Temperos

 

 

— Ana, o jantar já está pronto?

 

Não, o jantar não estava pronto, a mesa não estava posta e, pelo barulho, agora tinha um sapato no chão da sala.

 

— Então me traz alguma coisa para beber, Ana?

 

Claro. Arsênico, de preferência, mas sem reclamações. Já tinha lido em algum lugar que era um veneno natural, feito a partir da casca de árvores raras. Muito melhor do que o chumbinho que vendiam nos camelôs. Mata e seca.

 

— Ana, está fazendo o que para o jantar?

 

Soja, de novo. Só para variar, mais uma vez soja. Não poderiam jantar comidas normais nem uma vez na vida, ou ele recomeçaria a ladainha sobre o veneno que ela estava comendo, sobre o cheiro que intoxicava o ambiente saudável do apartamento deles, sobre as conseqüências que o filho dele sofreria quando ela ficasse grávida, tudo por causa de um simples bife à parmegiana, com presunto e muito queijo derretido em cima. Não, queijo de soja não era tão bom. Claro, mais saudável, mas infinitamente sem graça.

 

— Ana, sabe onde está o controle remoto?

 

Quer dizer que Ana é que deveria saber onde ele tinha deixado o controle na noite anterior. Ela, que nem tinha visto televisão. Vai ver ele achava que Ana tinha um sensor que informava a localização de todos os cacarecos que ele deixava espalhados. Controle remoto no canto esquerdo do sofá, sapato no chão da sala, chave de casa embaixo da carteira, tesourinha de unha na segunda gaveta do banheiro, meia suja no cantinho do quarto. Talvez ele achasse que Ana tinha visão Raio X, como o Super Homem, só para enxergar através da parede da cozinha, o controle escondido na dobrinha do sofá.

 

— Ana, vai demorar? Já estou morrendo de fome...

 

Então devia vir cozinhar. Ajudar pelo menos a colocar a mesa, para demorar menos. Quem sabe ele não conseguiria a proeza de fazer um feijão gostoso mesmo sem nada dentro. Ah, o que Ana não daria por uma linguicinha picada boiando ali, só para dar um gostinho. Nem precisava ser uma feijoada completa. O pior é que ele ainda elogiava a gororoba escura que Ana fazia, por mais que ela se esforçasse para ficar cada vez mais sem gosto. Já tinha até deixado de colocar sal uma vez, mas ainda assim ele tinha elogiado. Então ela tinha mudado de tática. Começou a colocar purgante na comida. Queria ver até quando ele continuaria achando a melhor comida do mundo, a mais saudável para o organismo.

 

Como já vinha fazendo nas últimas semanas, Ana colocou um pouco do purgante no feijão. Desta vez, bem temperado com folhas de louro e outros condimentos politicamente corretos. Tudo o que fosse necessário para disfarçar o gosto amargo do purgante. Ela queria testar até quando teria que continuar vivendo num spa forçado dentro de sua própria casa.

 

— Ana, você caprichou hoje. Fez logo o feijão que eu adoro!

 

Ele se serviu generosamente, enquanto Ana colocava no seu prato somente arroz integral e soja, já que nunca tinha gostado mesmo daquele feijão sem nenhuma carne dentro. Cada um tem a alimentação que merece.

 

 
 
 

 

Fantasia branca

 

 

O vestido apertado na cintura a fazia pensar no sofrimento das mulheres de antigamente. Imagina estar sempre apertada em uma roupa assim? Apertada e quente. Ainda por cima, viviam numa época em que nem existia ar condicionado. Felizardas as mulheres de hoje, que exibem a barriga em shortinhos de cintura baixa e os ombros em blusas de alcinha. Só são sacrificadas dentro dessas roupas de época uma vez na vida, quando muito.

 

Luana ainda não acreditava que realmente estava vivendo aquilo. Era como se fosse acordar de repente no quarto rosa, com seis anos de idade, abraçar sua boneca e voltar a dormir. Vai ver era tudo sonho de criança que fica imaginando o que vai ser quando crescer. Hoje o sonho era aquele, amanhã sonharia que era astronauta, no dia seguinte, que era trapezista de um circo. Claro que era isso. E Luana, boba, tinha acreditado que era verdade só porque seu pé estava doendo naquele salto alto. Se bem que seus sonhos não costumavam ser tão ricos em detalhes, muito menos em detalhes inconvenientes. Sonho é bom, gostoso, o pé só dói em pesadelo. Mas, se fosse pesadelo, ela não estaria feliz. Pelo contrário, estaria tentando acordar de qualquer jeito e, quando conseguisse, descobriria que ainda era um pesadelo e acordaria de novo, de novo, de novo... Também não era um daqueles pesadelos em que ela saía de casa sem roupa e todo o mundo ficava olhando. Não, Luana estava mais vestida do que nunca. Cinco camadas embaixo da saia para deixá-la volumosa.

 

O pai conversava com o motorista para disfarçar o nervosismo. Luana ainda tentava se reconhecer dentro daquela indumentária estranha. Antes de entrar no carro, se olhara no espelho e tivera a sensação de que não era ela que ia se casar, era aquela moça fantasiada que estava do outro lado do espelho. Sim, estava fantasiada como no Carnaval, então as regras também deveriam ser as mesmas. Não levariam a sério o que ela fizesse naqueles trajes, só voltaria à realidade na quarta-feira de cinzas. Não precisava se preocupar naqueles quatro dias de absolvição prévia. Só que não era assim, não era Carnaval. Não havia confete, e sim arroz. Dessa vez, tinha se fantasiado para assinar um contrato que mudaria tudo. Como se uma folha de papel, por mais carimbos estampados que tivesse, pudesse determinar que dali para frente ela seria mais feliz.

 

Feliz de quem consegue ter certeza desse futuro cor-de-rosa. Independente do papel, do padre e da aliança, Luana não sabia se seria mais feliz depois de casar. Não queria começar a participar de reuniões de condomínio para ouvir reclamações de quem acha que os maiores problemas do mundo se encontram em sua portaria. Também não se imaginava conversando com as amigas sobre como tirar manchas das roupas. Ou pechinchando preços no supermercado. Ou brigando com o marido por motivos ridículos, como uma toalha molhada em cima da cama. Não queria correr o risco de cair numa armadilha e perceber que todos os seus dias tinham ficado iguais. Já até imaginava a vida de casada. Todos os dias ela daria boa noite ao porteiro quando chegasse do trabalho, às vezes olharia o escaninho, subiria no elevador procurando a chave de casa na bolsa, entraria pela sala, colocaria a bolsa na mesa de jantar, daria um estalinho no marido que estaria vendo televisão, ligaria o gás, tomaria banho... Sempre a mesma coisa. Luana não queria se integrar a essa rotina, como a poeira que se acumula entre as pedras portuguesas e acaba por fazer parte do calçamento.

 

Por que ia casar se não acreditava na felicidade dos casais retratados nos filmes de Hollywood? Por que nenhum conto de fada fala sobre a vida da princesa e do príncipe encantado depois de casados? Seria por não haver nada de encantador a ser dito? Então, Luana também queria parar por ali. "E viveram felizes para sempre" e apertar pause. Não estava interessada na continuação da história. Queria ouvir tudo de novo, até chegar nessa parte pela segunda vez, terceira, quarta, até ela pegar no sono.

 

Daqui a pouco, todos os olhos virariam em sua direção para vê-la andar no tapete vermelho. Mais ou menos como no pesadelo em que ela estava pelada. Alguém choraria, outra falaria sobre seu vestido, ou sobre o penteado, ou sobre qualquer outra parte da fantasia que não representasse Luana como ela é. Elogiariam a maquiagem que tinha deixado sua cara branca e sumido com o queimado de sol que ela tanto gostava. Uma pessoa diria que ela estava mais magra, sem saber que sua cintura estava sendo esmagada pelo vestido. Era necessário cumprir esses rituais? Talvez sim, por causa dos presentes que os convidados haviam comprado como se fossem ingressos para aquele espetáculo. Talvez não. Não faria uma promessa cuja cláusula de término era "até que a morte os separe" sem saber sequer quando seria o evento da morte. Isso seria dar um tiro no pé.

 

Abriram a porta da Igreja e Luana tirou o vestido ante a multidão atônita. Caminhou sozinha pelo tapete vermelho sob a luz do holofote do fotógrafo, de véu, grinalda e salto alto branco. Todos a olhavam, como no pesadelo que conhecia tão bem. Só que agora estava feliz. Feliz por ter se libertado daquela fantasia. Por finalmente ser vista como era. Feliz por aguardar a criança que avisaria que o rei estava nu.

 

 

 
 
 
 
 
 

 

 

 

Pela metade

 

 

Quanto mais te olho, mais os meus olhos parecem grudar em você. Quanto mais  te olho, mais me lembro de tudo o que já foi feito e dito por nós. E essas lembranças juntam nostalgia com mágoa, amor e arrependimento. Dá vontade de reviver alguns momentos para poder consertar o que saiu errado... Então me pego pensando, se eu pudesse escolher um único momento do nosso passado para mudar, qual seria? Quando começamos a ser mais do que duas crianças brincando juntas? Quando nos afastamos e voltamos a agir como duas crianças? Ou será que eu conseguiria me livrar de tanto egoísmo para tentar me infiltrar no momento que te deixou aí, parado, sendo olhado e olhado e olhado por mim?

 

Pois é, meu irmão, fico olhando sua cara estática, com uma expressão neutra, e me pego lembrando do seu sorriso de menino. O sorriso daquela foto que nossa mãe tirou da gente brincando de playmobyl. Lembra daquele playmobyl azul, que veio com uma câmera de TV, que na nossa brincadeira sempre namorava a única playmobyl-mulher? Como era mesmo o nome que a gente tinha inventado para ele? Não lembro. Será que esse nome ainda existe dentro da sua cabeça? Será que eu ainda existo dentro da sua cabeça, ou os médicos bagunçaram tudo e me tiraram daí antes de dar os pontos? Eu devia ter pedido para eles tomarem cuidado com isso, porque se eles tiverem me tirado de dentro de você, me condenaram a viver pela metade. É assim que me sinto quando te olho aí parado: pela metade. E como é que eu posso sobreviver pela metade? Como é que posso voltar a sorrir pela metade, como uma vítima de derrame? Como é que nunca me preocupei em descobrir onde eu termino e onde você começa? Como é que a gente sempre deixou tudo continuar tão embolado? O que é que fui eu que senti e o que é que foi você que sentiu? E agora, que não sei mais se você ainda sente, por que é que me parece tão estranha a sensação de sentir sozinha?

 

Ando com medo de viver sem você, irmão. E como todas as vezes em que senti muito medo, minha primeira reação é pensar em te ligar. Só que agora não é possível. O máximo que  consigo é escutar a sua voz na secretária eletrônica, repetindo sempre a mesma coisa. Oi, agora não posso atender, deixe seu recado depois do bip e eu retornarei assim que possível. Queria tanto te ouvir falando qualquer outra frase! Se você soubesse o que estava para acontecer, será que teria deixado uma gravação diferente para mim? Ou um bilhete? E teria assinado como o irmão que você sempre será, ou como o amante que você já foi? O que é que andava pela sua cabeça e que você se controlava para não me contar? Ah, se você soubesse tudo o que eu guardei dentro de mim em vez de te falar! E agora toda essa auto-repressão me parece ter sido em vão, porque eu me sentiria muito melhor agora se tivesse dito que te amava todas as vezes que tive vontade de fazer isso. Te amo e te quero. Por isso, fico pensando se você sabia disso mesmo depois que nos afastamos. Fico pensando se você também sentia vontade de me dizer a mesma coisa. Se você também especulava se eu sabia que você tinha essa vontade ou se eu achava que você nem pensava mais em mim.

 

Agora é tarde demais para essas perguntas que não foram feitas, mas eu respondo mesmo assim. Não, eu nunca achei que você não pensava mais em mim. Sempre soube que o nosso amor continuava existindo dentro de nós dois e não tinha se transformado em nenhum outro sentimento. Nem raiva, nem saudade, nem amizade. Continuou sendo amor, e só amor. E continua sendo amor, ainda que eu não saiba em que dimensão você está agora, nem se é possível amar nessa sua nova dimensão. Se não for possível, a gente inventa um jeito de continuar se amando mesmo assim. Porque amar não pode ser tão condenável quanto nos fizeram acreditar. Mas se você já tiver ido embora, como é que eu vou brigar pelo nosso amor sem você? Como é que eu aprendo a viver sem você?

 

Ando com medo de já estar vivendo sem você. Essa hipótese nunca existiu nem nos meus piores pesadelos, como é que pôde se aproximar da realidade numa velocidade tão rápida que eu nem percebi? Pisquei e quando abri os olhos de novo: paf, eu já estava vivendo esse pesadelo. Eu já estava sentada aqui, ao seu lado, irmão, escrevendo tudo o que eu gostaria de te dizer se você acordasse e desligasse todos esses aparelhos. Tudo o que eu devia ter te dito antes de o pesadelo começar. Porque agora, que o pesadelo já começou, me pego pensando que você pode virar uma estrela. E se isso acontecer, eu nunca mais vou conseguir olhar para o céu à noite sem lembrar que estou vivendo pela metade. Eu vou carregar um rancor tão grande por não te ter mais comigo, que vou torcer para ter céu nublado todas as noites. Porque se você não puder mais estar comigo, eu não vou querer mais olhar as estrelas e te imaginar tão longe quanto elas.

 

Será que esses médicos ainda deixaram alguma coisa aí dentro, ou essa conversa que está passando agora na minha cabeça nunca poderá virar realidade? Será que eu terei que guardar as nossas lembranças sozinha, de agora em diante? E se não couber tudo dentro de mim? Só as brincadeiras de playmobyl já ocupam um espaço tão grande, imagina o pacote completo? Lembra de quando a gente subiu naquela árvore e todo o mundo ficou procurando a gente? Lembra dos besouros verdes que comiam as frutas que caíam? Lembra de quando eu ganhei um pogo-ball? Quem foi mesmo que me deu? Lembra que eu nunca fui boa no jogo da memória? Lembra da última vez que a gente disse que se amava? Lembra do nosso passado como se fosse uma porção indivisível? Lembra do nosso filho que a gente tirou? Lembra de quando cedemos à pressão e voltamos a ser só irmãos, em vez de amantes? Lembra das promessas que a gente quebrou, dos planos que a gente não realizou? Lembra que foi impossível voltar a ser só irmãos e que a gente resolveu se afastar? Lembra de alguma coisa, ou não existem mais lembranças para você? Você ainda lembra, ou os médicos estão certos quando falam em morte cerebral e tentam me convencer a desligar os aparelhos? Responde a minha pergunta, nem que seja por telepatia, porque o prazo que o plano de saúde me deu está se esgotando e eu me sinto esgotar junto. Minha vida tem passado como se fosse areia escorrendo pela ampulheta, e cada vez sobra menos da minha areia na parte de cima.

 

 

 

 

(imagens ©guy bordin)

 

 

 

 

 

 

 

Márcia do Valle (Rio de Janeiro-RJ, 1978). Escritora, começou a divulgar seus textos em seu blogue, Solta no Mundo. A partir daí, suas palavras começaram a invadir o espaço virtual e, atualmente, podem ser encontradas em diversos sites. Seu primeiro livro, o romance 180 Graus (Editora Marco Zero, 2005), retrata a vida de duas personagens que podem ser encontradas em cada um dos leitores.