©comstock images

 

 

 

O elefante através da fechadura

 

Em julho estive na FLAP, festival de literatura de São Paulo, no espaço dos Satyros (Praça Roosevelt), a convite de Ana Rüsche e Paulo Ferraz. A FLAP foi composta e proposta pelo pessoal do centro XI de Agosto e da FFLCH da USP como um festival alternativo à FLIP, de Paraty. O que é muito interessante, porque o evento de Paraty é quase exclusivamente um espaço para bestsellers, celebridades e medalhões — não obstante, houve alguns instigantes crossovers.

O caso é que, ao responder uma pergunta honesta e cheia de percepção, indagando sobre a homogeneidade na poesia dos últimos anos (inclusive sob o aspecto do vocabulário), confirmei que se pode dizer que a poesia está num período de entressafra, aguardando algo acontecer. E isso detonou certo bafafá e certa indignação. Logo alguém soltou: "O que é uma safra de poetas?"

Para que as tendas pretas dos Satyros não viessem abaixo, respondi dizendo simplesmente que, se você soubesse como funciona uma colheita agrícola, era a mesma coisa. O pessoal riu e fim.

O que é uma safra de poetas?

Uma figura de linguagem para dizer que não temos exatamente o melhor dos mundos possíveis no que diz respeito à mui nobre arte cultivada nos jardins do Parnaso. Há períodos que apresentam certo refluxo em determinada arte, e a poesia exige algo dos leitores e dos poetas que não vemos acontecer hoje. Qu’est ce?

Todos sabemos que a poesia é a modalidade mais complexa (até recessiva) de linguagem escrita; que depende de algumas técnicas já existentes ou inventadas de composição de palavras; que, por isso, exige uma porção de coisas de seus leitores, para que junto com a expansão de seus conhecimentos intelectivos e sensoriais, eles sejam capazes de encontrar prazer na leitura. A leitura e a escrita como trato civilizador vêm desaparecendo, pois percebam que não há, socialmente, sequer por vaidade de classe, a necessidade ou o gosto das pessoas de se educar. Isso reduz de modo drástico a quantidade de bons poetas e de bons leitores.

[Empurraremos um elefante através de uma fechadura].

 

Peças de quebra-cabeça

 

O século XVIII1, engessado no outro extremo, o do extremo maquinal e do programático sinônimo de previsível (não por acaso à beira da Revolução Francesa), não teve também grandes poetas. No fim dele, ingleses e alemães se distinguíram, porque não eram coagidos pelo excessivo embonecamento da cultura latina francesa e italiana, nem pela ruína financeira e conseqüente marasmo dos ibéricos. No Brasil, por exemplo, havia pastores virgilianos (que já haviam se tornado farsescos há dois séculos, culpa do sapientíssimo Cervantes) gemendo de amor em metros medidos.

Hoje temos um mundo perdido em economia e tecnologia, as duas palavras mágicas. As pessoas não têm tempo para ler2 — sequer têm tempo para viver, loucas atrás de um emprego seguro, acionadas no meio da rua por telefones celulares, invadidas em suas próprias casas por todo tipo de aparelho que suga suas mentes, sem nada em que sejam capazes de acreditar juntas —, e por causa disso são, na maioria das vezes, muito ignorantes, por vezes a despeito de suas próprias vontades, tapadas pelo concreto das diretivas sociais. Compreendam: trata-se de um índice de preguiça e morosidade bastante negligenciado quando se propõem avaliações de por quê.

Uma arte que pensa e lembra, numa época em que não se quer pensar, em que se quer esquecer.

 

Diálogos na Officina (I)

 

— O que é a poesia?

— Considerando a escrita, ela é basicamente o verso, que pode ser a unidade de sentido ou a unidade rítmica, ou unidades silábicas aglutinadas e dispostas segundo um padrão idealizado pelo poeta (já tiveram o bom-senso de dizer que "o poeta é quem escreve as próprias regras"); mas ela evidentemente se amplifica, abarcando também coisas — e não palavras nem sentenças — que sofrem uma transformação para figuras de linguagem, e esse é o caso, por exemplo, do que se chama poesia visual.

      E você acha que é possível engolir uma coisa dessas como uma definição?

— Nem é preciso. Isso é apenas uma maneira eficiente de não se ver discutindo com outras pessoas sem perceber que os dois paspalhos dizem o mesmo de duas maneiras diferentes. Além do mais, como você deve saber, nenhuma arte deve ser tratada como ciência.

— De certa forma eu até seria capaz de dizer que nisso algumas ciências ultrapassaram o limite mesquinho da certeza se inscrevendo diretamente num campo especulativo; aproveitando, você acha que a poesia ainda interessa?

      Você quer dizer ao público em geral ou a meia-dúzia de supereruditos?

      Oh, ao público, claro.

— Vou te dar um exemplo cheio de sabedoria: houve um desses críticos que disse mais ou menos o seguinte, que o valor de uma obra como a de Shakespeare não era eterno, e que os tempos viram diferentes maneiras de se ler Shakespeare, etc. Perceba como a segunda parte do argumento é correta e límpida, porque as camadas de leitura dos textos de Shakespeare evidentemente o transformaram no que é hoje, para mal ou para bem. Mas ela não tem conexão real com o que se disse antes.

A primeira parte é cretina. Se você diz eternidade, é óbvio que nenhum de nós pode argumentar; se com eternidade se quiser dizer todo o tempo em que ainda houver seres humanos com aptidões suficientes, é certo afirmar que durará, porque do contrário teríamos de imaginar um cenário no qual nenhum ser humano fosse capaz de compreender ou apreciar as excelências do texto de Shakespeare, ou que conseguissem erradicar todos os muitos milhões de exemplares de seus livros, e todas as referências a seus textos em outros livros, etc. Não passa de uma estupidez.

      De acordo, mas você respondeu a minha pergunta? Juro que não sei dizer.

— A poesia nos interessa sempre, porque é um dos meios mais refinados de comunicação que, como toda arte, expande nossa capacidade de sentir & pensar.

— Prefiro quando você fala assim. Quando dá muitas voltas eu fico zonzo. De qualquer forma, essa sua definição ainda não resolve o caso: isso que você chama de poesia não estaria ameaçado por outras formas de comunicação, ou mesmo pelo ritmo artificial da vida das pessoas?

— É um modo de ver. As coisas parecem bem sombrias, mas a irregularidade do fluxo é um aspecto da natureza. Nem mesmo um facho de luz é regular como se supunha.

Veja só, não faz muitos anos, um poeta escreveu o seguinte: "At the end of this sentence, rain will begin./ At the rain’s edge, a sail", num poema em que o gesto de se enunciar uma coisa se confunde com a própria coisa, ou a prevê, como a gente lê logo no primeiro verso. Mesmo que a poesia enfrente um período de truculência e ignorância, você ainda vai encontrar quem seja capaz de acreditar nisso que acabei de ler para você, e que seja capaz de escrevê-lo assim como eu li.

      Então a poesia é um modo permanente de enfrentamento?

      Ou não. Ou o oposto disso.

      Por quê?

— Porque a poesia (repito: como toda arte) depende da percepção. E a percepção é variedade, cada um percebe como pode ou quer. A arte é amoral, irresponsável, absoluta. Muitas áreas cinzentas.

      E a realidade? As pessoas têm falado em realidade, exigido realidade na arte.

— Pedem algo que não existe. Deveriam pedir que os artistas fossem fiéis às suas percepções, que é a única coisa que se pode pedir ou mesmo exigir. Ou, dizendo melhor: existe a realidade, mas como representação. Compreende? A realidade é suscetível ao modo como se olha para ela.

É por simplismo, ausência de vida ou imaginação (ou as três coisas) que alguém se apega a um conceito unívoco de realidade, que, normalmente, é associado com o lado duro da vida. Perceba que quando dizem realidade, estão querendo dizer "dor", "dificuldade", uma vida reduzida à sobrevivência, e lições mais ou menos objetivas de comportamento. Pode-se dizer que isso é um valor, digamos, ou que as pessoas têm valorizado isso, mas seria ridículo dizer realidade ao invés de se admitir que não passa de um mero valor definido, específico e finito.

      Mas a arte não deve enfrentar nem mesmo, por princípio, a sociedade massificada?

— Pessoalmente, eu lhe responderia com a seguinte alegoria: só alguém muito estúpido ou suicida lutaria com um inimigo maior, mais bem armado e protegido. Seria como Davi usar sua funda num Golias de armadura. A tola pedrinha tocaria um ligeiro tinido no elmo e depois haveria uma cena muito desagradável de massacre.

      Você diria que esse Golias de armadura é a sociedade de massas?

— Você claramente subestima a carapaça da ignorância. E eu poderia acrescentar umas centenas de tentáculos no lugar dos dois míseros braços de Golias. Um homem inteligente faria do monstro acéfalo seu companheiro, e iria lentamente refinando seus hábitos; talvez ele até acabasse lendo Montaigne.

      Estou impressionado em ver o seu otimismo.

      Não é contagiante?

 

Fim do Diálogo I

 

Afogar-se num sonho

 

Ninguém seria tolo o bastante a ponto de não perceber que os dois séculos ingleses que têm Shakespeare como centro foram séculos em que a poesia expôs grande parte de seu diversificado atrativo. Wyatt, Spenser, Donne, Marvell, Webster, Boyd, Marlowe, etc, etc, etc. A poesia era veículo tanto de prazer, mirabilia, quanto de conhecimento. Acreditava-se no poder mágico de transformação de que eram capazes as palavras. E daí Spenser, por exemplo, foi capaz de escrever versos como os seguintes: "Such merimake holy Saints doth queme,/ But here sytten as drownd in a dreme". Deixando de lado todo o engenho sonoro desses dois versos (que não vêm de The Faerie Queene, mas de The Shepheardes Calender), era possível dizer que alguém estava "como que afogado num sonho".

Usei no outro parágrafo a expressão "diversificado atrativo". O sentido disso é justamente o contrário do que transpareceu nas perguntas, durante a FLAP, sobre a homogeneidade da linguagem na poesia chamada contemporânea: e esse é um outro desdobramento do que seria uma entressafra. A chamada Renascença inglesa, por outro lado, é um bom exemplo do seria uma safra. Como a dos séculos XII e XIII na Provença também o é.

A homogeneidade é um veneno, e dos ruins.

 

Ubi sunt?

 

Silviano Santiago apareceu, creio que em O Estado de São Paulo, dizendo que faltava ousadia à literatura atual.

Obiviamente, Santiago desconhece a literatura que está longe das grandes editoras, que quase não é publicada, de autores entre os 20 e trinta anos. E isso nos dá uma dica também: é nesses autores que devemos concentrar a nossa atenção. As grandes editoras curvam-se servis a um deus chamado Mercado. É uma prospecção inútil, porque quando se afirma "falta ousadia à literatura atual", não se sabe, julgando por esses espécimens avariados, o que é literatura atual.

Não falta ousadia à literatura. Falta literatura nas editoras, falta conhecimento às pessoas.

Ou seja: se a literatura passa por uma entressafra, esse período pode estar para acabar. A pergunta é: nessas circunstâncias editoriais, saberemos que ele acabou?

 

I think the music corporations should stop fucking with the way people listen to music, stop trying to fit everything in a fucking box, start taking some fucking risks.3

 

Foi o que disse Thom Yorke, do Radiohead, sobre a indústria musical, referindo-se à boçalidade da recepção sobre o ousadíssimo trabalho da banda, Kid A (que, não obstante, vendeu adoidado).

Com pequenas alterações em palavras-chave, o mesmo vale para a indústria editorial.

Principalmente: "começar a aceitar alguma porra de risco".

 

Portanto,

 

A poesia brasileira poderá (ou deveria?) viver um momento único em sua história. As longas preparações de terreno exigidas por uma arte como essa começaram no bom momento do chamado modernismo, de meados do século XX (lembrar que Drummond, por exemplo, morreu na década de 80) e ganharam um novo alento com o grande momento de traduções, iniciado pelos poetas concretos, principalmente a partir de 60.

Esses dois aspectos importantes têm sido digeridos desde então na literatura brasileira: uma poesia que propunha vários níveis de diversidade após incansáveis ondas de sólido provincianismo (que tendem a ser cíclicas, sobre uma base imóvel razoável), e a abertura para muitos textos estrangeiros que antes, em sua maioria, chegavam mal transpostos, ou simplesmente não chegavam4.

Poetas bons escrevendo hoje? Temos, inclusive com uma poesia amadurecida que é o avesso do folclórico. Donizete Galvão, Horácio Costa e Leonardo Froés são os exemplos mais imediatos que me ocorrem, e não são os únicos. Suas obras? Ainda pouco lidas, fala-se pouco deles, não os vemos nem os ouvimos como deveríamos.

Flávia Rocha, Paulo Ferraz, entre os mais novos, escrevendo livros que é possível ler inteiros sem se esbarrar num clichê, numa oca pretensão, nada. Mas não os vemos também. Meu próprio livro teve a boa sorte de ter sido lido em três jornais de grande circulação por três leitores que escreveram sobre ele textos inteligentes e instigantes, mas também desapareceu após.

Per che? Ninguém sabe. Ou sabe, mas é como se não soubesse.

 

Diálogos na Officina (II)

 

      E como se julga poesia?

— Você pode julgar depois de ler e apreciar. Em duas partes: uma delas é técnica, e tem a ver com os meios que se usa para conseguir determinado efeito; a outra, evanescente e misteriosa, tem a ver com uma habilidade mágica (ninguém vai admitir que leva tal coisa em consideração, são todos muito sérios, mas leva).

      E como funciona?

— Não é muito diferente de como saber se um filme foi bem dirigido. Você considera a amplitude de recursos de determinado poeta (som, imagem, modo de ligar as coisas num discurso engenhoso); considera se não levou mais tempo ou palavras do que deveria; a ligação da técnica empregada com o efeito desejado; como acrescentou coisas naquilo que refere como experiência prévia (a invenção, avis rara); e, enfim, frui o aroma do papel em que o livro foi impresso, as serifas que se desenham encantadoramente sobre as letras, ou o gracioso despojamento dos tipos sem serifa...

      Peraí, estamos falando da poesia.

— Perdão, me deixei levar. De qualquer forma, não há, nem deve haver, um manual. A própria seqüência, ou a enumeração possível de passos para a leitura são desaconselháveis: ninguém está indo ao calvário. Tome por exemplo esses manuais que empurram sobre os estudantes de colegial ou universitários. São máquinas fazedoras de idiotas: "Primeiro, conte as sílabas nos seus dedos; depois, as estrofes; escreva o padrão de rimas, dotando cada novo som de uma letra diferente do alfabeto; depois de desarmado o poema, ele não oferece mais perigo".

      Muito interessante.

      Foi esse mesmo estilo que adotaram nos manuais dos esquadrões anti-bomba.

      Claro. Ninguém ia querer um poema explodindo na cara.

      Naturalmente.

      Então...

— Então, se você reúne um aparato burocrático sobre uma obra de arte, ela desaparece. O que não quer dizer que não se deva estudar um poema. Deve-se evitar, eu suponho, o esquema de almoxarifado.

      Mas me diga: como alguém saberia disso tudo de partida?

— Não saberia. Aliás, nisso a leitura de poesia se iguala a qualquer outra coisa no mundo. Quanto mais você lê, melhor. E a palavra mágica é, ouça com muita atenção: comparação. Entre os muito semelhantes, entre os opostos. E comparação de leitor, não comparação de arsenais de crítica (isso é lixo mental). Veja bem: e não com um propósito onívoro, para dizer para os outros que já leu tudo: "não há mistérios para mim", esse seria um coitado, um avestruz, que, por vezes, na pressa de engolir, engole pedra também. Ler ou conhecer implica certo discernimento.

— Como evitar os livros ruins, então? A sensação de me perder num mar de papel começa a ser desagradável.

— Os livros ruins são sempre todos iguais; os bons são sempre diferentes. Chegam mesmo a ser diferentes deles próprios, numa segunda, terceira [insira, se quiser, o símbolo do infinito] leitura.

 

Fim do Diálogo II

 

 

 

 

Agosto, 2005

 

 

Notas

 

 

 

chamaeleonte@yahoo.com