©mari_mahr
 
 
 
 
 
 

 

 

 

Todo mundo pensa que eu sou louco. Talvez até você, quem diria... Eu estudei, tá? Estudei na Faculdade de Letras da UFMG. Fiz o vestibular e passei. Não sou como aquele não sei quem, lá de perto de casa, que não passava nunca.

Eu sabia o que era seno, co-seno, prótons, amorfo, contração da preposição "em" com o artigo definido masculino singular "o". Quem vai saber uma coisa dessa? Aposto que todo mundo que está passando nesta rua não sabe. Um louco saberia isso? Aquele cara que ficou me enchendo o saco durante toda a noite de ontem saberia o que é amorfo?

Eu cheguei e ele já estava lá. Tinha espalhado uns papelões pelo chão, deitou em cima e ainda se cobriu com um cobertor fedorento de bosta. Quando eu reclamei, ele, que já estava com ciúmes da sua "casa", começou a falar. Você viu tudo, não viu? Eu não fiz nada, só fiquei agachado batendo com os punhos na cabeça e me lembrando do Sôtião.

Ô velho filho da puta aquele! Quando ele ficava falando, falando, eu sentava na cama com as pernas encolhidas, joelhos colados ao peito e batia os punhos na cabeça, como fiz ontem. Um dia, quando ele parou de falar, eu fiquei lá, sentado na cama, com as pernas encolhidas, e de repente uma gata pulou na janela e me olhou dentro do quarto com um olhar que jamais esquecerei. Parecia estar me acusando de alguma coisa, não sei...Hoje eu estou vendo a gata a todo momento, e acho que é por causa do falatório de ontem.

O Sôtião bebia, enchia o meu saco e enchia o saco da mãe também. Eu entrava no quarto, trancava a porta, as janelas e ficava ouvindo disco de rock no último volume. Quando a Regina queria fugir do pai e da mãe, também entrava no quarto para ouvir música comigo. Deitava no chão e eu fingia que não estava nem aí, mas ficava olhando disfarçado para as pernas dela. Eu era muito doido nessa época: ficava olhando as pernas da minha irmã, depois ia para o banheiro bater punheta.

Quando entrei para a faculdade, conheci um tal de... que usava uma jaqueta do exército americano... não sei mais o nome dele. Todos os dias, depois da aula, a gente tomava Vodka com Fanta num boteco na esquina. Ele tinha uns amigos que apareciam de vez em quando com Gardenal, Mandrix, até maconha, e era um barato. Nesses dias, quando eu chegava em casa, o Sôtião podia falar à vontade que eu, em vez de ouvir a sua voz, ouvia era o canto de passarinhos. Só era chato quando eu via a gata. Eu não sei como era possível, mas mesmo com o quarto fechado ela aparecia e ficava me olhando com aquele olhar acusatório.

Daí eu resolvi me mudar para o Rio. Todo mundo sempre falava que era outro mundo, que todas as mulheres davam e que a praia era a maior orgia. No fundo, o que eu queria mesmo era parar de olhar para as pernas da minha irmã, e principalmente, ficar livre do Sôtião. Tranquei a matrícula na faculdade, porque pensava em ficar somente por algum tempo, e deixei um bilhete para a mãe dizendo que tiraria férias daquela casa por alguns meses. Garanto que ela não deve ter gostado nem um pouco da minha ausência, pois o Sôtião deve ter transferido toda a sua ira para ela e para a Regina.

Ah, Regina... Será que ela ainda tem aquelas pernas?

Quando cheguei aqui no Rio, fui morar na Praça da Bandeira, numa vaga, e todos os dias pegava o ônibus e vinha para Copacabana. Ficava zanzando na praia, tentando fazer amigos para me mudar para cá, e confesso que foi difícil. O dinheiro que eu roubara do pai estava acabando e eu não tinha como pagar o aluguel do próximo mês. Às vezes dormia nos bancos do calçadão de Copacabana, mas sentia muito frio de madrugada. Quando eu já estava começando a descer pela porta de trás dos ônibus, por falta de dinheiro, conheci dois Hippies que dividiam um apartamento na Miguel Lemos com um cara mais velho. Eles faziam artesanato para vender pela orla marítima e eu comecei a ajudá-los, em troca de amizade.Com o passar do tempo eles me chamaram para morar no seu apartamento, e nessa mesma noite eu peguei as minhas coisas na Praça da Bandeira e fui dormir na parte de cima de um beliche, numa Kitineti de Copacabana.

Os Hippies, a princípio, não me contaram, porém, depois de um certo tempo me disseram que o cara mais velho, que pagava a maior parte do aluguel e tinha o apartamento em seu nome era veado e cobrava uma trepada por semana de cada um. Eu tive que entrar na trepada semanal, e toda vez que isso acontecia, via a gata em um canto do quarto, me olhando, me acusando.

Isso durou até o dia em que  um deles foi visto pelo cara mais velho, na praia, com uma garota. Eu, na época, achei uma atitude muito infantil a dele, de pensar que nós três viveríamos única e exclusivamente em função da sua pederastia. Ele dramatizou, chorou, nos expulsou jogando roupas ainda nos cabides e sapatos escada abaixo. Nós descemos o prédio catando as coisa, rindo bastante, e sem outra opção, fomos os três para a Galeria Alaska e passamos a morar lá, num banco em frente ao bar Rio Jerez.

Um dos Hippies era o Gaúcho e o outro, o Louro. Era tudo o que eu sabia deles. Depois de um certo tempo, um dos dois, eu acho que foi o Louro, resolveu voltar para Porto Alegre e eu continuei morando com o outro na praia.

Um dia, apareceram por lá duas baianas com sandálias de couro amarradas até quase as coxas e os pés muito sujos. Estavam deslumbradas com o Rio e achavam que morar na rua era a aventura mais fascinante que poderiam contar aos amigos quando voltassem. Eram muito ligadas aos amigos e à mãe, e quase que diariamente iam à Praça General Osório telefonar para Salvador.

O Gaúcho ficou com a mulata maior e mais gostosa e eu fiquei com a magrinha.

Pára de ficar se coçando, senão eu paro de contar!

A magrinha era feia, coitada, e quando ficava muito tempo sem comer, tinha mau hálito. Apesar disso ela me chamava de "Meu doce" e era muito carinhosa. A gente sempre transava na praia e uma vez aconteceu uma coisa triste, porém engraçada. Pensa: o meu pau estava sujo de areia e eu enfiei na buceta dela. Nós não vimos porque estávamos há um tempão; eu com o dedo lá dentro e ela pegando no meu pau e a gente se beijando, aproveitando que não tinha ninguém perto para encher o saco. Na hora ela dizia "ai" de vez em quando, e eu também sentia alguma coisa me machucando, mas só depois que gozei e saí de cima é que dei pela coisa. O meu pau foi amolecendo e ficando mais ou menos como se alguém tivesse passado nele um ralador de queijo. Ficou todo marcado e com vários fiozinhos de sangue.

A magrinha, que eu também não sei o nome, foi se lavar na água salgada e começou a sentir dor. Passou a noite inteira num banco da praia com as pernas cruzadas apertando bem a buceta e gemendo de dor. De manhã, quando a sua amiga chegou não sei de onde, a levou para se lavar no banheiro do Lucas que tinha um bidê com água forte.

Um dia a polícia chegou pedindo documentos, só para amedrontar. Eu acho que foi para amedrontar porque eu já não tinha documentos há muito tempo e eles não me levaram, mas ameaçaram bastante, dizendo que não queriam mais nos ver alí.  As baianas, com medo das ameaças, resolveram voltar para Salvador, e nós fomos levá-las até a rodoviária. Na volta, compramos uma garrafa de cachaça e tomamos todinha, fingindo que estávamos apaixonados.

Quando a gente saía, como dessa vez em que fomos à rodoviária, guardávamos nossas coisas numa manilha que desembocava a água dos bueiros na praia. Quebramos a parte de cima da manilha, que era bem larga, e fizemos um quadrado de pedras entre a manilha e a areia, como se fosse um bagageiro de um ônibus. O nosso bagageiro durou até o dia em que resolvemos vender bijuterias na Cinelândia. O tempo estava nublado e o movimento muito fraco em Copacabana. Guardamos nossas coisas na manilha e quando estávamos no centro da cidade, animados com o sucesso das vendas, caiu um temporal de parar o trânsito. Demoramos horas para chegar em "casa", e quando fomos até a manilha pegar as coisas, encontramos um grande buraco, provocado pela força da água, que levou manilha com areia e tudo para o fundo do mar.

O Gaúcho vendo aquilo, começou a chorar e eu a rir. As poucas roupas, as ferramentas e os materiais de bijuteria; tudo para o mar. O que havia restado era o dinheiro das vendas da cidade e um pouco de brincos e colares.

Depois de reclamar quase a noite toda o Gaúcho resolveu partir para São Paulo no dia seguinte, onde iria  se encontrar com um tio. Pegou o dinheiro das vendas na Cinelândia e eu fiquei com o resto das coisas. Era tudo o que me restava: uns poucos brincos e pulseiras, uma calça suja de barro e uma camisa ensebada.

O Gaúcho me aconselhou a voltar para casa e só de pensar nisso fiquei arrepiado, como estou agora, olha... Você pensa que eu poderia voltar e agüentar tudo aquilo novamente? Só se eu fosse maluco!

Consegui vender as bijuterias e fui vivendo com o dinheiro. De repente me deu uma saudade louca da baiana magrinha, que me chamava de "Meu doce". Eu acho que realmente fiquei apaixonado por ela, e se não fiquei, pensava que estava, como uma forma de arrumar forças para continuar vivendo. Tentava desenhar o seu rosto na areia e quando a maré estava baixa, e a onda passava vagarosamente sobre o desenho, costumava vê-la sorrindo.

Quando o dinheiro acabou, tentei fazer amizade com vários outros caras que vendiam bijuterias, mas ninguém me dava atenção. Achei que esse desprezo poderia ser porque eu estava muito sujo, e resolvi tomar um banho. Peguei um ônibus  e fui para o  Aterro do Flamengo. Já havia visto várias pessoas tomando banho em um chafariz do aterro, nas minhas idas e vindas para a Praça da Bandeira

A água não era muito limpa e eu tirei toda a roupa, fiquei de cueca, peguei uns restos de sabonetes no chão, tomei um banho e lavei a calça e a camisa. Era incrível como tinha restos de sabonetes no chão. Tinha até pedaços quase inteiros que, depois do banho, se tornavam inúteis para os seus donos. Geralmente as pessoas que tomavam banho ali eram pessoas da rua e não costumavam andar com um sabonete no bolso durante um mês, até o próximo banho.

Estiquei a roupa no gramado e fiquei conversando com dois pivetes. Um  tinha um corte já cicatrizado no supercílio e o outro tinha a cabeça raspada, cheia de marcas de cortes antigos, já cicatrizados. Um deles tirou um saco plástico do bolso com um pouco de cola de sapateiro dentro, enfiou o nariz e a boca dentro do saco, fechando os lados com as mãos e ficou inspirando rapidamente o ar. Depois passou para o outro e este me passou o saco. Eu fiz o mesmo e depois de alguns segundos fiquei tonto. Fiquei tonto como se fica se você inspirar e espirar rapidamente sem cola nem nada. Eu acho que aquela cola já devia ter sido muito usada, mas mesmo assim, eles deitaram na grama e viram, entre uma risada e outra, vários monstros nas nuvens.

Enquanto isso, eu tirei bem depressa a cueca, vesti a calça que já estava seca e lavei a cueca. Depois repeti a mesma coisa para colocar a cueca molhada sob a calça. Vesti a camisa, joguei as meias rasgadas fora, calcei o tênis e fui passear no Aterro. Estava me sentindo bem, como se fosse outra pessoa, e cheguei a puxar assunto com uns caras na Praia do Flamengo, recebendo em troca uma certa má vontade no tratamento.

Mais para os lados de Botafogo, numas pedras que margeiam a orla, parei para ver algumas pessoas pegando mariscos. Em uma lata já preta por fora, sob uma fogueira, eles ferviam água onde jogavam os mariscos, e depois de alguns minutos, pegavam para comer. Havia várias garrafas de cachaça vazias espalhadas pelo lugar e várias outras cheias encostadas em uma pedra. As pessoas que estavam ali viviam de catar papel e ferro velho para vender, e com o dinheiro, só compravam cachaça e cigarro porque comida tinham com fartura. Eram todos inchados e esfolados por tombos provocados pela bebida.

Pedi um pouco de cachaça e eles negaram. Pedi um marisco e eles me deram. Então eu peguei as garrafas vazias jogadas pelo chão e comecei a jogar o resto de todas elas em uma outra. Eles ficaram me olhando e eu consegui com isso aproximadamente um quarto da garrafa. Ofereci um pouco a eles e eles começaram a rir, me chamando para comer mais mariscos.

Fiquei pelo Aterro não sei quantos meses, sempre aquecido pela fogueira que esquentava a lata e pela cachaça. Segundo meus companheiros, eu estava ficando inchado como eles. Isso durou até quando começaram a aparecer por lá uns caras que preferiam roubar na praia para comprar cachaça do que catar papel.

Como que um ex-universitário poderia ser preso por pequenos furtos na praia?, eu pensei, e resolvi voltar para Copacabana.

Quando voltei, parei em frente ao Banerj do Posto Seis e me olhei no espelho durante muito tempo. Estava cabeludo, barbudo, imundo. O tênis furado, sem cadarço, a calça arregaçada e uma grande ferida na perna esquerda, conseqüência da queda de uma pedra quando catava mariscos. Confesso que fiquei horrorizado me vendo daquele jeito. E se a baiana me visse assim? Ela disse que voltaria e nunca voltou. Foi a única mulher que eu tive no Rio, e apesar da areia, vivemos bons momentos juntos. Vê se pode: "Meu doce". Eu já fui o doce de alguém. Quando eu vejo essas mulheres passando por aqui, me lembro dela, que tinha mau hálito mas era muito melhor do que todas elas.

Joguei o tênis fora, abaixei as calças, lavei o cabelo e a barba na mangueira de um porteiro que regava o jardim de um prédio na Rua Conselheiro Lafayete e procurei, até encontrar, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, uma fita para colocar na cabeça. Queria mudar o visual e já que estava sujo, pelo menos com uma fita na cabeça pareceria Hippie e não mendigo.

As pessoas começaram a olhar para mim e isso me deixou muito contente. Finalmente as pessoas  passaram a prestar atenção em mim. Eu estava me sentindo o doce de todo mundo. Cheguei a achar que elas até gostavam de mim.

Andava devagar, cabeça erguida, olhar superior, e quando alguém me olhava, eu sorria e as pessoas sorriam de volta. Me recusava a pedir algo a elas, e nessa época, passei a andar todos os dias nas feiras livres para comer frutas podres que sobravam das barracas. Disputava no tapa com os favelados dos morros do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho a lavagem que iriam levar para os porcos.

Quando já não agüentava mais comer frutas e estava magro como um palito, resolvi comer algo mais consistente: descobri, sem querer, que as pessoas, a maioria delas que comiam no Gordon da Praça General Osório, deixavam restos de hamburgueres, batatas fritas, refrigerantes e várias outras coisas nas bandejas, em cima das mesas da calçada. Eu ficava parado atrás de um poste, como se não quisesse nada. Quando alguém se levantava da mesa, eu corria lá, pegava tudo que havia sobrado e saia andando depressa sem olhar para trás.

Recuperei novamente as forças, até que puseram um segurança para controlar a invasão de favelados que, seguindo o meu rastro, atacavam as pessoas, antes mesmo delas acabarem de comer, e várias vezes eu vi crianças passarem correndo, batendo a mão no sanduíche que o freguês levava à boca, deixando-o petrificado naquela posição por alguns instantes.

Parei de comer sanduíches e me esqueci também da feira. Naquela época, cheguei a ficar uns quatro dias sem comer nada. Pedia de vez em quando um copo d'água nos bares, e depois do quarto dia de fome, e uma grande crise de consciência, resolvi pedir uns trocados. Mandei o seno, o co-seno, o amorfo para a puta que o pariu e fui pedir uns trocados.

Já pensou se a mãe me visse daquela maneira? Já pensou, os três: a mãe, o pai e a gostosa da Regina sentados num bar de Copacabana ao entardecer? Os três, o marido da Regina e um netinho do pai, de uns três anos? Eu passando devagar, com um chapéu na mão, e o pai dizendo: "Nós não nos conhecemos?". E a Regina: "É ele, pai, agora que eu estou reconhecendo".

Tinha que acontecer isto! Se acontecesse seria como se eu estivesse dando uma esporrada na cara dos três. Da mãe não, coitada. Na mãe, seriam só uns respingos.

Passei a pedir esmola, mas não fazia cara de vítima, nem de sofredor. Pedia assim: "Me arruma mil pratas aí!". Às vezes alguém dizia: "Só tem duzentos, serve?", e eu pegava. Já dava para o pão. Raramente alguém me dava os mil, e quando alguém dizia: "Eu não tenho", eu pensava: "Enfia no cu", e quando alguém dizia: "Tô  duro", eu pensava: "É mentira", e saía rindo, sempre de cabeça erguida e aparentando felicidade.

Queria mostrar a todos que eu estava ali por minha livre e espontânea vontade. Queria que todos vissem na minha figura de Hippie, um estudante de letras da U.F.M.G.

Comecei a almoçar arroz, feijão e carne num bar na Rua Francisco Sá e passei a me encher de fitas: coloquei mais duas na cabeça, de cores diferentes, uma numa perna, outra na outra, nos braços, e tudo que eu achava que pudesse me enfeitar, colocava.

As pessoas começaram a me conhecer e algumas conversavam comigo. Algumas já me davam dinheiro antes mesmo que eu lhes pedisse, e como eu estava com a vida arranjada, com um tipo de emprego garantido, arrumei com um senhor que sempre me cumprimentava cordialmente, algumas folhas de papel de computador usadas e um lápis para escrever no verso.

Eu não estudei letras? Então, tinha que escrever, não é mesmo?

Sentava todas as tardes, depois do almoço, na porta de uma loja ou de um Banco qualquer em Copacabana ou Ipanema e ficava escrevendo. Quando via que alguém passava olhando, tentando ler alguma coisa, fazia cara de quem estava compenetradíssimo. Me sentia um verdadeiro intelectual. Começava a escrever sobre qualquer assunto e sempre acabava na gata, na mãe, no pai ou nas pernas da Regina. Xingava, xingava todos eles e quanto mais os mandava tomar no cu, mais me lembrava deles. Às vezes tinham folhas e mais folhas escritas, por exemplo: "A gata pulou na janela", ou : "Mãe, fala pro pai parar".

Um dia,  comecei a escrever sobre a linha. Descobri que tudo tem uma linha. Sabia o que era, mas não sabia explicar. O raciocínio tem uma linha. Você vai seguindo naquela linha, de repente você sai da linha e pega outro caminho, deixando para voltar depois, e desse caminho você vai para outro, depois volta para a linha. Você pode ir para vários caminhos e depois voltar para a linha ou fazer do último caminho a linha principal.

Escrevi vários tratados sobre a linha principal e as secundárias. Escrevia até andando pela rua e ia deixando as folhas para trás. Queria entender o raciocínio e queria que o raciocínio também entendesse a minha lógica.

Comecei a sentir uma vontade desesperada de conversar com alguém sobre isso. Ia a pé quase todas as noites para a porta do Planetário da Gávea, onde as pessoas costumavam ficar filosofando, não sei o que, até tarde da noite, e não consegui ninguém para conversar.

Tentava puxar assunto, mas as pessoas me olhavam e, na maioria das vezes, continuavam seus assuntos como se eu não estivesse ali. Cheguei a tirar as fitas e nada! Ninguém me ouvia. Passei a falar sem ser ouvido. Chegava numa rodinha e começava a falar sobre a linha, e quando eu saía da minha linha e tentava voltar, não conseguia, fazendo uma grande confusão na cabeça. Ficava com várias linhas na cabeça, todas se cruzando, e quando não tinha mais jeito, sentava no chão e ficava batendo os punhos na cabeça até dormir.

Foi mais difícil sair disso do que um viciado sair do pico na veia. Não  podendo continuar daquele jeito, comecei a beber. Todo o dinheiro que ganhava gastava com cachaça. Quando me sentia um pouco lúcido, a ponto das linhas começarem a se cruzar novamente na minha cabeça, tomava outra garrafa, até voltar a ficar inchado como ficara no tempo do Aterro.

Dormia de qualquer maneira pela rua e estava que era um trapo só. O dinheiro diminuiu. As pessoas, quando me viram bêbado, pararam de me sustentar. "Para comprar cachaça, também é demais", diziam elas. Eu ia com a garrafa debaixo do braço e entre um gole e outro, cantava em voz alta: "A linha não me pega... A linha não me pega...". Nessa época eu nem me enfeitava mais.

Um dia, acordei já com um grande movimento na rua. Estava todo mijado e cagado, com a garrafa vazia ao meu lado. Quando abri o olho, notei que uma velhinha me olhava e resmungava que era um absurdo aquela cena: um homem forte ali naquele estado miserável, bêbado, inútil.

Eu me senti muito mal naquela hora. Foi como um sonho, daqueles que você se acha nu, de repente, no meio de uma rua movimentada. O pior é que nem as linhas me vieram à cabeça para me tirar daquela ridícula situação. A única coisa que consegui falar, sabe o que foi? Você não vai acreditar: "Me leva pra tomar um banho?". Eu ia continuar a dizer: "Me carrega no colo, me faz um carinho, me põe pra dormir", mas me contive a tempo.

A velha ficou parada um longo tempo me olhando, depois disse: "Anda, vem!", e saiu andando, pisando duro. Eu fui atrás, morrendo de vergonha da calça mijada e logo na frente, no mesmo quarteirão, entramos em um prédio. Ela me disse para esperar na garagem e ficou conversando com o porteiro. Depois subiu e o porteiro disse: "Ah, é você?... Eu já te conheço da rua. Como você está horrível, nem fita colorida tem mais. Vem, vem tomar um banho".

O banheiro era ao lado do incinerador de lixo, num lugar muito apertado e cheio de baratas. O porteiro me deu um pedaço de sabão de lavar roupa e tirou do banheiro um sabonete, que provavelmente era seu. O chuveiro era largo, de lata, a água fria, e eu fiquei horas lá embaixo. Me ensaboei várias vezes e antes mesmo de pensar que teria que vestir novamente aquela roupa mijada e cagada, o porteiro chegou com uma calça e uma camisa para eu experimentar. Disse que fora a velha que pegara de um de seus netos.

Olha, cara... A roupa era bonita pra caralho! Uma camisa toda florida e uma calça amarela, de elástico na cintura.

Depois ela mesma trouxe um par de tênis bem grande, mas não serviu no meu pé inchado. O porteiro disse que, se eu parasse de tomar cachaça me deixaria tomar banho no prédio de vez em quando. Saí de lá me sentindo leve como um pássaro. Fui direto para uma confecção na Rua Figueiredo Magalhães e peguei vários retalhos de malha de cores diferentes. As pessoas que trabalhavam lá já me conheciam e me ajudaram a amarrar as fitas na cabeça, no braço, enfim, por todo o corpo.

Voltei a caminhar com a cabeça erguida e a sorrir para todos. Finalmente a minha hora havia chegado. Eu tinha virado o palhaço mais popular de Copacabana. Comer já não era problema e até banho eu já tinha onde tomar.

Atingi a perfeição, quando a dona de um salão de beleza da Rua Toneleros teve a brilhante idéia de me convidar para tingir o cabelo. Na primeira vez eu pedi para que tingisse de azul claro, como forma de prestar uma homenagem à velha que tinha o cabelo tingido assim.

Quando saí pela rua o sucesso foi total. Arrumei uma fita rosa, quase fosforescente, coloquei na cabeça, e quando me vi no espelho, confesso que fiquei apaixonado por mim. Foi a primeira vez que eu senti orgulho da minha pessoa.

A velha sempre deixava roupas do seu neto para mim. No dia que o porteiro contou que ela havia morrido, eu chorei como se tivesse perdido uma pessoa da família. Uma pessoa de uma nova família e não daquelas merdas que você já ouviu falar. Só conversei com ela aquela vez mas nunca me esqueci.

Depois o porteiro continuou pedindo roupas velhas aos moradores para me dar, mas nunca conseguiu uma camisa florida e uma calça amarela como aquela. Aquele dia foi muito especial, quase como o dia em que te encontrei: "Finalmente alguém para me ouvir", pensei.

Você tinha engolido um osso inteiro e estava tendo uma espécie de convulsão na porta do Barril 1800.  Abanava o rabo, contraindo o corpo, mas não conseguia expelir nada, lembra? Eu fiquei olhando durante um tempão, até você parar com aqueles ataques. Pensei até mesmo em amarrar uma das minhas fitas no seu pescoço, e com outra, fazer uma espécie de guia para te trazer comigo. Estava com medo de você caminhar para o outro lado, mas você me olhou com esse olhar carente e me seguiu assim que eu comecei a andar. Veio abanando o rabo e nós estamos juntos até hoje. Você só estranha quando pinto o cabelo de verde, não é mesmo? Tem que acostumar, já te falei. Eu sou um homem livre. Não vou me privar de um prazer por mero capricho seu.

Depois tem o seguinte: Qualquer dia vou tirar as fitas do seu pescoço e levá-lo lá na Toneleros para te pintar de verde.

 

 

 

 

 

novembro/dezembro, 2006
 
 
 
 

Nerino de Campos (Belo Horizonte-MG). Além de escritor, é desenhista, ilustrador, programador visual e artista plástico. Foi premiado com Menção Honrosa na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, publicado em vários sites literários e teve um conto selecionado entre os 1.584 que concorreram em concurso patrocinado pela Rádio France Internationale. Participou, também, com contos e poesias, de debates realizados no SESC -SP, o "Balaio de Textos", que teve coordenação do escritor João Silvério Trevisan.

 

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