Wilmar Silva - Como foi a sua infância em Caxias do Sul e Porto Alegre?

 

Fabrício Carpinejar - Deixei Caxias do Sul aos dois anos. Guardo apenas o cheiro do lugar, o odor de mata encravada das serras. Minha infância ocorreu em Porto Alegre. Sou de uma família em que cada irmão cuidava do outro. Fui e sou uma criança autista, que encontrou na linguagem seu amigo imaginário. Eu falava comigo quando pequeno. Nunca me deixei sem conversa. Inventava brinquedos a partir dos brinquedos destruídos dos irmãos. Com uma perna de um boneco, criava o teatro. Sofri apelidos, enfrentei meu medo, não parava em livro nenhum, roubava frutas e arrastava a bola em garagens, terrenos baldios e na rua. Da minha infância, jogava futebol doze horas. Nas outras doze, sonhava que jogava futebol. Tímido, não me deixei recalcado. Feio, não me satisfiz com a aparência. Minhas dificuldades de aprendizagem reforçaram o sentido de que teria que sempre conquistar a fala.

 

 

WS - Se um poeta forte descende de um poeta forte: nasce o poeta Fabrício Carpinejar para renascerem Carlos Nejar e Maria Carpi?

 

FC - Meus pais são muito mais luz do que eu. Sou apenas a névoa de casa, que toma conta provisoriamente da varanda antes do sol aparecer. Os pais estarão em meu nome para sempre. Meu nome é um ventre para ambos nascerem em mim. Não existe filho que um dia não seja pai de seus pais. Não existe pai que não seja um dia filho de seus filhos.

 

 

WS - A reinvenção da vida em sua poesia é inventar-se como a um vegetal para humanizar-se?

 

FC - Precisamos, Wilmar Silva, ser um vegetal, sua fugacidade, para não mineralizar o homem em fóssil. Venho de um lugar onde o vento não pára. Aqui nãoverão para o vento envelhecer em paz. O inverno fez com que o fogo aprendesse a falar dentro do pão, como adulto. Escuto o fogo como um primo, um parente. Não ouso falar como as coisas, mas que escuto o que elas dizem escuto. Às vezes preciso dormir para abafar o barulho do mundo.

 

 

WS – "Escrevo para ser reescrito"; reescrever é reencarnar-se?

 

FC - Escrever é ainda rascunho. O autor apenas inicia o livro, não o termina. A vida não coloca nada fora. Publica tudo. Nesse sentido, minha reencarnação acontece várias vezes em um mesmo corpo. Minha alma não migra, é preguiçosa. Sou todos os personagens de minha poesia. E todos aqueles que não se transformaram em personagem, mas mesmo assim não deixaram de ser pensamento. O poema é parecido com uma composição musical, toda variação é um novo protagonista que aparece. Qualquer coisa que vejo me influencia. Sou uma esponja de árvore, lamento quando o relâmpago não me escolhe para queimar.

 

 

WS – "Preparei a vingança pelas palavras", puxando a "vida toda linguagem" de Mário Faustino, o que se expande entre a existência e a criação?

 

FC - Sim, a vingança é o perdão. Se alguém não gosta de ti, qual é a melhor vingança: possibilitar que essa pessoa seja teu amigo. O amor é uma vingança. A amizade é uma vingança. Vingança no sentido de fazer crescer a paz e não a discórdia. Vingança como dar a volta por cima, aceitar que a vida não é a primeira vez, mas a insistência. A insistência é o diálogo. A primeira vez é a projeção.

 

 

WS - A poesia é a explosão da vida como em Arthur Rimbaud ou é possível uma experiência de poética ficcional?

 

FC - É possível uma experiência ficcional desde que seja uma explosão da vida. Não se escreve sem a necessidade do corpo. Técnica literária é a urgência de dizer. escrevo aquilo que mastiguei com os dentes. Aquilo que não sobrou. Tudo o que fiz foi biografia, ainda que inventada. Poesia é correr riscos, extremar o desejo. A perna amputada dói mais do que aquela que se movimenta. A ausência é uma dor física. A linguagem é uma dor física. Uma alegria dolorida.

 

 

WS - Se Ezra Pound separava poesia de literatura, para Fabrício Carpinejar quais as diferenças entre as escritas de um escritor e as poéticas de um poeta?

 

FC - A poesia é um estado de libertação do idioma, onde tudo se resume e se concentra, um laboratório da audição. O poeta é um inconseqüente, pois não é de se domesticar. Ele trabalha a imaginação para continuar vivendo. Se parar, morre. É um animal do campo. Não existe aposentadoria para o fogo. Ou ele queima ou é cinza. O poeta, diferente do escritor, tem mais dificuldades de separar o que ama do que escreve. Não pode incriminar um personagem ou ser absolvido por um enredo. Está vulnerável em carne viva. Tudo o que diz passa a existir e volta a ser. A linguagem cobra com juros o que ele escreveu e não viveu.

 

 

WS - Arqueologia, antropologia, onde acontece a origem do poeta como um ser de natureza política?

 

FC - Arqueologia. Amo os escombros, as ruínas de uma cisterna, os afrescos subterrâneos, o que estava em mim antes de nascer e que terei que cavar toda a literatura para me decifrar. A mão é uma acompanhada. Um pai solteiro. Queria mostrar cultura com a minha poesia. Hoje quero mostrar simplicidade. A cultura pode ser excludente e jactante. os meus defeitos são cultos, eu não. A transparência não se faz sozinho. Pretendo desaprender cada vez mais. Ser o orvalho da fala no ônibus, o cumprimento que seduz e chama para dentro, não a citação que isola e segrega. A poesia é um sussurro como o batimento cardíaco.

 

 

WS – "A disciplina é dos mortos": há indisciplinas na poesia contemporânea brasileira?

 

FC - Temos apenas que nos recuperar da metalinguagem, o que está acontecendo. Nas últimas décadas, o poema significava uma teoria da poesia, um ensaio crítico, mais do que uma forma de comunicação das experiências e da sensibilidade. Um quebra-cabeça, nunca um quebra-coração. Todo poeta falava de sua luta com as palavras, da dificuldade de escrever, da insuficiência de dizer algo novo. Havia a mistificação: o autor pretendia ser poeta por decreto, sem descobrir primeiro alguma coisa a contar. Acabou a briga de rinha com os versos. Demorou-se um bocado de tempo para se recuperar do impacto de uma geração luminosa formada por Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes. Estamos emergindo da leitura em silêncio para uma leitura cheia de silêncios, com a rapidez da oralidade e uma preocupação maior em organizar a verdade e interferir no cotidiano. Não persiste a preocupação obsessiva com influência, e sim um apego à fluência. Identifico autores com visões de mundo, o que é bem melhor do que colecionadores de estrofes. A poesia está mais próxima da prosa, menos hermética. Antes parecia um crime ser legível. Poema bom era o complicado e incompreensível. Hoje não, descobriu-se que ser profundo é não sair do raso: a simplicidade move as aparências.

 

 

WS - A exemplo de Alberto Pimenta, quais os poetas brasileiros que "apresentam a floresta em cima da virgem ou a virgem em cima da floresta"?

 

FC - As editoras voltaram a publicar poesia. Creio que não é uma febre ou um modismo, mas a valorização permanente do gênero como elo com o público, tal o rock brasileiro foi nos anos 80. Os poetas estão mais soltos, naturais, menos formalistas e dispostos a traduzir sua época com ferocidade. Não se nota uma poesia como atitude, e sim uma poesia de atitude. De personalidade. Cito livros recentes e de diferentes regiões: Construção de ruínas, de Carlos Caramez; Trechos, de Celso Gutfreind, Cinza ensolarada, de Ricardo Lima; Natália, de Jussara Salazar; A casa azul ao meio-dia, de Flávia Rocha; Primeiro de abril, de André Luiz Pinto e Vestígios, de Affonso Romano de Sant'Anna.

 

 

WS - Híbridos: livros, performances, vídeos, cds, aquela "permanente hesitação entre som e sentido", pode ser vista como fulcro dos poetas que se desdobram em artistas multimídias?

 

FC - A poesia tem criado seu espaço, o que é importante, seja em sites, blogs, revistas eletrônicas, cds, teatro. Não está mais se sentindo injustiçada, oprimida, marginalizada. Deixou de ser vítima do mercado. Ou bode expiatório da literatura. Creio que os jornais e as publicações estão acompanhando essa retomada. Ainda quero ver programas de tevê somente com poesia não teremos mais o que reclamar e a vida será declamação. O autor hoje é um mediador de sua obra, um ator de sua voz.

 

 

WS - Heidegger diz que a poesia é a "fundação do ser mediante a palavra"; o Brasil nativo, português e africano, qual o pensamento miscigenado na poesia contemporânea?

 

FC - Ainda percebo um distanciamento criminoso entre a poesia brasileira e a africana, menos entre a brasileira e a portuguesa, que emitem sinais de intensa aproximação. Como é possível o Brasil tão africano tão longe da cultura africana? Ana Paula Tavares, Ruy Cinatti, José Craveirinha deveriam estar próximos do leitor. Craveirinha, um dos maiores nomes da língua portuguesa, prêmio Camões, ainda não foi publicado por aqui. Não é um paradoxo?

 

 

WS - Sua antologia Caixa de sapatos publicada em Portugal pela Quasi Edições: Portugal e Brasil, Europa e América, a língua portuguesa é uma aldeia isolada do mundo?

 

FC - Não acho que seja uma aldeia isolada, mas uma língua de resistência, jovem, com muito a oferecer. Não devemos condenar as dificuldades, mas tirar proveito delas para enriquecer a obra. Não sou daqueles que amaldiçoam a escuridão e o isolamento. Tiro proveito das adversidades para me fortalecer. Contamos com os dois mais severos críticos para fazer alta literatura: o tempo, sempre implacável, e a geografia, que não facilita a divulgação e o reconhecimento. Trabalharemos em dobro em relação aos países da Europa.

 

 

WS - A herança do Brasil Colônia e também os estados brasileiros frente ao eixo Rio de Janeiro e São Paulo, por que coexistem essas diferenças?

 

FC - Não acredito em separatismo. O Brasil deve ser um , para pagar todas as suas dívidas culturais. Carecemos de política cultural, temos apenas diplomacia cultural. A informação parte do centro, mas não é o centro.

 

 

WS - Como vive hoje o poeta Fabrício Carpinejar frente ao alcance do poder em crise dos partidos de esquerda no Brasil?

 

FC - Sofrendo. No labirinto, se sai tomando a direita. Prefiro me perder a abdicar do direito da esperança. A esquerda chegará em seu sonho depois de superar o pesadelo. A esquerda sempre quis o poder, mas agora que o tem descobrirá que precisará perder o poder para amadurecer e ser mais humana e menos arrogante. Nem Deus guarda o monopólio da moral e da justiça. A intolerância é a religião dos fracos.

 

 

 

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Fabrício Carpinejar é autor dos livros As solas do sol (Bertrand Brasil, 1998), Um terno de pássaros ao sul (Escrituras Editora, 2000), Terceira sede (Escrituras, 2001), Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003), Porto Alegre e o dia em que a cidade fugiu de casa (Alaúde, 2004), Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), Como no céu e Livro de visitas (Bertrand Brasil, 2005) e O amor esquece de começar (Bertrand Brasil, 2006). Mais no seu site e blogue.
 
 
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