Feitiços e Cultura

 

Vitalina costumava ensinar feitiços para qualquer um que a procurasse. Gostava tanto de ensiná-los que com o tempo passou a transmiti-los mesmo que a pessoa não os solicitasse. Acabou virando uma doadora compulsiva. Ensinava feitiços para o leiteiro (no seu tempo o leite era entregue a domicílio, embalado num vidro gorducho e transparente), para o homem da venda, para a lavadeira, para a vizinha, para a moça na fila do banco, e por incrível que pareça, até para as criancinhas! E se o presidente da república resolvesse dar uma paradinha no seu portão (ela morava pertinho do palácio), ela sem dúvida lhe ensinaria um feitiço. Bem verdade que este seria muito mais trabalhoso (mas afinal, ser presidente requer um certo trabalho, não é?) e os ingredientes, quase que impossível de ser encontrados...

A generosidade de Vitalina era tamanha, que acabou transpondo os limites da moral e dos bons costumes. E assim, numa simples espiralada do tempo, ela assumiu a esquerda. Para ela pouco importava a indissolubilidade dos casamentos, a heterossexualidade, a obediência, a rigidez ideológica, e todas as regras que tornam (?) o homem civilizado. A civilização ficava bem longe do coração de Vitalina. E se ela tivesse lido "O Bom Selvagem", certamente o acrescentaria ao seu sobrenome. Passaria a se apresentar como Vitalina Leandro de Oliveira do Bom Selvagem. E de nada adiantariam os argumentos de que os sobrenomes exigem a origem da filiação, pois Vitalina amava os bastardos.

Este caminho à esquerda trouxe ainda mais gente à sua porta e à sua casa, numa pacata rua de Larangeiras, acabou se tornando sede do Comitê do Liberou Geral. Os vizinhos, acostumados com as esquisitices de Vitalina, não se importaram com o estranho bando que todos os dias adentrava pelo portão da casa das araras (Vitalina tinha duas). Acostumaram-se com os travestis, com as prostitutas, com os anarquistas, com os visionários, e com toda aquele gente "estranha" que o livro das regras costuma dizer que se deve evitar. Ninguém evitou nada e num passe de mágica a tradicional vizinhança aderiu ao bando. E assim criaram-se os laços mais inusitados. Dona Beatriz, uma pacata dona de casa, fiel e amante da ordem, acabou revelando para Gigi, uma prostituta da Rua Alice, a paixão que nutria pelo carteiro. Claudia, uma mocinha casta e fervorosamente cristã, descobriu Ártemis no olhar de Beatriz, uma acrobata de circo. Seu Manoel, o sisudo português do armazém, seguidor de Getúlio e levemente apaixonado por Salazar, abriu os ouvidos para os discursos de Paulo, um estudante de Filosofia que adorava Bakunin, e da noite pro dia adotou o Hay Gobierno, Soy Contra.

E assim os feitiços foram se espalhando cada vez por mais gente. Ultrapassaram os limites da rua, do bairro, da cidade... e Vitalina pode então descansar em paz. Morreu feliz, certa de que havia passado o seu recado. O Comitê do Liberou Geral compreendera que os feitiços são simplesmente uma rasteira que se dá na cultura!

 

 

 

A Morte no Khol dos Olhos das Meninas

 

Os olhos do deserto já não refletem a noite no khol dos olhos das meninas, nem desaguam líquidos no oásis das beduínas. O deserto enviuvou, secou como a vagina da Medusa a menstruar sangue dos soldados, Cristos dependurados, corpos açoitados .

 

Os olhos do deserto foram furados pela lança do cowboy de Édipo, pelo falo de um deus camelô, cheirado e embriagado, a vender armamentos de guerra e ações de petróleo pela TV. Vai levar, freguês? APROVEITA QUE É HOJE SÓ! Mísseis a preço de ocasião. Compra um e leva de brinde um canhão! 

 

Os olhos do deserto se esconderam aterrados em buracos. Olhos à procura da Mãe. Querem voltar pra casa. Querem o khol, o carmim e a vulva. Querem a brisa morna das noites dos jardins da Babilônia, o calor dos seios da amada Ishtar. Exaustos, acuados, torturados, órfãos de Nabucodonosor, os olhos não querem mais o sangue viscoso do negror das florestas petrificadas em óleo.

 

Os olhos do deserto não querem fumaça a cegar os olhos das mesquitas, nem morte a gelar a carne das suas meninas. Querem olhar outra vez o sêmen do pênis do Eufrates a engravidar as tamareiras. Querem as fitas, os rodopios, os véus e as verduras e frutas das mulheres do mercado. Querem de volta o cio e a ternura do sândalo e das especiarias. Querem recontar estrelas e reinventar uma nova matemática. 

 

Os olhos do deserto não querem mirar a imagem dos seus filhos mutilados em fotografias. Ao deserto basta somente  mirar a Lua e parir caminhos nas estrelas...

 

 

 

Métricas

 

Vitalina costumava dizer que "o comprimento não é coisa dos centímetros e metros". O seu sistema métrico ignorava os tracinhos das réguas e era definitivamente avesso às fitas. Media no olho. Olhava sabe-se lá para qual ponto, estendendo um fio imaginário que vez por outra me surpreendia com a exatidão neo-científica de uma bruxa analfabeta. Invertia a lógica e ria-se de qualquer tonto que tentasse convencê-la da inexatidão dos seus cálculos. Um dia, chegou lá em casa um homem estúpidamente alto, comprido como uma vara, e ela nos disse que ele era "baixo que nem verme minhoquento". Minhoca?! O homem media quase dois metros! Mas olhando para o tal ponto incógnito, Vitalina insistia em afirmar a minhoquês do gigante. De nada adiantou medi-lo, exibir a prova definitiva da fita métrica. Vitalina não se convenceu. Continuou afirmando que o gigante não passava de uma minhoca.

O tempo passou e um belo dia estourou uma notícia na casa: o grandão dera um desfalque no banco que trabalhava! Vitalina nos olhou e sorriu zombeteira: "Eu não disse que o tal era baixo que nem verme minhoquento?"...

Desde então, tenho procurado no espaço o tal ponto incógnito. Aposentei as réguas e fitas métricas, e estico os centímetros entre as pestanas. Descobri que o tal ponto pode estar no intervalo criado pelo piscar dos olhos. Ali, no vácuo da percepção. Escondido e exposto, em movimento e parado. Com o exercício desta neo-ciência, percebi que a métrica transcende o comprimento, altura, circunferência e peso. Me dei conta de que, por mais disparatado que seja, a métrica pertence ao universo dos adjetivos e não dos números. Sim! A analfabetice de Vitalina estava certa: "São as palavras que esticam, encolhem, engordam e emagrecem o mundo".


(imagem ©chris nurse)







Marcia Frazão nasceu no Rio de Janeiro, antiga Guanabara, em 10 de setembro de 1951. Aos 3 anos de idade foi para o Piauí, onde entrou em contato com o realismo mágico do povo nordestino. Retornou ao Rio aos 12 anos. Aos 19, entrou para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde cursou Filosofia. Publicou — pela Editora Bertrand Brasil: A cozinha da bruxa; Revelações de uma bruxa; O gozo das feiticeiras; O oráculo dos astros; A panela de Afrodite; Manual mágico do amor; Amor se faz na cozinha — pela Editora Rosa dos Tempos: Senhoras do santíssimo feminino — pela Editora Cosac&Naify: A bruxa Vitalina; O rei da sola; O dia em que a pracinha sumiu; Ametista, a fada que era dentista — pela Editora Planeta: A casa da bruxa; Guadalupe e as bruxas; O caldeirão da prosperidade e O armário da bruxa.