GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE GERMINA - REVISTA DE LITERATURA & ARTE Maria Helena Nery Garcez
 

 

 

A ordem das palavras altera o poema

 

 

 

 

adágio

 

 

Eu também teria quebrado o vaso de porcelana da China,

falado demais,

corado todas  vezes.

Eu também teria perdido Agláia Ivánovna,

casado com Nastássia Filípovna,

enlouquecido com Rogójin.

 

Idiota?

 

 

 

 

my secret love

 

 

Once

na catedral de New Orleans

(rima com beans)

Mozart cantava o Ave verum na festa de Cristo-Rei.

Fora,

o jazz mandava seu recado a plenos pulmões.

Nos corações pós-modernos vibrava tudo total.

Foi o dia em que namorei

      — Ó Doris Day —

o homem-estátua da Royal Street.

 

 

 

 

precisão

 

 

Não digo

Errei todo o discurso de meus anos.

Erraria  ainda.

 

 

 

 

surprise

 

 

Chorei quantas pitangas havia na pitangueira e dei a vida por encerrada.

Ela continuou,

contudo.

As pitangas encheram as fruteiras

e alegraram olhos, paladar e rostos dos convidados às bodas...

 

 

 

 

domingos 

 

 

Ó  mães,

             nas casas de repouso,

                                           nos bancos,

                                                           a  ninar bonecas...

 

 

 

 

ad  sodales

 

 

Ah!...

É em Paris que de mim se lembram...

em Istambul...

em Kéops... em Kefrém... em Miquerinos...

postalmente...

 

 

 

 

perplexidade

 

 

Por quê

baixando o sódio e o potássio,

o ferro, o cálcio e o iodo,

cessa o meu criar?

E o poema,

que sódio, potássio, ferro, cálcio e iodo não é,

por que ele aborta em silêncio?

 

 

 

 

declaração de bens 

 

 

Tenho um pequeno rebanho de ovelhas negras

que fazem miau.

 

 

 

 

cabíria

 

 

Vem  soando,

a música,     

nos longes da estrada...

Pequena,

insinuante,

 

E  aquela  Cabíria

— seduzida coral —

do pó se vai erguendo,

frágil,

risos nas lágrimas,   

olhos de estrela,

de novo,

retoma a estrada...

 

 

 

 

pauta

 

 

Dar nomes aos bois.

Dar bois aos nomes.

Eis a questão.

 

 

 

 

confidência

 

 

O salgueiro lutador sou eu,

Harry.

Defendo o meu pedaço
com punhos de aço.

 

 

 

 

outra

 

 

O meu telhado é de vidro.

Eu tenho os pés de barro.

 

 

 

 

mais 

 

 

Eu tenho os pés de vidro.

O meu telhado é de barro.

 

 

 

 

educação familiar

 

 

Nalguns aspectos,

minha educação foi espartana.

Noutros,

à moda da casa.

O que,

pra quem não conhece a casa,

não quer dizer nada.

 

 

 

 

felinas

 

 

I

 

Olhos e costelas de aflição,

das mãos de Portinari geradas,

Ferrugem e Sapeca são mais belas que as Demoiselles d'Avignon.

Mais que os bosques de Viena.

Magérrimas e rabudas

Ferrugem e Sapeca  vogam sonhos nos telhados.

 

 

II

 

Ouvidos de gato,

olhos de lince,

faro de cão,

para quê?  se a hora é de horrores...

 

 

III

 

Bebi o chocolate como quem bebesse o Letes.

Cor contritum et humiliatum Deus non despicies.

E um coração irritado?

E um coração estressado?

Ah! o gato ao sol dormindo no telhado...

 

 

 

 

amor-perfeito

 

 

Fui ensinar teu nome às florinhas.

Elas não quiseram ouvir.

Disseram: Inês é morta.

 

 

 

 

onisciência

 

 

A uma só voz o gregoriano eleva o seu hosana.

No mais alto dos céus, porém,

soam distintos os graus do amor.

Ele sabe quem deixará de cantar.

Ele sabe quem morrerá cantando.

 

 

 

 

queixa

 

 

Ah! a estação da Luz...

Mas ir lá não adianta...

 

 

 

 

meditação do canto I

 

 

O Verbo de Deus,

segunda pessoa da Trindade,

desceu do céu sereno,

fez-se bicho da terra tão pequeno.

 

 

 

 

a cidade I

 

 

Baudelaire, je pense à vous!

E não é por um menteur Simoïs qualquer,

nem ao menos por um cisne evadido da gaiola,

mas por uns gansos  que gritam desvairados

na parafernália da São Luís com a Consolação,

às 18:30 do crepúsculo da tarde!

Jerusalém é cidade bem edificada,

mas São Paulo é a porção da minha herança e o meu cálice...

Dilacerado entre Heráclito e Parmênides,

vê Paris qui change

e que na sua melancolia

rien n'a bougé!

Tenho medo de

— nem sei, ao certo, se quero —

voltar a Paris.

Não se mergulha por vez segunda nas águas do Sena

quando,

profundamente,

já se mergulhou uma primeira.

Revisitei Lisboa, é bem verdade!

E do Tejo, as águas segundas  souberam-me a muito melhor!

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

que,

porque é o rio Tietê,

seu  nome,

todo mundo o sabe.

Pertence a mais de onze milhões de aldeões,

o rio que corre pela minha aldeia.

Nele

não navega nem a memória das naus,

nem mesmo a das bandeiras:

só a cloaca dos mais de onze milhões de cidadãos.

Em Mairiporã

uma vez,

mergulhei a mão no arco-íris,

que começava no meio da encosta,

e tremeluzia  bem debaixo da minha janela,

enquanto as nuvens entravam-me casa adentro.

Em Lisboa,

varais coloridos saíam-me janela afora,

embandeirando o beco da rua do navegante.

Ajudei uma vez a embandeirá-lo

de pijamas, meias e camisas,

enquanto ao longe um pessegueiro espocava em flor.

Pessoa, Pessanha, Sá-Carneiro e Antero, je pense à vous!

Camões,

chorando lembranças de Sião,

je pense à vous!

À Nerval,

mon frère,

pendu dans la rue de la Vieille-Lanterne,

à vous, Francis Jammes,

qui voulait aller au Paradis avec les ânes,

à Verlaine, à Rimbaud…

 

 

De profundis clamavi ad Te, Domine,

Se levares em conta os nossos pecados, Senhor,

Senhor, quem haverá de subsistir?

 

 

 

 

A ordem dos poemas altera a Poesia

 

 

 

 

Maria Helena Nery Garcez nasceu  na cidade de São Paulo, alguns anos antes do IV Centenário. Graduou-se em Letras Neolatinas, fez o mestrado em Literatura Francesa, o doutorado e a livre-docência em Literatura Portuguesa, todas as etapas acadêmicas percorridas na FFLCHUSP. Atualmente exerce docência e orientação de alunos na Pós-graduação, na mesma instituição.

 

Livros publicados

 

Ensaios

Alberto Caeiro/"Descobridor da Natureza"?. Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1985;

Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo, Moraes/Edusp, 1989;

O Tabuleiro Antigo (Uma leitura do heterônimo Ricardo Reis) . São Paulo, Edusp, 1990.

 

Criação Literária

Conta-Gotas. São Paulo, Scortecci, 1987  (Poesia);

Telhado de Vidro. São Paulo, Scortecci, 1988 (Poesia);

Em Trânsito. São Paulo, Giordano, 1997 (Monólogo).

 

 

 

                                                                                                     (imagem de anoushka fisz)