CADAÇO E GRAVATA

O cadaço do sapato
amarra o pé.
O pé tem seus dedos
Cada dedo com seu medo
Cada pé com seu arremedo
de forca.

Sei que o cadafalso
não faz calo

meus medos pendurados
nos meus dedos
apertam a gravata.

 


PAPEL OFÍCIO

A parafernália do dia
encontra-se pendurada no horizonte

vésper, rinoceronte e máquina de escrever.
No ocaso, todos vão para casa:
tatu, urubu e mandacaru
na goela do ruminante.

O poeta até tenta:
clica e cospe.
Clipe e pelica o assessoram no ofício.

 

LÁ VEM O BECO

Lá vem o beco
Figura caricata.
Pedras
de construtor
e uma prancheta de arquiteto
na pasta.
O beco quer uma perimetral —
diz ao seu poste.

O beco intimidou o paisagista.

Tirou da maquete de um boteco
uma dose.

Incendiou-te o arquiteto?

Tem funerária no beco.

Ouviu-se um grito seco:
Foge, beco!

 


CATALOFAGIA

A folha que o vento leva
É a medieva
Entre o punho e o húmus.

A folha que o lixo assenta
É folha escrita
Entre a boca e a marmita.

A folha que o livro traz
É a encadernada
Entre o umbigo e a placenta.

A folha que tenho agora
É a do cardápio
Cloaca ou Coca Cola?

 


ECCE HOMO

Passo
na expectativa
em luz de poste

A sombra
tripartida
em holofote

Chega à janela
do cachorro.

Eu babo
e há chuva.

O cachorro lambe
a janela
e projeta seu reflexo
na minha retina.

Fúria canina.

 


GERAÇÃO E MORTE

Parte-se da promessa fresca
Para luzir no horizonte limiar.
E com tragar, tragar, tragar
Mascar sal de peroba com ameixa.

E o caroço, o caroço mastigar.
Dividi-lo em tantas partes seminais.
E por demais, demais, demais
No oco da barriga germinar.

O fruto, folhas, caules
Fotossíntese, comida de lagartas
E depois escassa, escassa, escassa
A cabeleira do neném que nascerá.

Os anos, os anos são estrelas
Que o nervo óptico cansado apresenta.
Vão-se apagar, apagar, apagar
Em poeira de cometa com placenta.

 


A BICICLETA DE LEMINSKI

Chamo por Leminski
e por um assento na palavra
descanso de bicicleta:
de pé ciclista
sentado poeta.

E quem se move?
A prosódia acerta:
ciclovia é pista
e o poeta corre.

Nesse mundo redondo
que gira parado
o poeta sentado
não leva um tombo?

Chamo por Leminski
e pelo ovo de Colombo
de pé equilibrista
sentado omeleta.

 


PEQUENO SANTO ANTÔNIO

Argamassa do caminho
nos bueiros conformada:
terra do rato e arauto
de palavra alimentada.

Uns pés de pilão, moinho
mãos de ladrão de tempo
Cortam-se cocos nos conventos
em frente à Casa da Cultura.

A moldura que os olhos vêem
da praça Visconde de Mauá
É de um banco bem pra lá
dos travestis de plantão.

Pegue a contramão
e chegue à estação do metrô
Pergunte-se para onde vou:
cola, pipoca, cocada?

Argamassa do caminho
nos sapateiros conformada
terra do homem e calçada
de poeira apalavrada.

 


REDOMA

Falam perto de mim, me acercam
Tocam em meu corpo encurvado
Pedem-me desculpas, lacerado
Sei que a fé me diz o quanto pecam.

Agora se afastam, em desalento
Tristes são os que erram pelo nada
Minha alma queda-se calada
Não se passa nada num momento.

Um silêncio profundo me assoma
Distantes são as vozes, quase mudas
Rezo para que a indiferença os tome

Pelo pulso. Sei de todos os seus nomes
Algum deles já ouviu Pablo Neruda?
Deus, me dê por templo uma redoma.

 

©steve bronstein
 
SAL-DA-DE
 
Saudade imensa, sinto.
Intensa e impressa
faça-se dela sem fastio.
 
Sinto uma imensa saudade
que se afasta do usual.
O escrito dê-lhe gostos
de língua informal.
 
Sinto uma falta grande
que tempera o prato esperado
sonoridade aguada
ganhe beiços rebuscados
 
Sinto o sal da falta
de dedo em dedo composto:
Quem me dá um tira gosto
e a aguardente destilada?
 
 
 

SONETO A CARLOS PENA FILHO
 
Carlos, tens notícias do Recife?
Pintaram as nossas pontes de Azul?
A nossa ilha migrou para o Sul?
Carlos, tens lembrado do arrecife?
 
Ensinaste-me com os teus sonetos
E agora quero pôr tudo de lado.
Carlos, o teu estro lapidado
Pôs teu busto na Escola de Direito.
 
As tuas damas belas e azuis,
Ainda te esperam em mares cinzentos
Aonde içavas os teus mastros com malícia.
 
Carlos, por favor mande notícias
Do quanto de granito ainda possuis
Porque o Recife te encomenda um Catavento.
 
 
 

NOITE
 
Sonhei com um soneto somente.
Era apenas um soneto, um soneto só.
Um soneto tão sozinho que dava dó.
Sonhei com um soneto, indiferente.
 
Era apenas um soneto, soneto mudo.
Ele não pedia nada, não me falava.
Entretanto me encarava, a tal me olhava
Como se quisesse pôr-me a par de tudo.
 
Mas era apenas um soneto, era mais um
Era apenas mais um sonho, mais um perdido
E era apenas um olhar, olhar algum...
 
Noutro dia outra manhã, novos olhares
Dessa velha solidão nos calcanhares
E um soneto a me espreitar, adormecido.
 
 
 
*
 
O formalismo geográfico
do esquecimento geológico
a desapropriação da terra
de que a excrescência se apossa
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma fossa.
 
Uma sucessão de pontes
o convencionalismo historiográfico
um cão em sua lídima cova
onde as plumas desmaiadas escorça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma fossa.
 
Um cartão postal retocado
pela computação estatal
o cenário da ponte aérea
no cotidiano da aeromoça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma poça.
 
Os despojos do poeta vadio
na lembrança de Austro Costa
uma sede imensurável
de quem só almoça carcaça
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é uma traça
 
Uma cidade chamada Recife
esquife dialético do novo
um canteiro podre e febril
um intestino, uma víscera, um ovo
quiseram me convencer
de que o Capibaribe é um estorvo.
 
Quiseram me convencer de que o Capibaribe é uma fossa —
 
 
 
 
 
 
Lucas Tenório, 1969, pernambucano de Recife, funcionário público e Administrador de Empresas. Tem poemas e ensaios publicados em vários sites da Internet, entre eles, Revista Cultural de Pernambuco, Revista da Elefante Editores, de Portugal, Revista Ponto de Vista, Viva Favela (Viva Rio), Blocos Online e Usina de Letras. Mais no Jornal de Poesia.