Prestidigitações

 

 

1.

 

Nada nesta mão,

nada nesta outra.

 

Agora um gesto rápido

(movimento insidioso do braço).

 

E extraio, entre os dedos,

do espaço abstrato,

 

um pássaro, que se desata,

ascende e se desbarata:

 

magnífica elisão

de todo este cenário!

 

 

 

2.

 

EI-LO: UM PÁSSARO EM CHAMAS

 

 

 

3.

 

Partamos do pressuposto

de que as plumas que caem

sobre o tablado

(lâminas luminosas

de silêncio concentrado)

são os fragmentos impossíveis

de uma metáfora irrecusável.

 

Partamos do pressuposto

de que um novo gesto lépido e enigmático

(costura musical

invisível no espaço)

logrará remendá-la,

propondo de novo o pássaro,

posto que agora empalhado.

 

Partamos do pressuposto.

 

 

 

 

 

 

11 croquis p/ gesto & desejo

 

 

1.

 

Se a mão esboça

a curva de uma anca,

 

o tempo em dispersão

subitamente estanca

 

e o espaço precipita-se,

constrito e necessário.

 

 

 

2.

 

Teus ombros recortam

no ar

um recanto,

 

em que meus olhos,

cheios de encanto,

 

querem logo repousar.

 

 

 

3.

 

O alento que sai

de tuas narinas,

 

borboleta pequenina,

 

roça, sem alvoroço,

a penugem do meu pescoço.

 

 

 

 

4.

 

À sombra fresca de dois seios,

de onde manam leite e mel,

 

lábios peregrinos fazem recreio

 

e alimentam um desejo

novamente fiel.

 

 

 

5.

 

Porque no céu da tua boca

certamente habitam

 

Anjos,

 

minha língua, litúrgica,

espirala-se e evola-se.

 

 

 

6.

 

Esta coreografia

ninguém nos ensinou.

 

E no entanto dançamos

e não tropeçamos.

 

Sabemos os passos,

todos, de cor.

 

 

 

7.

 

Quem decide

onde cravar os dentes:

 

a nádega que se oferece

 

ou a nuca,

intransigente?

 

 

 

8.

 

Nas páginas em branco

destes lençóis,

 

braços e pernas

rimam entre si,

 

bocas degustam

a irredutível metáfora.

 

 

 

9.

 

Liquefeitos,

 

seus dedos escorrem

pelo meu peito.

 

 

 

10.

 

Sobre o lábio superior,

minúsculas gotas

de suor,

 

que o sol,

coado pelas mechas

do cabelo,

 

vem colher

com redobrado

zelo.

 

 

 

11.

 

"Me liga amanhã?"

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

Conhaque #1

 

 

rói, corrói

mordaz, mordente

 

dente de serpente

língua viperina

 

dentro, lento

veneno que se instila

 

em pleno coração

circulação sanguínea

 

caústico:

queima & cauteriza

 

 

 

 

 

 

Enquanto isso no outro canal

 

 

Trancado

num quarto apertado

vigésimo

segundo andar

de cócoras sobre

a cadeira

nariz

grudado na janela

vidros meio

embaçados

frio pelos

furos do casaco

 

ele rói as

unhas

olha as

luzes da cidade

e aguarda

(extático)

o iminente

o inevitável

o imponderável

regresso dos

 

Incas Venusianos.

 

 
 

 

 
 

Pra ficar de bem com elas

(versos sobre versos de Camões)

 

 

MOTE

 

Não sei se me engana Helena,

se Maria, se Joana:

não sei qual delas me engana.

 

 

(RE)VOLTAS

 

Mas quem pode querer bem

a quem tantas bem só quer?

Pois eu, se fora mulher,

não lhe crera, como crê'm.

Quisera não ver que Helena,

que Maria, que Joana,

nenhuma já não o engana.

 

Fez a todas juramentos,

a todas dará sua estima:

se alguma diz que se fina,

muitos versos lança aos ventos.

Se cuida que quer Helena,

mais Maria, mais Joana,

muito a si mais não se engana?

 

 

 

 

 

Cantiga à moda antiga

(sobre versos de Bandeira)

 

 

Teu corpo claro e perfeito,

— Teu corpo de maravilha,

Quero possui-lo no leito

Estreito da redondilha...

 

No lençol de linho branco

Que estendi por sobre o verso,

Oblongo, algo de flanco,

Teu corpo, largado e franco,

Oferece verso e anverso.

Poema raro e perfeito,

Limalha de maravilha,

Quero treslê-lo no leito

Estreito da redondilha...

 

 

 

 

 

 

Aurea mediocritas

 

 

1.

 

Um pouco mais

que simples brinquedo,

 

um pouco menos que alucinação.

 

Quem sabe apenas singelo segredo

talvez  um

             f ó s f o r o

 

na escuridão.

 

 

 

2.

 

Deve haver um ponto médio,

 

onde o prazer

de quem escreve

 

não custe a dor de quem o lê.

 

(Mas se for dor

o que ele escreve,

 

que nessa dor haja prazer.)

 

 

 

 

 

 

Cadeira na varanda

 

 

Pendurei meu pensamento

entre a avenca

e a samambaia.

 

Num galho de roseira,

espetei

meu coração.

 

Sossegados,

enfim,

 

meus olhos pastam a grama do jardim.

 

 

 

(Poemas do livro Criptógrafo Amador)

 

(imagens©esculturas de antonio peticov)
 
 

 

 

 

Marcelo Sandmann (Curitiba-PR, 1963). Poeta, músico, professor de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Paraná. Publicou Lírico renitente (Rio de Janeiro: 7Letras, 2000) e Criptógrafo amador (Curitiba: Editora Medusa, 2006). Integra a antologia Passagens (Curitiba: Imprensa Oficial do Estado do Paraná, 2002), de poetas paranaenses, organizada por Ademir Demarchi. Em 1998, lançou o CD Cantos da Palavra, em parceria com Benito Rodriguez. Tem poemas e ensaios sobre música popular e literatura brasileira e portuguesa em suplementos literários e revistas acadêmicas, como Revista Letras, da UFPR, Revista do Centro de Estudos Portugueses, da USP, e em revistas de poesia e arte, como Medusa, Babel, Sibila e Sebastião.