ANSIÃO ANCIOSO

 

São Paulo é uma cidade onde o crime é visto com tanta naturalidade que os marginais já viraram até nome de rua. É Marginal Tietê, Marginal Pinheiros, e por aí vai. O governo não faz nada, diz que vai isso, que vai aquilo, mas é tudo papo fiado, conversa furada, pois o que os políticos querem mesmo é tirar o reto da reta. E quando acontece de um deles ir em cana, não dá nem um dia e já é solto, porque a Justiça gosta de se ater às filigranas jurídicas (do grego phílos + grana, que quer dizer, "gosto muito duma bufunfa"). Agora mesmo roubaram um carro zerinho em folha. A mulher ficou na beira da calçada dando fulos de raiva, numa cena assistida somente pelos desassistidos da rua e por mim, da minha janela. Desmotorizada e atemorizada (vão-se os anéis, ficam os medos), ela olhou para os lados, nervosinhamente, e tentou sair correndo, acreditando que se correr o bicho prega, mas logo um deles a alcançou e foi logo metendo a mão na moça, tirando para fora o órgão maiusculino e deixando-a só com as roupas ínfimas. E antes que ela pudesse gritar, "tarado! tarado!, tragam a camisinha de força!", ele destrajou-a e ultrajou-a, tomando-a por uma vacabunda, tomando por vaga aquela bunda. Fiquei chocado, mas, sobtudo, excitado, na expectativa de um orgasmo nessa minha vida de marasmos. Eu mesmo já fui do balacobaco, de bailar com Baco, escolhia as garotas a dedo. E enquanto minha mãe dizia, "menino, não aceite cu doce de estranhos!", meu pai confidenciava aos amigos, "verás que um filho meu não foge às putas!". Isso até eu conhecer minha mulher e ficar redondamente apaixonado. Bolei um plano maquiabólico para seduzi-la. "Se amarra em horóscopo?", eu disse. "Então vem cá ver meu ascendente...". Ela veio. Casamos. A carne é fraca e o miolo é mole. Atualmente, contudo, me dedico a fazer sexo de próprio punho e expio meus pecados espiando os alheios. Hoje de manhã, no leito, fiz uma tentativa de achegamento. Depois do flato consumado, ela me mandou embora. Enfiei todas as cuecas num saco, menos uma, na qual enfiei o saco, e dei no pé. Mas voltei em seguida e propus, durante nosso jantar à luz de favelas, a separação consensual. Ela disse que preferia a convivência sem sensual. E desandou a rezar, agradecendo ao Pai o pão nosso. Depois de coroa, virou carola. Eu, como acho que a prece é inimiga da refeição, deixei-a sozinha e vim me refrescar, pois está um calor safado e de grau em grau o suor vai enchendo meu sovaco. Sou um ansião ancioso e minha vida é um ócio duro de roer. O dia todo na janela, prostrado e prostático, olhando os cachorros baixos e os muros magros, escutando os greatest shits da loja de discos ao lado - all that I'm saying is give piss a chance. Foi quando vi levarem o carro novinho em forma da tal mulher, que começou a praguejar e pregar praquela escumalha na calçada. Se Jesus prega, prega-se Jesus. E foi assim que deram um jeito nela, quando o sujeito arrastou-a para um ponto entre duas paredes e lhe sapecou uma bela aula de canto, o suco dele no sulco dela. É demais para mim. Meu coração dispara e meu estômago diz, "pára!". A jovem mulher envilecida, na cagada da noite, e os desgraçados só achando graça. O que esperar dessa gentaça? Prostiputas pernambulando, malandróginos fazendo bichê, moradores do morro dos ventres uivantes, onde nada é mais natural do que a morte não natural, lugar de gente mal nascida e bem matada. E depois de tudo, a mulher acabou pernoitando por ali mesmo, amassada e massacrada, até a rua ficar vadia. E eis que, finalmente, ouviu-se um zoomzoomzoom e a acudiram os flashes dos fotógrafos dos jornais. Amanhã ela será notícia.
 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

TRAMPOLIM

 

Ele deve estar sentado no sofá da sala, lendo um livro, ou simplesmente sentado, despido de propósitos, companhia para o pano que cobre o sofá. Ouvindo música, ele adora ouvir música. Eu estou no trampolim, à beira de um grande salto, vestida somente com um quase-nada de pano que esconde meu sexo.

Eu conheço aquela casa onde ele está, mesmo estando ela a tantos quilômetros, fora do alcance das minhas pernas. Eu a conheço de telefone; em longas conversas horas adentro ele me revelou todos os seus  volumes e vãos. Sei onde está o aparelho de som e os CDs favoritos. Os de cantoras brasileiras estão na prateleira do meio, à direita, quase atrás da grande poltrona azul de leitura.

Estou vendo as águas se moverem lá embaixo e, apesar de tão distantes, posso sentir sua gelidez na minha barriga, antecipando o arrepio da queda. Lá embaixo está juntando gente, fazem um movimento parecido com o da água, um burburinho. Já era difícil sozinha. Mesmo sozinha, sempre achei um jeito de ter olhos alheios se pegando em mim, me picando, pinicando. Sempre houve meu outro eu presente, que me insuflava o pudor, que me enchia de vergonha, me mantendo em alerta social. Agora as pessoas estão lá reunidas e seu objetivo é não me deixar esquecer a força da gravidade.

Ele deve estar buscando algo na geladeira, uma fruta. Sei que a geladeira fica perto da pia pois nunca se passaram mais de dois segundos entre o barulho da porta e o da água escorrendo. Ele irá lavar a fruta e voltar para o sofá, e apoiar os pés sobre o braço, com a luz da rua entrando pela janela aberta. No caminho, apanha o controle remoto do som que repousava sobre um pequeno móvel auxiliar. Posso ouvir o barulho do vizinho três metros acima da sua cabeça.

As pessoas lá embaixo são os meus familiares, meu pai e minha mãe, meus irmãos, meu marido, mas eu não reconheço meu rosto no deles. Tampouco consigo me ver no espelho das águas que não param de se misturar e de se turvar. Não me reflito. Não me vejo. Recebo indicações da minha existência pela reação da minha pele ao vento, que a arrepia. Mas que não me levará a lugar seguro, pois sei, também, que peso. Num dado momento me pergunto como vim parar aqui em cima e se não poderia descer furtivamente, apagando, degraus abaixo, o caminho traçado.

Tudo começou de forma tão natural como se o ar estivesse lubrificado e nos tivesse feito escorregar um para perto do outro. 

Palavras foram ditas apenas pela sua função rítmica.

E aí ficou tudo certo, a mesa do escritório com as pernas para o ar e as árvores na rua com as raízes suspensas e o teto dos automóveis arrastando no chão, sendo possível ver os pneus apontando para o céu.

Quando era criança e subia no trampolim sentia vontade de cuspir lá embaixo. Água com água, que diferença faria? O cuspe é a forma aeróbia do beijo. Viaja suspenso no ar. Enquanto o beijo é a forma anaeróbia da cuspida, é a saliva que não se disparou, vai transportada pela língua até outra boca, sem colidir com as coisas do ar. Os dois lados da mesma moeda, ódio e amor. Não acredite quando se diz: porcaria, parece colado com saliva. Saliva cola mesmo, direitinho.

Sentado na poltrona azul ele me contou que pensava em um velho comercial de TV, no qual mãe e filha penteavam os cabelos, a segunda imitando os gestos da primeira. Ele me disse que por quarenta dias sonhou com lavar meus cabelos. No comercial, do qual eu também lembrava, tocava uma música da Billie Holiday, chamada You go to my head. Ele providenciou o CD agachando-se agilmente diante da prateleira e então deitou-se no chão, com o telefone perto das caixas de som. Ouvimos apoiados em nosso passado comum, de dois dias de hotel e da eternidade anterior, durante a qual não nos sabíamos incubados um no outro. Disso tenho saudade, não com a mente mas com o corpo, e não necessariamente com o sexo mas creio que com o pâncreas, que é o órgão que decide de quanta doçura somos feitos.

Sei que as pessoas lá embaixo dariam pela minha falta se eu recorresse ao velho truque de ficar invisível.

Ele deve estar tomando banho de chuveiro, a água se debate pelas paredes do box. Há uma cavidade no azulejo, onde ficam o sabonete e as buchas. Ali é o mais longínquo da casa e mesmo o telefone sem fio já quase não alcança.

Então vou desligar minha vontade e começar a girar o corpo, deixando para trás o trampolim e o estômago de águas que promete me tragar. Acho que sou alguém de sorte nessa vida, graças a Deus. Vai ser ruim, mas vai ser bom. Vou guardar numa caixinha. A memória não pode ser um nervo feito só para doer.
 

 
 
 

A COMPETIÇÃO

 

Foi o pai quem deu a largada, imitando com a voz o estampido de um revólver. Logo de saída o pequeno ficou para trás, enquanto ela e o pai arremessavam para frente as pernas, lado a lado, ela caprichando nas passadas incrivelmente velozes para compensar as muito mais longas dele. O pequeno ficara para trás, sobretudo porque, entre afoito e distraído, detivera-se ainda um par de segundos antes de atender ao tiro de partida.

A cabeça dela batia acima da cintura do pai, mas a verdade é que, naquele instante, mal e mal olhava para ele, concentrada que estava no seu próprio desempenho. Limitava-se a sentir a presença dele ao seu lado, um vulto escuro e compacto, de muito tamanho, vestido com as calças compridas que nunca tirava. Sentia-se um tanto indignada com o fato de o corpo dele precisar executar tão menos movimentos que o dela. O pai dava a impressão de estar descansando no ar e, mesmo assim, parecia invencível. Era como se avançasse puxado pelo impulso das verdadeiras hélices que eram os pés dela, que atraíam tudo à volta, como imãs. Era capaz de apostar que ele nem sabia onde e como a filha aprendera a correr daquele jeito. O fato é que ela apreendia muito nas horas longe dele e da mãe. Eram horas e horas e dias e dias brincando no descampado ao lado da casa, vestida feito moleque, de tênis - mas às vezes descalça -, camiseta e short, muito diferente da Biazinha que ele via à noite, de pijama cor-de-rosa ou amarelo-pálido, ou aos domingos, quando botava vestido ou saia para almoçar na casa dos parentes.

Era no descampado que agora estavam, o pai, ela e Luquinha, e isso deveria proporcionar a ela ainda mais vantagem, visto que conhecia o terreno com a palma da mão. O pai gritou alguma coisa por entre lábios que, pela maneira de moldar as palavras, pareciam estar sorrindo, mas ela não conseguia entender, tão concentrada estava na sua tarefa e tal era a intensidade do vento zunindo nos seus ouvidos. Mas ficou mesmo indignada ao perceber que o preguiçoso, além de estar sendo carregado nas asas do seu jato propulsor, ainda se mostrava relaxado e bem-humorado. Acelerou ainda mais o passo a ponto de sentir o coração quase tocando aquela coisinha no fundo da garganta, que o médico chama de amígdala e a mãe chama de campainha.

Quanto ao Luquinha, ela agora não tinha tempo para ele, ele era muito pequeno. Só torcia para que não estivesse sentado na grama chorando e obrigasse o pai a interromper a competição para acudi-lo. Mas ela não estava ouvindo nenhum choro, talvez porque o vento ocupasse os seus ouvidos, o vento do descampado, um vento que morava ali.

Ela acelerou com força até sentir que, afinal, criara-se um vão ao seu lado, feito da ausência do pai. Sentiu um arrepio de medo, de solidão, agora sem ter com quem conversar até a linha de chegada. Essa, embora nada tivesse sido combinado, deveria ser o final do descampado, onde começava a avenida asfaltada. O descampado separava a casa da grande avenida, deixava longe os carros e as outras casas, as buzinas, a mercearia da Dona Paula. A excitação era tanta que ela nem quis se virar para confirmar a vantagem. E nem precisava, pois o pai deu uma tossida, pigarreou, resfolegou e ofegou, tudo praticamente ao mesmo tempo, dando a entender, sem deixar sombra de dúvida, que principiava ali sua derrota. Mas ela logo sucumbiu à curiosidade e olhou para trás, e viu o corpo dele em marcha lenta, encolhido pela distância, vestido com aquelas calças compridas e sapatos que usava para sair e trabalhar. Precisava fazer algo rápido para socorrê-lo, pai, eu te empresto meus tênis, pai, eu te trago o jornal, te dou um presente de aniversário, preparo a espuma de barbear! Mas então percebeu que além de tossir, pigarrear, resfolegar e ofegar, ele também dava uma gargalhada e gritava: muito bem! vamos lá, vamos lá! Então ela sorriu para ele em retribuição e voltou-se para fazer o que tinha de fazer, quando notou que também Luquinha já o tinha ultrapassado. 

O arrepio se mantinha, só que agora era de felicidade e alívio por saber que ele estava a salvo, e continuava a correr, mesmo dentro das suas limitações. Continuou a perfurar o vento a pernadas e a golpear o chão com seus tênis. A paisagem oscilava, mais ou menos como quando a pessoa treme na hora de bater uma fotografia. Já dava para ver os modelos dos carros que fluíam pela avenida, apesar do suor caindo nos olhos, e podia escutar o barulho dos motores misturado com o zumbido do vento. E lá de trás, de longe, vinham as palavras do pai, generosas, palavras de incentivo que o vento distribuía igualmente entre os dois, Luquinha e ela: vamos lá! vamos lá! E batidas de palmas, que deviam ser para ela, mas que o vento, mesmo assim, insistia em repartir.

Foi então que ela se virou para avistar o pequeno e, num segredo só dela, perdeu um tempão, jogou fora uma porção de milésimos e décimos de segundo, até mesmo de segundos inteiros. Paralisada de susto com a aproximação dele! As pernas chegaram mesmo a enveredar para trás, deu pulinhos sem sair do lugar. Foi como nos filmes de televisão, aquele momento de inexplicável hesitação do bandido com o revólver na cara do mocinho. Um segredo só dela.

Luquinha passou por ela como se tivesse sido arremessado, muito corado e mudo. Cruzou a linha imaginária de chegada, que ficava onde acabava o muro perpendicular ao da casa deles, o muro que dava para a avenida. Mas antes que o irmão vencesse também a fronteira entre o descampado e a calçada, quatro mãos o agarraram e o abraçaram, como nas partidas de futebol. Eram as mãos dela e do pai, que apareceu sabe-se lá de onde. E voltaram para casa assim: Luquinha, o vencedor, no colo do pai, e ela pendurada na perna dele, a perna vestida com a calça comprida. O pai atravessou o descampado com os dois, e não ofegou nem resfolegou nem uma vez. Ele era invencível.
 

 

 

 

 

  

 

Mário Araújo (Curitiba-PR, 1963). Seu primeiro livro, A hora extrema (Editora 7Letras), recebeu o Prêmio Jabuti na categoria "Contos e Crônicas", em 2006.

 

 

 

 

(imagens © silikonvalley)