As Unhas Vermelhas de Papai

 

A morte sempre esteve perto. Com foice e capa preta, sentada no sofá. Acostumei-me a ela. Muito nova, perdi avós maternos, tios. Aos 13 começou a varredura do núcleo familiar e lá se foi vovó Tanica e um cara que eu chamava de pai; figura mitológica, sagrada e papel principal da nossa sociedade. Depois, José Maria, meu irmão com nome santo, mas este é um capítulo tão doloroso que convém deixar pra mais tarde, ou mesmo deixar pra lá.

 

O primeiro homem da minha vida era mineiro, hipertenso, gostava de literatura budista e de estar em casa com seu pijama. Preocupava-se muito em deixar para os filhos algo que realmente prestasse em um mundo que já começava a falir. E deixou. Devo a ele a minha teimosia e a obstinação, pois que aprendi a ser livre antes do feminismo e de outros ismos.

 

Nas manhãs quentes de sábado, lembro-me dele me pegando pela mão para assistir ao Desafio ao Galo, espécie de campeonato de futebol esquisito da extinta TV Record. Com os irmãos já crescidos e desinteressados, tornei-me a sua companhia de vestido curto e botas ortopédicas. Contava então com uns cinco ou seis anos de existência e a segurança daqueles momentos fazia-me pensar que a vida seria sempre boa e maldade era coisa de televisão.

 

Meu pai era inclusive professor, amigo e, na falta de uma irmã para dividir feminices, amiga também. Um dia, sentindo falta de figura feminina nas brincadeiras (mamãe era um pouco séria), tive a idéia de vesti-lo de mulher. Isso mesmo. Espada que era, não foi nada fácil convencê-lo. Aliás foi um trabalhão. Mas venceram o seu excelente senso de humor, sua preguiça e principalmente seu amor por mim. E foi. Sem culpa, como se travestem os homens nos carnavais quando a sociedade assim permite.

 

Eu começava lá uma descoberta tão importante do significado de ser mulher, mesmo que em um homem: o prazer da produção, de se montar. Primeiro a saia folgada de mamãe. Depois um par de coloridíssimos saltos dos anos 70, em que na verdade só cabiam os dedos. Aí vinha a melhor parte, a mais lúdica: a maquiagem. Sombras, cílios postiços, blush e pó (que naquele tempo já não era mais de arroz), e batom vermelho, até hoje uma paixão. Por fim, a peruca de cachos castanhos (era muito comum ter peruca em casa nessa época), laranjas no peito e um leque feito de papel utilizado para esconder o bigode. Minha moça era feia, alta e um pouco desajeitada. Quando as primas iam de visita, era diversão na certa! Eu ficava muito orgulhosa, pois o meu pai era o mais legal de todos.

 

Outra vez, já crescida, resolvi retomar os velhos tempos. Desta vez meu pai ralhou muito mesmo, afinal eu não era mais menina. Mas ainda me amava como tal, e com certa inércia, deixou. Quis incrementar a produção com esmaltes vermelhos, pois seu rosto cansado da doença convencia cada vez menos como senhorita. Ele ficou uma fera e me fez prometer tirar "aquilo" tão logo acabasse a brincadeira.

 

Acontece que eu esqueci de tirar. Alguns dias depois, chegava da escola quando percebi a tensão no rosto de quem me esperava. Meu pai tinha morrido com as unhas do pé esmaltadas de vermelho. O rapaz da funerária estranhou. Pegou um chumacinho de algodão com acetona e tirou sem fazer perguntas, pois estávamos muito tristes.

 

 (imagem ©steele)
 

 

 
 
Mônica Oliveira Petry (São Paulo-SP, 1971). Jornalista, já passou por diversos jornais e revistas e escreveu para sites como o extinto Falaê e Escritoras Suicidas. Recentemente, escreveu a história da rede de cabeleireiros Soho, bastante conhecida na capital paulista, no livro Soho — 25 anos — Começa o Futuro. Atualmente, divide o seu tempo entre São Paulo e Porto Alegre. Edita o blogue Eu Sou Maria.