Corpo do Pai
 
 

Esperava com as quitandas na mesa a visita do sogro. Já contava atraso.  O café descansava frio na garrafa nova, desgastada pelo desuso. As moscas insistiam no pouso urgente. Se metiam sob o pano do bolo, as donas das asas. Era a chance do açúcar. Já não tocava à mulher importunar moscas. Olhou pro relógio com indecisão. Pensou em buscar os filhos. Sabia que depois era o banho, o jantar, a TV, o marido, juntar brinquedos, lavar pratos, puxar o lençol, sorrir, pedir o novo sofá, esperar o não, "quem sabe um dia?", tentar rezar, pensar por dois minutos que era mais fácil crer, por quê essa Santa me parece tão fora de si?

Foi surpreendida pelo marido sem cheiro, sem formalidade e calças largas. Soluçava, o cabelo na testa, sem prumo. Já se podia imaginar. Tomou o caminho do único hospital. Os olhos no chão contando as linhas no cimento. Os passos são duros do calcanhar seco. Importa é manter o ritmo. Quatrocentos e noventa e três, quatrocentos e noventa e quatro e a porta do hospital. Ainda não. Contorna o carro estacionado em frente. Quatrocentos  e noventa e oito, mais um passo, sobe um degrau, a portaria, quinhentos.

É avisada do acidente com o ônibus. Muitos mortos, já se sabe. Experimenta falar. Estranha a própria voz. Desabotoa o casaco. Observa os pés, na sandália. Pensa em voltar e cortar as unhas. É chamada pelo médico. Se dirige recomposta. Ouve que o sogro não suportou as fraturas. Perfuraram os pulmões. Lembrou-se dos filhos. Num sobressalto viu os filhos mortos, tendência natural das mães. Decidiu deixar pra depois. Escutou as orientações. Não quer reconhecer o corpo do pai de ninguém. Apertou o nariz, passou pelo corredor. Avistou um pezinho. Era um pé de menina. Mais três passos, lá estava o sogro, lúcido. O rosto firme, valente no ridículo. Tocou o peito frio. Sentiu insensato prazer que confundiu com alívio.

O dono da funerária entrava. Muitos mortos prum dia só. A senhora pode ajudar com o seu defunto? Se quiser o terno é uma entrada e mais trinta. Esses quatro aqui da mesma família... Pega o algodão e limpa direito a mão. Capricha na cara. De cima pra baixo, isso aí. Mistura a creolina aqui no pote. Bem pouquinho pra não cheirar demais. Deixa que eu ajeito o cabelo, precisa de prática. Passa esse outro pra cá, Moacir. Ajuda aqui minha filha. Depois te faço desconto na urna, serve? Acabando esse você passa pra menina ali no canto, tá certo?

 

 

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Enlace

 

Abriu a porta da casa e dirigiu-se ao jardim. Ao canteiro de antúrios brancos, plantados à sombra da paineira. Apanhou as flores com desvelo, para não danificar as hastes. Buscou pela fita de cetim que trazia no bolso do casaco. O casaco de veludo grená. Amarrou o maço de antúrios com movimentos precisos, as flores dispostas em um círculo farto, exato, como no desenho de uma mandala. Agora procurava nos bolsos, desarranjada, em pressa, a tesoura. Era preciso aparar o buquê. Cortou o maço com dedos firmes. Cuidou de limpar a pequena mancha vermelha deixada nas hastes. Sentou-se na cadeira esquecida no pátio. Permaneceu por mais de uma hora, quase sonâmbula, olhar fixado no buquê de fino acabamento, suspenso na jarra d'água.

         Consultou o relógio de pulseira marrom, cautelosamente embrulhado em um guardanapo, dentro do bolso. Já era hora. A cerimônia se aproximava. Voltou-se para o interior da casa antiga, de grandes janelas azuis. No banheiro, sua irmã esperava, já vestida. Fitou-a mais uma vez com ternura, o pescoço levemente inclinado, antes de arranjar-lhe as flores nas mãos. A noiva tinha os olhos pintados de leve sombra ocre e rímel. A boca pálida mostrava os dentes limpos, travados em uma mordida. O cabelo preso no coque desfeito, pendia em mechas que cobriam o lado esquerdo do rosto. Deitada na banheira, tinha o vestido perfurado. Quatro talhos. Todos no ventre.

         Depositou a tesoura suja do sangue seco no lavatório. Olhou-se no espelho e pensou em alegrar a face com um pouco de rouge. Perfumou-se com água de colônia. Abotoou no casaco o delicado broche-borboleta, esculpido em ametista. Recostou-se na porta e esperou, deslumbrada, observando o corpo estendido, até que viessem buscá-las. As irmãs.

 

 

Milena de Almeida (Belo Horizonte-MG, 1980). Jornalista e editora da Mininas, publicação de bolso — 10 x 10cm —  de literatura e artes visuais.  A revista, gratuita, é distribuída em BH, São Paulo e Paris.