Uma Tristeza Através
Cartas... bilhetes... recados...
avisos.
Uma tristeza através.
Toda memória é um sonho
indeciso.
Já a vida, essa é real e de viés.
Real e de viés como a arqueologia
da desesperança.
Pinturas... retratos... imagens que não
reconheço.
Nesses desabitados estilhaços de lembrança,
quanto mais
me recordo, mais esqueço.
Quanto mais eu ardo, nessa
tarde
De alheio cristal azul, mais eu tardo e anoiteço.
E sigo,
diluído em sombras e saudade,
e me despeço de tudo que não fui e
desconheço
e penso, inevitável, que a solidão
inútil das coisas é só mais um segredo
que guardamos sem ódio ou
paixão
como quem vive ou ensaia o próprio degredo.
Lembra quando toda música era
magia
E, sem saber, qualquer verso vencia a vida?
Lembra quando
sorríamos pra fotografia
certos de que toda história é uma ilusão
perdida?
Pesares
1.
apesar dos césares
das
arenas
dos
radares
das antenas
a gente se escalavra
— sem
alento
ou palavra —
se adia
um
momento
feito
chuva
que não estia
2.
apesar dos pesares
dos
problemas
dos
olhares
dos
dilemas
a gente continua
— sem tormento
—
senta a
pua
suaviza
feito
vento
mandando
brisa
Depois do Último Atentado
qualquer dia, de repente,
a
gente acaba se encontrando,
numa dessas esquinas perturbadas
de um
poema angustiado.
(como aquele do Iessiênin
a um Maiakovski
desesperado)
e só então você vai ver,
que ainda arrebento o
silêncio
(feito essas janelas estilhaçadas
depois do último
atentado)
e ao invés de cortar os pulsos
e estragar as paredes do
motel,
te mando um cartão-postal
de um lugar qualquer,
só pra
dizer que, por aqui,
as coisas continuam indo mal.
Janela Aberta Para o Caos
dilacerado de desejo
e
poesia,
transpassado pelo mistério
que se anuncia
como qualquer
sonho pouco
visto sem ênfase ou paixão:
todo poeta é um
santo
profeta
bastardo
deserdado
e louco
a meio
caminho
entre o desespero e a revelação.
todo poeta é um
tanto
inocente
vadio
cruel
e demente
entre a castidade e
o cio:
ferido de morte,
no cerne na língua,
sofrendo
diário,
à mingua:
escrevo só o que renuncio:
Cérbero abatido,
Medusa horrorizada
diante da possibilidade do espelho,
único e
vário,
crente de que toda ilusão
é ilusão de nada,
palavra
naufraga no dicionário,
cega pro que não se pode viver:
todo poeta
é uma janela
indiscretamente aberta para o caos
certo de que nem
todo dia
é um bom dia pra se render.
Curta-Metragem Solidão
sorrir é revelar
o íntimo
segredo dos dentes.
ando meio
ateu
descrente
alguém a quem
todo o gesto
soa
indiferente.
entre nós
— você e eu
—
(entrementes)
só há um resto
de sombra
na divisa do
sonho
marcando a vida
que entra pelo cano.
entre nós
há uma palavra que
enferruja
um céu distante
adivinhando chuva
gosto estranho de
fim de ano
e uma solidão que passa
em segundo plano.
Bilhete Encontrado no Bolso do Casaco
poder, não posso:
isso
de
comer a carne
e roer o osso
já é vício
dessa
vida-safada,
dessa vida-cahorra,
dessa vida-danada,
que me toma e aprisiona
num
fundo sem
fundo
(masmorra)
que me confisca
o mundo
e me
doma
só a voz arrisca
e
atenta,
tímida a dizer
que já não agüenta,
como bem pode ver,
essa
obrigação diária
em ter
o coração aberto,
as mãos
espalmadas
e o olhar deserto.
Inviolável Corpo
corpo-claro
como estas
manhãs
sem sonhos
corpo-raro
margem
impossível
e alheia travessia
corpo-abrigo
intervalo
entre
o vivido
e o imaginado
corpo-corpo
inútil corpo
como
corpo qualquer
corpo-gozo
que se gasta
no
prazer
de outro corpo
que se gasta em outros
que de outros
corpos
é o prazer que
se gasta
em nós
porque assim nos
é
dado
sofrer.
Ala Dos Feridos
A Rodrigo Garcia
Lopes
escrevo com essa gana
de quem
erra no alvo
ou morre de sede
escrevo como um cego
que topa
pelas paredes
e naufrago,
no escuro, se escalavra
implorando
pra ser salvo.
escrevo com essa gana
de quem se entrega,
se
deita,
renega
e aceita
o cio viscoso da palavra.
escrevo
como quem se engana,
como quem se arrisca
num vôo incerto
feito
um louco varrido
que nunca sabe ao certo
onde fica
a ala dos
feridos.
À Emily Dickinson
a palavra está
morta
irremediável
mente
morta
(bruta,
besta,
alucinada
mente
morta)
a palavra está morta
e, como um
cancro,
apodrece em nós.
Tessitura Impossível
teço
lento
esta
mortalha
(mortalhamente),
que há de cobrir tudo
um
dia,
quando a vida
(essa náusea em ser),
ou o mundo
me
devolver
só e mudo,
(quem diria?)
ao meu inútil estado
de
Poesia.