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Alguns poemas da Marquesa de Alorna

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A Marquesa de Alorna, Condessa de Oyenhausen-Gravenburg (com os nobres, como se sabe, a gente enfileira as distinções), foi uma nobre educadíssima, bela e muito delicada, que se chamava pelo arcádico pseudônimo Alcipe, ou o de Lília, como de praxe na época1. Viveu desde os nove anos com mãe e irmãs num convento para escapar à perseguição do Marquês de Pombal2, que massacrou sua família, os Távora, e fez seu pai fugir para o exílio.

Seu conhecimento singular de poesia inglesa e latina (traduziu Alexander Pope e Thomas Gray, parafraseou Horácio, Ode II, 20, como lemos em seu poema que começa "Da inveja vencedora") trouxe para a parte aproveitável de sua própria poesia uma escrita precisa e um refinamento rítmico, como se pode observar em "Oferenda aos Mortos", ou mesmo a peculiar ambigüidade sexual de algumas de suas odes bem-escritas. Bastante difícil encontrar na mesma época um uso tão suave do metro e uma sutileza de escrita encoberta que fugisse dos clichês tomados insensivelmente de Virgílio.

O lesbianismo (factual ou sonhador) nos conventos onde se educavam as filhas da nobreza de Portugal ainda é considerado meio com reservas pudicas, todos muito suscetíveis a possíveis escândalos. Imaginar, então, o que significava escrever sobre isso no século XVIII, sendo uma delas, e em verso.

A dificuldade circunstancial, no entanto, nunca foi um empecilho efetivo para o engenho.

Leríamos num dos poemas de Bocage, o desbocado — ou ao menos atribuído a ele em geral — a acusação de que certo padre da roda dos salões poéticos da Marquesa na verdade a cortejava. Bocage, que dedicou seus poemas à "Excelentíssima Senhora Condessa de Oyenhausen", que ele admirava e que o defendeu ao menos uma vez (ele vivia enrolado em sua própria língua), insinua um monte de coisas no tal soneto.

 

Língua mordaz, infame e maldizente,

Não ouses murmurar do bom prelado:

Inda que o vejas com Alcipe ao lado.

Amigo não será, será parente:

 

Geral da Ordem, pregador potente,

No jogo padre-mestre jubilado,

E também caloteiro descarado

Pode ser que o repute alguma gente:

 

E que te importa que fornique a moça?

Que pregue o evangelho por dinheiro?

Que em vez de andar a pé ande em carroça?

 

Talvez que disso seja um verdadeiro

Dos monges exemplar, da Serra d'Ossa,

Pois que dos monges é hoje o primeiro.

 

Sabemos também que o pai da Marquesa queria ver Filinto Elísio longe da filha, pois desconfiava da amizade deles e da freqüência com a qual o poeta visitava-a no convento. E sabemos suficientemente também das aventuras freiráticas de Casanova no Histoire de ma vie, daquele mesmo século XVIII. Tudo amostras exemplares daquilo que os livros ainda deixam de mencionar.

Mas a Marquesa de Alorna é sempre de notável discrição & sobriedade, certamente conhecedora do encanto que sua beleza provocava à volta, como é possível notar no retrato posado que dela fez — e felizmente restou inteiro — o pintor Franz Joseph Pitschmann (1758–1834), provavelmente em seu intermezzo em Viena. Teremos os poemas de sua juventude no convento de São Félix em Chelas, e os da maturidade, que tanto agradam aos que ficaram aliviados de fazer dela um exemplo de mãe e esposa, a partir de seus poemas sentimentalóides à família.

Mas há poemas em que ainda não se encontra o didatismo moral, nem a discurseira. Como a "Cantiga Anacreôntica" de que transcrevo o trecho final, esperto:

 

Sai do seio do descanso

Vigorada a fantasia;

As idéias são mais claras

Na hora em que nasce o dia.

 

Depois de um sono quieto

Tudo acorda com vigor:

Por que razão quando dorme

Não desperta assim o Amor?

 

Ou quando escreve em uma epístola, por exemplo, à sua amiga, a Viscondessa de Balsemão (Natércia):

 

Natércia, já não te lembra

Uma amiga solitária

Que vegeta nestas selvas,

Ou luta co'a sorte vária?

Sabes como passo os dias,

Sem te ouvir ou sem te ver?

Se as Parcas me não acabam,

É que têm mais que fazer.

 

E acrescenta, com refinada gentileza, pedindo uma prova de que sua amiga a têm na lembrança:

 

Dá-me provas disto, Amiga,

Lendo no meu coração.

Conforta-o de quando em quando,

O Céu te achará razão.

Lê neste o que te não digo,

Pois, firme por natureza,

Sei lançar, quando convém,

Duros grilhões à tristeza.

 

                                (negrito meu)

 

O que demonstra um trabalho razoavelmente complexo de dizer o tanto indizível, como leremos ainda numa outra epístola ("A TIRCE", que era também amiga sua, a condessa de Vimieiro), & que começa "Fugiste de meus olhos, doce amiga!:

 

Lília, Lília fiel, que amor receia,

Que após outra mais firme divindade,

Julga, pela delícia que a recreia,

Pequeno o coração para a amizade.

 

cheio da encenação de uma dúvida, que, como em outros poemas, põe a Marquesa de Alorna muito acima de seus contemporâneos preferidos até então (como Filinto Elísio), na verdade meros reprodutores de clichês árcades (ou bons tradutores de poesia latina, como Elísio novamente), assim como os mais famosos brasileiros.

Vemos a Marquesa várias vezes num combate de idéias consigo mesma. Este poema é uma cantiga em que a encontramos tentando dar forma mais ou menos definida ao amor:

 

Quem diz que amor é um crime

Calunia a natureza,

Faz da causa organizante

Criminosa a singeleza.

 

Que vejo, Céus! Que não seja

De uma atracção o resultado?

Atracção e amor é o mesmo:

Logo, amor não é pecado.

 

Ou também nesta ótima cantiga:

 

Porque se ama, ou se não gosta,

Inda está mal definido;

O acaso, o fado, a estrela

Forjam armas a Cupido.

 

Se com desdéns recompensa

Zelina meu vivo ardor,

Não tenho de que queixar-me,

Não depende dela o amor.

 

Por ela morro; e não pago

De Alcina os ais com os meus.

Ninguém a razão me indague,

Procure o enigma nos Céus.

 

 

Ela escreveria também a epístola notável "A UMA FREIRA EM CHELAS", repleta de subentendidos:

 

Quando em silêncio adormecem

Todos os seres mortais,

Ligeiros à tua cela

Voam saüdosos meus ais.

 

Dize, leste os versos de ontem,

Onde insculpiu a ternura,

Comovida ao contemplar-te,

Indícios de mágoa pura?

 

Agora que tudo dorme,

Agora que só se escuta

De noite o surdo rumor,

Reflexo de alguma gruta;

 

Quando toda a natureza,

Envolvida em sombra densa,

Dá liberdade aos suspiros

Que nascem da mágoa intensa;

 

Corre o vago pensamento,

E no pequeno recinto

De uma cela, aí te encontro,

Para explicar-te o que sinto.

 

Eu te vejo, oh Céus! Que vista!

Aprisionando entre flores

Os corações delicados

De mil cativos amores.

 

Das perfeitas mãos te nasce

Ora murta ora alecrim,

Ora imitando teu rosto

Cândido e lindo jasmin.

 

Que idéias ternas te inspiram,

Quando o gosto da leitura

Diminue brandamente

O cargo da desventura!

 

Nos discretos caracteres,

Vão teus olhos magoados

Ora lendo o seu conforto,

Ora o decreto dos Fados.

 

Já te lanças brandamente

No seio da paciência;

Já te recreia admirar

O aspecto da Providência.

 

Eu te sigo, suspirando,

E teço então sobre a lira

Estas cantigas saudosas

Que o contemplar-te me inspira.

 

Se meus versos te consolam,

Sempre a branda simpatia

Conduzirá no silêncio

A Musa que teme o dia.

 

"A Musa que teme o dia", a Marquesa escreve.

Fez versos sobre a ciência de sua época e era leitora de Voltaire. Famosa por sua beleza física, documentada naquele único retrato que nos resta dela, foi igualmente famosa por seu talento intelectual, embora qualquer leitor possa perceber nela também muita ingenuidade balofa & idealista; não obstante, escreveu um monte de versos inteligentes e belos, e não apenas os que juntei aqui. E pôs, como um epitáfio de si mesma:

 

O Tejo me viu com vida,

Sem ela o Danúbio e o Reno.

 

Como lemos no poema sobre o clima na Inglaterra,

 

Bárbaro clima,

Que escolhe a sorte

Para que a morte

Reine sem dó!

 

A terra perde

A vida, a cor,

Perde o vigor,

E gela só.

 

Saraiva espessa

Torpor espalha,

Tudo amortalha

A neve só.    

(...)

 

ela detestava o frio. E dividiu muito curiosamente a própria vida naqueles dois versos anteriores, se consideramos sua biografia.

 

 

 

 

O ditado diz que há quem não diferencie "a cauda da tromba": é um modo figural de representar uma confusão básica sobre alguma coisa.

 

 

Ou isso

 

Marjorie Perloff já demonstrou (no livro 21st-Century Modernism) como funciona o esquema dos filhos tortos do modernismo nos EUA, falando dos que pegam o verso livre, sem osso, que sobrou do pior modernismo, e voltam com um "lirismo" frouxo de burocrata, de ficar olhando pela janela ou refletindo em diminuendo sobre sua minúscula & enfadonha vida burguesa.

São os que ganham prêmios, os que são lidos, os que chefiam grandes projetos culturais. E obviamente vão desaparecer num piscar de olhos.

Porque a minha questão, aliás a questão mais profundamente incômoda dos nossos dias é: como abarcar em linguagem a experiência, hoje?

 

 

Geeks & nerds

 

O que chateia é como muitos poetas são miúdos em suas experiências, como eles estão distantes das outras pessoas, quase como uns esquizofrênicos ou uns geeks ou uns nerds com coisas que só interessam a eles mesmos, do jeito que eles as produzem.

Permanecem no mesmo processo tecnicista (ou são o seu oposto simétrico, o que suplica popularidade a cada linha). Mexem em coisas aqui e ali, & resulta que a poesia vira um troço esquisito para pôr na sala dos descolados, mas que não interessa em nada pro resto da experiência humana. É uma coisa genérica, ou uma poltrona de designer.

É o contrário da poesia, já que a  poesia é o específico. E não um artefato para coffee table, ou para assentar o traseiro em cima.

 

 

Gertrude Stein contra a crítica mecânica

 

Quando ela fez o que fez (criar um curto-circuito no sentido das frases de um texto), isso tinha um sentido pontual, o de desautomatizar os burocratas da leitura e os críticos metidos a sabichões. Era dizer a eles: "Não, você vai ter de esquecer o que pensa que sabe. Vamos lá, de novo, da capo".

Truque inteligente, imprevisto. Mas dá no quê, repeti-lo? Niente. E é um grande desrespeito com gente de idade, como Stein ou Duchamp.

 

 

Questões mal formuladas

 

"Como pode não haver um diálogo entre a poesia e a tecnologia hoje?". Eu ouvi perguntarem isso com cara de estupefação & desconsolo.

Você não obriga um indivíduo diferenciado a pensar como um bloco de gente pensa. Isso não faz nenhum sentido.

É o mesmo que perguntar, a respeito de Hölderlin: "como um poeta do fim do século XVIII e começo do XIX não dialoga com a indústria nascente, com as teorias sociais e políticas?".

Pois é, Hölderlin estava pouco se lixando. E não obstante…

 

 

Arte conceitual

 

A arte conceitual deriva de transformar Duchamp numa mania & num arremedo: o conceitual reproduz o princípio que animava Duchamp. Não a arte como um todo, mas especificamente Duchamp.

Copia as idiossincrasias de apenas 1 homem brilhante, o diminui, muda suas descobertas em tiques.

 

 

Pastores de ovelhas eletrônicas

 

A pior coisa que a poesia poderia fazer seria seguir as artes plásticas pra esse buraco, porque em algum lugar no futuro as pessoas terão distanciamento suficiente para perceber isso, e daí a parte final do século XX — e sabe-se lá ainda quantos anos mais do século XXI — será vista como um século XVIII, um século sem poesia.

Não porque não houvesse poetas no século XVIII (o leitor & a leitora indignados podem se encaminhar à minha tradução da épitre de Voltaire, ou aí em cima à Marquesa de Alorna, ou ao meu confesso gosto pelo "Bilhar" de Nicolau Tolentino, ou mesmo o "Reino da Estupidez", que prova que não lido com as coisas num sentido absoluto), mas porque o que se lia & o que ficou majoritariamente do período se reduz à monomania neoclássica dos pastores e dos imitadores muito tardios & muito incompetentes de Virgílio.

(A tradução que Paul Valéry fez das Bucólicas mandou o século XVIII pra gaveta, ou para possível curiosidade sociológica & bibliográfica de estudiosos do período, e só).

Corre-se o risco de se repetir essa história, mas com diluidores dos processos de, um-hum, "arte conceitual" (assim como o mau uso de idéias como a concisão poundiana pegou no Brasil & arruinou no mínimo duas décadas de poesia, sem que o pobre homem tivesse algo que ver com isso, ele que queria uma poda no jardim das Musas).

Mesmo os filósofos estão hoje com uma dificuldade de pensar com um mínimo de clareza, & quando você vê o que os artistas chamam "conceito", a coisa desaba não alguns degraus, mas rola toda a escadaria & cai de cabeça.

Eles caem, os conceituais, naquela excelente blague de Jean Cocteau no Orfeu, a do poeta que lança um livro todo em branco, creio que entitulado Nuages. O personagem de Jean Marais fica puto com o excesso de masturbação mental & lança o livro longe.

 

 

Crítica Literária

 

Sei que vez por outra acabo falando mal da crítica, ou melhor, de particularidades infelizes da crítica literária que se espalham neste país como um incêndio californiano.

A maior parte dos críticos ronda o assunto mas não entra nele; entope as pessoas de teoria e elucubrações nas universidades, sem ler os textos; escreve resenhas em que avulta a teoria, ou o mero release.

É isso o que me incomoda, resumindo em três linhas.

MAS aqui vão algumas recomendações: a crítica de Otto Maria Carpeaux, a dos irmãos Campos (sobretudo a de Augusto, anti-acadêmica, e a de Haroldo quando está no mesmo espírito) e a de João Adolfo Hansen: há o trabalho de Antonio Medina Rodrigues recuperando Odorico Mendes, o livro cultíssimo de Joaquim Brasil Fontes, Eros, Tecelão de Mitos & também o novo livro de Paulo Franchetti, que comentei há uns três meses.

Não devemos esquecer o trabalho essencial de Andrade Muricy, que compilou os dois volumes de antologia do período simbolista brasileiro, onde há realmente muito lixo, mas onde você encontra com destaque Marcelo Gama, Pedro Kilkerry, Maranhão Sobrinho, entre outros poetas da estreita faixa do sine qua non.

Há uma peça fundamental para quem queira saber ler prosa, a crítica sagaz que Machado de Assis fez a Eça de Queiroz por seu romance (porcamente) imitado de Flaubert, chamado O Primo Basílio. Machado sublinha a inverossimilhança ridícula de se apelar ao melodrama da chantagem com cartas, num romance que se pretendia sério e bem construído.

(Digo que essa peça de crítica é essencial porque, uma vez que você entenda o que ela DE FATO diz, mais de dois terços da prosa escrita em português viram pó).

A propósito disso, lembrar o fino ensaísta português, António Sergio, que escreveu certa vez qualificando a geração de Antero Vencido da Vida de Quental & Eça de Queiroz de "Terceiro Romantismo". Nem se deu ao trabalho, aliás redundante, de explicar isso.

(É evidentemente uma pena que não tenha sido seguido nas universidades e no ensino em geral, repetindo-se ao invés disso uma periodização imprestável que chama "realistas" àquele monte de mal-disfarçados sentimentais).

Pensando ainda nos portugueses, tenho muita estima por Camilo Castelo Branco — que por outro lado escreveu romances medíocres (excetuando o hilariante Eusébio Macário) —, por ter sido praticamente o único indivíduo sensato, defendendo Sousândrade como o mais engenhoso & forte poeta brasileiro do período.

A gramática de João de Barros, de 1540. Não só aborda a língua de um ponto de vista menos burocrático e mecânico do que estamos acostumados a ler, como também escreve de modo saboroso e destaca aspectos significativos, como a consideração de duração no som.

Trabalhos pontuais de resgate devemos a Nelson Ascher (editando o livro importante de Luís Aranha), a Sebastião Uchôa Leite (chamando a atenção num artigo para Marcelo Gama, já assinalado por Andrade Muricy) e à UNICAMP, que disponibilizou os poemas do Sapateiro Silva em edição virtual, etc.

Não está em questão, meus queridos, se Dirceu Villa subscreve cada linha dos nomes citados acima. O que está em questão é: diante de tanta conversa fiada, tanto livro publicado sobre literatura brasileira, e coberto de inutilidades, alguém poderia se perguntar em desespero, "mas o que eu devo ler?".

Na minha modesta opinião, a sólida, sucinta & respeitável lista acima.

 

 

Notas

 

dezembro, 2007