conto policial

A campainha tocou. Através do olho mágico, um homem de ar soturno, chapéu e terno cinza. Abri. "Polícia", disse, e foi entrando sem cerimônias. Caminhou até a poltrona da sala, tirou o chapéu e se sentou. Sem saber o que fazer, perguntei de maneira idiota se ele gostaria de beber alguma coisa. Me perguntou se tinha uísque. Tive vontade de mandar ele à merda, mas por algum motivo me dirigi à cozinha e voltei com uma garrafa de doze anos e dois copos com gelo. Servi, acendi um cigarro e me sentei no sofá. Ele acendeu um charuto. Parecia não ter pressa. Deu um bom gole no uísque e fechou os olhos, como se estivesse sentindo a bebida descendo o esôfago, e assim ficou por alguns segundos, olhos fechados. Seu cabelo era grisalho. Impaciente, perguntei o que desejava. Ele sorriu de forma quase imperceptível, me encarou. Continuava calado. Aquilo já estava começando a me irritar, quando, por fim, ele disse: "belo dia, não?", deu uma tragada no charuto e expirou a fumaça para oeste, pachorrento. Seus olhos não tinham brilho. Eram olhos de velho, foscos e acinzentados. Terminou de beber seu uísque e se levantou. Colocou o chapéu, olhou mais uma vez para mim e se dirigiu à saída. Sem olhar pra trás, bateu a porta e se foi. Me dirigi à janela. O dia, de fato, estava belo.



muito fácil

Moro com minha mãe e meu tio, tipo, sozinha. Minha mãe é uma vaca, mas isso não vem ao caso. O apartamento é de três quartos, carpete cinza, uma planta na sala, um som no meu quarto, uma televisão na minha mãe, um piano no meu tio. Meu tio é grisalho, talvez tenha quarenta anos, talvez sessenta, não sei. Não fala, nem é mudo. Passa o dia bebendo uísque e dedilhando o piano. O piano não tem cordas. Tio não tem amigos, só sai pra comprar cigarro. Às vezes, quando eu volto do colégio, entro em seu quarto e fico observando. Quando ele me vê, abandona o piano, dá um gole no uísque e fica olhando pra mim, sem dizer uma palavra. Nem eu consigo falar nada, fico paralisada por minutos, sem conseguir me mexer. Não sinto prazer. Não sinto meus pés. Tio nunca tranca a porta, já é trancado. Às vezes, me oferece uísque, eu dou um gole e devolvo. Na escola, eu tenho uma amiga: Marcela. A gente passa o intervalo juntas, fumando na barraca da rua de barro. A escola é muito fechada e cheia de gente. Marcela é bonita. Eu gosto quando ela me abraça. Manoel, barraqueiro, conversa com a gente. A gente come coxinha e bebe guaraná. A coxinha é péssima. A mulher de Manoel que faz. Manoel vive com um walkman, ouvindo metal. Quando nos vê, tira o fone, pra conversar com a gente. Ele gosta da gente. A gente gosta dele. Uma vez, levei Marcela pra conhecer meu tio. Quando a gente entrou no quarto, ele parou de dedilhar o piano, deu dois goles no uísque e ficou nos olhando. Ficamos paralisadas, não conseguimos nos mexer. Não ficamos com tesão. Nunca assistimos aula. O porteiro nunca quer deixar a gente sair do colégio, mas a gente empurra ele e passa. Muito fácil. Então a gente vai pra barraca. Minha mãe não gosta de meu tio. Eu não gosto de minha mãe. Meu tio não gosta de ninguém. Marcela gosta de mim, e Manoel de todo mundo. Não sinto tesão por Marcela.








estória de amor

O menino e a menina se encontraram na entrada do cinema. "Que bom que você veio", disse ela, seus olhos grandes e esquisitos. Lindos. Ele sorriu amarelo, puxou uma faca e enfiou no braço da menina. A faca lá ficou, o sangue brotando. A menina, surpresa, seus olhos mais lindos do que nunca, retirou a faca devagar, com dificuldade, e a devolveu pro menino, que pegou a arma e voltou a esfaqueá-la, dessa vez na barriga, na região do baço. A menina suspirou, melancólica, quase entediada, e puxou a faca novamente, uma leve expressão de dor em seu rosto. O gesto levou alguns segundos, pois a lâmina rasgava ainda mais sua carne quando era puxada, e ela, é claro, praticava a operação com cautela. A menina lhe devolveu a faca, sua blusa branca manchada de sangue. O menino, a mão trêmula, esfaqueou novamente a menina, dessa vez no fígado. Ela olhou para baixo, na direção da ferida, e viu o sangue escorrendo lentamente. "Assim não chegaremos a lugar nenhum", disse, esmorecida.







suave é a madrugada

Essa mulher que está ao meu lado, preto e curto o vestido, me olha com ódio, e uma garrafa de cerveja na mão. Lá fora, as estrelas, e o som dos carros. Ela pega o cinzeiro e atira. Me esquivo. Cinzeiro colide com parede. Seus lábios tremem e uma espuma escorre de sua boca. Demência. Inerte, não penso. Quando era guri, nunca imaginei que fosse passar por uma situação dessas. Um revólver e uma faca. Quatro rifles automáticos. Ela me ama.

Paulo Bullar nasceu em Salvador (1980) e mora em São Paulo. Publicou o livro de contos Húmus, em 2002, pela editora Livros do Mal - www.livrosdomal.org