Rodrigo Leão – Assionara Souza, qual a importância do repente na sua literatura?

 

Assionara Souza - Pergunta instigante essa. Nunca pensei nisso. Mas é bastante forte, sim, a influência. Ecos da infância no nordeste, quando convivia com a velha guarda da família (meus avós e tios-avós) que tinham no cordel e nas canções dos violeiros do sertão uma espécie de respeito absoluto; tanto para os temas mais densos — como o sofrimento do sertanejo, quanto para os mais jocosos — o riso sem essa coisa mascarada do politicamente correto, o riso limpo, o riso rito. Bonito de fato. Lembro que o meu avô Chico tirava o chapéu para ouvir os desafios. Ele se tornava, junto com o poeta repentista, um gigante para mim, que era um tiquinho de gente de olhão aberto. Não desconsidero, inclusive, que muito dessa verve que os meninos do Rap ("Rapentistas") — principalmente os de São Paulo — têm está no sangue da riqueza cultural que o nordeste trouxe com o fluxo de nordestinos cima-abaixo. A inteligência rápida da palavra solta na oralidade. Uma palavra ainda com a quentura do sertão, dos bichos que se esgueiram no sertão. Aguda, como os cactos. Ligeira. Ossuda. Sensualíssima nessas formas raras de flores que desabrocham desafiando a ausência. A riqueza do nordestino está nisso: em encher a realidade pouca e parca de palavras. Veja o Cabra. O Cabral. Quer coisa mais bonita que a magnífica Psicologia da composição?! Anfion e o deserto. Sim. Muitíssima influência do repente em minha Literatura!

 

 

RL - Qual conclusão pode tirar de sua tese de mestrado?

 

AS - Da Literatura não se tiram conclusões. Abre-se, isto sim, uma clareira de dúvidas que lançam o sujeito para o mundo com um olhar mais impiedoso diante das injustiças. Ele quer saber quem é, quer saber que lugar é esse de fala que ele ocupa, quanto vale o que ele diz. O que é ser esse sujeito brasileiro — com toda a carga de significados que essa palavra agrega. E esse questionamento está inscrito a ferro e fogo no melhor da nossa literatura de homens e mulheres brasileiros. Quem despreza a tradição é um inocente. Um irresponsável inocente.

 

Osman Lins, homem que respeito profundamente, é um exemplo de escritor a ser seguido à risca. A arte de escrever, que ele chama de guerra sem testemunhas, não é tranqüila. Há uma luta sem platéia. Como diz o Guimarães, o capinar é sozinho. Uma luta em relação à busca de uma dicção original. Um luta para fugir dos filões literários: o fácil inevitavelmente é ruim. E principalmente uma árdua luta — nesse país em que muita vez nem o escritor é leitor — contra as estruturas que impedem que o bom livro tenha interlocução.

 

 

RL - Por que escreve?

 

AS - Tem um equivalente dessa pergunta que é "Por que bebe?". E então o bêbado responde: "Bebo pra esquecer que bebo". O enfrentamento do texto é na maioria das vezes um ato vergonhoso. Nunca temos suficiência para dar conta do que queremos expressar. É comum, quando o texto está pronto (depois de toda aquela carga elétrica que percorre o juízo do escritor), vir o esgotamento. Passada a embriaguez e a comemoração que essa embriaguez traz, o escritor sóbrio pensa: "O que foi que eu fiz?". O encontro com o leitor é o resgate da honra. O texto não está pronto quando o escritor lançou o livro. Uma ilusão se alegrar com o lançamento de um livro. É uma tensão medonha. O texto vai ficando pronto com o tempo. Com as camadas de leituras de outros olhos. Às vezes demora uma vida inteira. Então é isso: escrevo para esquecer que escrevo.

 

 

RL - Como você se definiria como escritora?

 

AS - A personagem do meu livro que tem realmente a ver com a minha postura de escritora é a Cecília. Acho complicadíssimo que o envolvimento profissional com a literatura resulte na formação de um escritor. Porque ele se torna um alucinado. Ouve vozes. Responde às vozes. E quer gritar alto para que outros escutem também essas vozes. Não gosto que digam que a literatura não tem qualquer função. Isso virou um clichê para deixar de responder uma pergunta importantíssima: "Qual o papel da literatura no mundo?". "Qual o papel da literatura no Brasil?". Se as grandes obras resistem até hoje, é preciso ouvir o encaixe dessas narrativas nas estruturas sociais de hoje. E o porquê de o conteúdo dessas obras ainda causar perturbação em alguns setores. A angústia do sujeito moderno se representa ali. Chega a ponto de gritar. Eu gostaria de produzir uma literatura que sempre devolvesse essa pergunta. "Literatura pra quê?". Esses que dizem que a literatura "não tem uma serventia?" é que estão sabendo se beneficiar e muito com o (mau) uso que fazem da literatura. Vão querer me dizer que não é bem isso que eu estou pensando. Mas não vão me convencer. A literatura é uma arma quente. Olha o Ferrez aí na contramão. De braços abertos no enfrentamento. Isso é bonito demais. Nós aqui em Curitiba também temos munição.

 

 

 

 

RL - Quais são suas principais influências?

 

AS - Tem uma crônica do Manuel Bandeira em que ele diz que o livro mais importante da biblioteca dele era um caderninho de anotações de Dona Santinha, mãe do poeta. Olha aí, a principal influência. Nem tem muita graça dizer grandes nomes da literatura universal. Então, em primeiro lugar, a minha principal influência foi a minha mãe: Dona Antonieta, que me comprava livros e achava bonito que os filhos dela apreciassem o estudo. Também tive bons professores — fundamentais. E meus amigos — os professores Kátia Klassen, Paulo Soethe, Julio Paulo Marcondes, bibliófilo respeitadíssimo —, essas pessoas queridas que sem pretensão partilham suas leituras comigo. Mas para falar um nome de escritor, que me ensina muito a escrever, digo: Luci Collin. Uma escritora de altíssimo nível, que não tem vergonha de ser escritora em Curitiba. E ainda instiga essa nova geração a dar o salto. Eu até diria que ela empurra.

 

 

RL - Como anda a literatura em Curitiba? Como anda a cena local?

 

AS - A literatura anda muito bem. Não só em Curitiba, mas no Brasil. O que falta são os leitores chegarem até ela. Há uma movimentação muito grande em torno da literatura. Aqui, alguns bares da cidade cedem seus espaços à recitação. É interessante. Aproxima os escritores. Incentiva a escrever. Escritor é um tipo carente. Ele quer ser mimado. O ideal seria que isso se democratizasse. Não ficasse só no circuito dos que escrevem. Não gosto de pensar que a literatura é um produto chique para ser degustado por poucos eleitos e descolados. Bobagem. Olha aí os nossos caras: Lima Barreto, João Antônio, Paulo Leminski. Gente sem frescura. Escreviam e pronto. Nesse ponto, a Fundação Cultural de Curitiba tem propostas bastante sérias com relação à universalização do produto literário. Nas bibliotecas dos bairros, nos projetos "Casa da Leitura" (em que os escritores são convidados — e pagos para isso — a fazer rodas de leitura com os freqüentadores locais). Eu gosto quando o povo sai ganhando. E não é balela, não. Se eu quero ser escritora eu tenho que saber que vai existir leitor pra o meu texto. Sem leitor, não existe escritor e vice-versa.

 

 

RL - Existe algum tema mais recorrente em sua literatura? Fale sobre.

 

AS - O tema recorrente de toda literatura é a palavra. O que se escreve com ela disfarça a máxima sutileza desse signo. O que eu quero ter sempre em consciência quando escrevo é isso: são palavras e com elas existe a pretensão de tocar a carne frágil do mundo. Quando o Graciliano criou o personagem Fabiano ele usou essa estrutura mínima de sentido de forma tão sofisticada a ponto de o leitor esquecer que esse cabra é de mentira. O Fabiano de verdade está no mundo. Despertar pela palavra essa realidade escondida, avulsa no mundo, esse homem humano, é o interesse. O tema recorrente da minha escrita é a palavra.

 

 

RL - Qual a importância da internet para a divulgação da literatura no Brasil?

 

AS - A internet espalha. Lança. No sentido mais dispersivo desse termo. O que acho que deve estar em questão é o "como juntar". Tem nisso uma responsabilidade. Revistas como a Germina, Vagalume, Cronópios, Zunái (conheço poucas), O Portal Literal, por exemplo, e mesmo blogues, como o Eraodito (e seus links), do escritor Marcelino Freire, vem arduamente buscando essa segunda (e imprescindível) ponta de lança que é fazer o ajuntamento cuidadoso do joio e do trigo. E selecionar. Tem joio a dácumpé! Tem trigo também. Cadê? Tem que achar. Dá trabalho! Os veículos que se arvoram a essa tarefa devem levar tudo na máxima responsabilidade. Conhecer os novos autores. Ler efetivamente o que eles escreveram. De minha parte, não tenho pressa. O tempo da obra depende de percursos misteriosos. No meu caso, para a minha literatura, a influência da internet é conseqüência de outras influências que eu, no lugar de escritora, considero muito mais importantes. A internet ajuda a divulgar. Dá mais dignidade ao escrever. Para alguns. Uma "impressão" de que está sendo lido. Mas não ajuda — em nada — a escrever melhor. Essa questão é unicamente do escritor. 

 

 

RL - Como você definiria o escritor brasileiro e qual a diferença deste em relação ao escritor curitibano? Quem é o escritor brasileiro?

 

AS - O escritor é o escritor. Isso é o mesmo que perguntar sobre a literatura feminina. Literatura é literatura. Não há diferença entre o escritor brasileiro e o escritor curitibano. Se um e outro forem, efetivamente, escritores, vão marcar sua voz literária no contexto das questões importantes de seu tempo. Nas questões que atingem diretamente sua condição no mundo. Essa marca é necessária. Importante a postura político-literária de figuras como Ferrez, Ruffato, Marcelino Freire, Ivana Arruda (que mata a cobra e mostra o falo). Aprecio. O escritor brasileiro é essa figura que há pouco tempo teve a língua solta e quer gritar, respirar. É o cara que está atento. Se abrirem uma brecha, ele diz o que tem a dizer. Mesmo que ninguém ouça. A palavra é lançada. E o escritor curitibano é igual. Debaixo das picuinhas, a intenção é bacanésima. Gosto muitíssimo dos meus amigos que escrevem. Existe uma esperança: Paulo Sandrini, Bárbara Lia, Luís Felipe Leprevost, Estrela Leminski, Carlos Machado, Greta Benitez, Mario Domingues, Fernando Koproski, Adriano Smaniotto, Marcelo Sandmann, Lindsey Rocha, Alexandre França, Luciana Cañete, Jorge Barbosa, Marília Kubota, Ricardo Corona, Amarildo Anzolin, Os Meninos do Pó&téias (grupo de Gloria Kirinus), os meninos da casa Kozak (grupo Hilário Lopes), os meus escritores do bairro (Biblioteca do Carmo), Ivan Justen, Otto Winck, Willian Tecca, Rodrigo Madeira, essa nova-nova-nova geração. Um povo cheio de vontade. 

 

 

RL - Por que as editoras têm tanta dificuldade de lançar novos nomes no mercado e os escritores acabam tendo que pagar do próprio bolso a edição de seus livros? Qual é a diferença entre os editores brasileiros e os de outros países?

 

AS - As editoras do Brasil não têm dificuldade de lançar novos nomes no mercado. O fato é que elas não querem lançar novos nomes, porque isso seria um investimento sem retorno a curto prazo. A Panda Books, por exemplo, é um selo editorial que foi alavancado pelo lançamento do O doce veneno da lacraia-azul — ou uma coisa assim, não lembro o título. Isso faz com que o bom livro se torne um produto caro e inútil. Inútil, não porque é coisa sem valor, sem função. Mas porque não movimenta discussões. Não movimenta debate. Não circula. Não vende. Não dá lucro! Essa dificuldade apresentada hoje com mais veemência, Osman Lins já apontava em seus livros Guerra sem Testemunhas e Problemas Inculturais Brasileiros (I e II), chegando ao ponto, inclusive, de fazer advertência ao escritor para os perigos das edições "do-bolso".

 

 

RL - Por que temos tão poucos leitores no Brasil?

 

AS - Tenho dúvida de que no Brasil haja mesmo tão poucos leitores. Minha experiência nas bibliotecas da periferia de Curitiba me fez perceber que existe uma vontade muito viva de deixar o livro participar do cotidiano das pessoas mais simples. Elas querem a Estrela da Manhã. O povo brasileiro é leitor desde que nasce. Gosta de ouvir histórias. Ouve com atenção. É um povo muito inteligente. Mas essa inteligência se perde numa massa de equívocos que o distanciam da palavra literária. Aquela que não tem interesse algum em doutriná-lo. Aquela que não tem interesse algum em que ele tenha metas e seja um super-feliz. Mas que o faz despertar como sujeito do mundo; no mundo. O estudante brasileiro, por exemplo, é um desavisado, coitado. Chega a ser um desaforo o que muitos professores picaretas fazem com a literatura. O estudante não aprende a pensar por si. Para não ter que ler o livro indicado para o vestibular, se empenha em decorar estratégias que chegam a ser mais complicadas que a leitura prazerosa deste ou daquele autor. E é preciso mais atenção aos cursos de Letras. Há faculdades particulares que não chegam sequer a abrir turmas nesses cursos porque a "clientela" não dá lucro. Desconfio que não seja só por isso. Desconfio que o leitor é um ser que pode incomodar muito a sociedade. Na Unibrasil, onde leciono Literatura Brasileira e Produção Textual, os alunos (muitos deles assegurados por programas bolsa-estudo) chegam depois de um longo dia de trabalho e discutem com sincero interesse o que a literatura tem a dizer sobre o mundo, sobre o embate com esse mundo cão. E também há um encantamento. Uma leveza. Boniteza mesmo. Há uma troca muito rica. Então não acho que faltam leitores no Brasil. Há um mau encaminhamento. Um trote no leitor. Mas que ele existe, existe. 

 

 

RL - Como você vê o incentivo à cultura dado pelo estado?

 

AS - Acredito que as iniciativas estão acontecendo. Programas como o PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura), uma proposta séria de democratização do livro no Brasil; projetos estaduais, ligados a prefeituras, com abertura de editais para várias setores culturais; isso ajuda. Mas ainda é muito pouco. Por enquanto, há muita saúva e pouca saúde. Não queria bater muito nessa tecla. Mas não tem como não insistir. A leitura é o que apura o gosto estético para apreciação de outras artes. O tom pode soar meio ressentido, mas a depreciação do professor no Brasil traz conseqüências drásticas para a sociedade. Não há lugar para uma orientação sincera, apaixonada, responsável. Escolhe quem pode escolher. Um professor brasileiro é um vencido. Um esgotado. O pobre leitor ou professor da periferia não pode escolher. E a elite no Brasil é escandalosa de tão ignorante. Parece loucura, e digo isso por alto, meio de forma ingênua, mas acredito que uma reforma curricular, orientada pelo estado, para cursos mais elitizados, como Medicina, Direito, Psicologia, em que o aluno primeiranista tivesse na grade obrigatória que ler e discutir textos literários que enfocam a problemática que eles vão encontrar no decorrer da profissão, tudo isso bem orientado pelo profissional da literatura, ia aprimorar muitíssimo a cultura brasileira. E ia assegurar o resgate da dignidade do profissional do magistério. Ia assegurar o resgate da dignidade do escritor brasileiro.

 

 

RL - Tem algum mote? Fale o porquê.

 

AS - Não sei se tenho um mote. O meu mote é a linguagem. E o movimento de partilha que a linguagem pode promover. A linguagem sem mistificação, como diz o Drummond. Mas estou apenas aprendendo. E se perceber que a Literatura não vai ganhar nada com a minha literatura: paro com a literatura e volto à Literatura.

 

 
 
junho, 2007
 
 
 
 
 
 

Assionara Souza (Caicó-RN, 1969). Autora de Cecília não é um cachimbo (7Letras, 2005). Mestre em Estudos Literários pela UFPR, com pesquisa na obra Retábulo de Santa Joana Carolina, de Osman Lins. Leciona Literatura Brasileira e Produção Textual na Unibrasil. Vive em Curitiba. Troca idéias de leituras no blogue Cecília Não é Um Cachimbo.

 

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Rodrigo de Souza Leão (Rio de Janeiro, 1965), jornalista. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele, entre outros. Participou da antologia Na Virada do Século — Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002). Co-editor da Zunái — Revista de Poesia & Debates. Edita os blogues Lowcura e Pesa-Nervos. Mais na Germina.