitir-lhe os agradecimentos da família por ter interferido de forma tão positiva em sua educação. Iori concordou com o pai e mais uma vez começou a preparar-se para a longa viagem que teria pela frente. Estavam no final do verão, seria melhor programar-se para chegar lá antes do inverno.

— Você está se sentindo bem, Iori-sama? — perguntou Yumi, agachada bem à frente do rosto de Iori e franzindo a testa em evidente sinal de preocupação.
— Ah, desculpe-me, não a tinha visto.
— Já o havia chamado duas vezes antes desta. Trouxe-lhe um chá quente. Tome, antes que esfrie.

Mais uma vez entreolharam-se. Um longo silêncio aconteceu. Yumi sentiu a face ruborizar, as bochechas pegarem fogo. Não entendia muito bem porque isto estava acontecendo com ela, já que estava acostumada a cuidar de viajantes que chegavam ao templo pedindo abrigo e nunca se sentira assim antes. Mais uma vez, a reação dela foi levar as mãos ao rosto e sair depressa de perto daquele jovem sem emitir mais uma palavra.

Como o inverno estava mais rigoroso naquele ano, Iori não pôde partir rapidamente. E apesar de ansiar encontrar-se de novo com mestre Kakua, sentia prazer em permanecer ali. Desde que passara por aquele longo período estudando no templo, enquanto Kakua estava na China, sentia-se bem naquele lugar. Agora essa sensação era ainda maior, ampliada pela presença tímida de Yumi. O cuidado que tinha com ele, Iori, as bochechas que ruborizavam de um instante para o outro e os silêncios quando se olhavam olho no olho. Silêncios significativos, densos. Tudo isso o convencia a ficar um pouco mais toda vez que pensava em ir embora e olhava pela janela apenas para certificar-se que uma nova nevasca estava se aproximando.


****

Cozido de nabos
e peixe recende à mesa.
O olho do cão roga.

sara fazib

Já é primavera —
Uma colina sem nome
Sob a névoa da manhã

Bashô

Realmente, o inverno fora rigoroso. Iori acabou ficando mais tempo no mosteiro do monte Hiei do que imaginara. Chegara lá no início da estação e só agora, com a chegada da primavera, estava retornando à estrada para tentar encontrar o monge Kakua. Esperava ter notícias dele na capital, se fosse obrigado, iria até mesmo ao palácio imperial para saber sobre o paradeiro do monge.

Ia caminhando com o olhar fixo adiante. A mente, todavia, ainda estava em algum lugar do templo lá atrás. Sabia o porquê disso, mas preferia não pensar muito a esse respeito. Talvez um dia o destino o colocasse de novo nesta situação. Mas, no momento, o melhor era concentrar-se em sua tarefa e, por meio dela, tirar as lições mais proveitosas para seguir o próprio caminho. Deu um suspiro de resignação, balançou os ombros e seguiu em frente.

Após vários dias caminhando, chegara à cidade. A primeira providência foi procurar uma estalagem onde pudesse se recompor da viagem com um banho e uma refeição. Como era tarde, resolveu descansar à noite, para no dia seguinte ir ao palácio procurar por Kakua. Com sorte, talvez ele ainda estivesse lá, gozando da hospitalidade do imperador.

Ao chegar no palácio, apresentou-se e perguntou por Kakua. Sentiu uma ponta de esperança quando o levaram até um aposento e pediram que aguardasse. A ansiedade começou a tomar conta de si quando um assessor do imperador apareceu.

— Você é o jovem que procura por Kakua?
— Sim, sou Iori, da família Nishimura.
— Iori, nós também gostaríamos de saber do paradeiro dele. Esteve aqui no final do outono para uma audiência com o imperador, com o objetivo de esclarecer detalhes a respeito da disciplina que estudara na China, o zen. Quando foi argüido, Kakua simplesmente fez uma reverência, retirou uma flauta das dobras do quimono, soprou uma única nota e retirou-se. Não o vimos mais depois disso.

Iori não sabia direito o quê fazer. Ao sair do palácio, parou e olhou para os caminhos à sua frente. Para onde seguira Kakua? Não retornara para o templo do monte Hiei, é certo, pois ele próprio passara o inverno inteiro lá. Talvez tivesse tomado um novo rumo inesperado. Respirou fundo, e deu o primeiro passo. Nunca se sentira tão livre como naquele momento.

Ricardo Corrêa Miranda nasceu no Rio de Janeiro em 1970. É torcedor apaixonado do Flamengo, o que o torna, atualmente, um sofredor inconformado. Durante a adolescência teve uns arroubos de poeta e escreveu coisas que, para o bem da humanidade — e da sua reputação, em especial — estão muito bem guardadas, em local praticamente inacessível até mesmo por ele. Acometido de uma surpreendente auto-crítica, resolveu parar de escrever, mas, infelizmente, o bom senso nunca foi uma de suas melhores características. Enfim, a teimosia o levou em frente, e, aos poucos, foi descobrindo que já não viveria mais sem a tal da literatura.