©brian stablyk
 
 
 
 
 
 
      


 

 

 

Aqui estou para ler a assinatura de todas as coisas — essa é uma das proposições felizes de James Joyce, proposição que parece encerrar em si uma síntese conceitual de todo seu trabalho como escritor. O escritor deixa de ser um criador de obras ficcionais, e passa a ser o leitor dos signos cifrados do mundo. O trabalho da criação se confundiria com o da hermenêutica: criar é, como diriam os antigos, sinônimo de descobrir e achar, ou, como diria modernamente Martin Heidegger, a criação do ente implica o desvelamento do ser. Para ilustrar essa tendência observada no pensamento e nas artes, podemos recorrer a um relato curioso do filósofo Antonio Negri. Ao participar de uma eleição em Paris cuja finalidade era escolher o livro que os participantes levariam para a lua, presenciou decisão unânime: o Mil Platôs de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Livro este capaz de traçar um panorama da terra vista de cima e de sintetizar as desterritorializações de fronteiras e paradigmas a que nos conduziu a nossa tão gloriosa e tão malfadada modernidade, já que sua essência parece consistir no seu caráter ambíguo de ruína e esplendor. É um fato que tal votação se direcionava com prioridade para a filosofia. Mas não resta dúvida de que, aqui e ali, o Ulisses ou o Finnegans Wake de James Joyce, Em Busca do Tempo Perdido e O Processo, dentre outras obras que compõem a lista de afinidades eletivas de ambos os autores, fizeram eco e ganharam menção.

O papel que a arte e a literatura ocupam no pensamento de Deleuze é de uma primazia que nem precisa ser relembrada. A lista de autores que ele agencia em suas linhas é enorme, de toda procedência e fatura, de todos os quadrantes estéticos e qualitativos. Impossível analisá-los em um só texto. Desde os modernos Kafka, Artaud, Fitzgerald, Sacher-Masoch, Sade, Borges, Pessoa, Beckett, Zola, Tournier, Carroll, Roussel, Klossowski, Melville e Lautréamont, aos antigos, como Lucrécio e os estóicos. Isso para não falar na arte plástica, passando por seu estudo magnífico sobre Francis Bacon e pelas menções a Jackson Pollock, e culminando em seus livros fundamentais sobre cinema. Devido a isso, apenas sugiro algumas conexões nessas linhas que se seguem. Por seu turno, mais especificamente, as afinidades entre o pensamento de Deleuze e alguns desses autores, sobretudo Joyce, Kafka e Proust, são patentes e especiais. De igual modo pode ser vista a importância que esses autores e Deleuze têm para a modernidade. Tal semelhança pode ser reduzida a uma única constatação exponencial: não se deve mais perguntar o que quer dizer um livro, investigar o seu significado ou esgotar as possibilidades de seu significante. Há que se coroar a ruína mais que tardia da hermenêutica, e também da crítica literária, tal como ainda hoje romanticamente a entendem e a exercem. É em virtude desta ocupação obsoleta de indivíduos igualmente obsoletos, seres anódinos que circulam pelos corredores hospitalares das universidades, que muitas vezes ainda se incorre em tantas falácias. Uma delas, comum em leitores ingênuos de Joyce, por exemplo, diz respeito ao deslumbramento com a copiosidade de línguas (ao que consta são cerca de cinqüenta) presente em seus trocadilhos, sem notar o teor de ironia que o autor estabelece para com o leitor por meio dessa tática de intimidação e sem perceber que não está aí o cerne de sua arte.

Operação em rizoma, desmanche do pensamento pela forma furiosa mais do que edificação de palácios ocos de conceitos, a nova questão que Deleuze e tais obras propõem não é do âmbito substancialista, de se pensar o que é ou no que consiste algo em sua essência. Deve-se perguntar sim como uma obra funciona, em conexão com que ela produz intensidades, em que multiplicidades de sentido ela se introduz e se metamorfoseia, para que trama de corpos sem órgãos ela converge. Apreensão de fluxos, desenho de intensidades, corpos que se constroem e se volatizam, territorializações, planos de consistência e de imanência, estruturas molares e moleculares que afiançam a base sobre a qual irá se assentar uma experiência perceptiva singular. O que conta aqui não são sujeitos, nem atitudes ou convicções políticas, mas o regime de signos ao qual a matéria se subordina. E devemos aqui tomar matéria em sua acepção etimológica, ou seja, como afim a matema, que é tanto o coração do pensamento e da filosofia, como queriam os pitagóricos, mas também a origem do saber matemático e numérico sobre o qual repousa a harmonia das esferas. Cumpre também, como praxis, pensar quais são as linhas de fuga pelas quais se foge à ordem do capitalismo, tal e qual o vivemos em nossa época.

Não estamos nos movendo num terreno de simbolismos, alegorias ou fantasmas. Cabe à psicanálise criá-los, por uma simples questão de conveniência e, sobretudo, de subsistência. Não estamos lidando com figurações ou com instâncias figurativas da realidade que necessitem de contornos para que haja polarização, conflito e resolução, como no caso do romance psicológico, que tem seu ápice em Dostoiévski. Não estamos na dimensão teatral, sobre a qual radica todo o fundamento de Édipo. O inconsciente não é um teatro, dirá Deleuze, com seus papéis logicamente distribuídos e psicologicamente identificáveis. O inconsciente é uma usina: quem delira, delira com toda a história e com todas as ranhuras não formalizadas das estórias, suas e de outrem. A princípio, podemos dizer que no Finnegans Wake, por exemplo, inexistem personagens, entes fechados, linearidade comportamental, verossímil com o desenrolar do enredo. Não obedece à linearidade causal e sucessiva de uma novela de Balzac, onde o personagem, imerso naquele jogo de dualidades tão brilhantemente dissecado por Roland Barthes, se dá conta da dualidade suprema: o travestimento de Sarrasine, meio mulher meio homem. O caráter metamórfico da obra de Joyce nos impede de construir planos de percepção centralizados. Ana Lívia Plurabelle pode aparecer apenas sob a rubrica de ALP, se transformar em rio, já que ela mesma é o rio Vau, onde as lavadeiras lavam a roupa suja da intimidade de Humphrey Chimpden Earwicker, vulgo HCE. Pode irromper sob a forma de galinha ou de qualquer outro elemento da natureza, bem como pode ter sua identidade dispersa em cognomes diferentes e em diferentes atributos e entes, animados ou não.

Assim, a política dos devires se encarna e se metaboliza: passo a passo a realidade se constrói na plasticidade vocabular e também através dela: parte do signo como meio de acesso às dimensões supra-sensíveis, não rumo à transcendência, como seria de se esperar, mas sim em busca das virtualidades da matéria, como diria Deleuze. Não há mimese, não no sentido comum desta palavra. Pois não nos cabe descrever a realidade, nem há qualquer intenção em eleger um objeto artístico de predileção, mas sim plasmá-la, violá-la e capturar apenas o movimento puro, o entrecruzar de fios subjetivos que ascendem aos olhos e sucumbem logo em seguida num estranho horizonte de possibilidades. Devenir nest pas imiter: devir não é imitação, não é representação, mas energia criadora, potencialidades virtuais que se escondem sob o Percepto e vez ou outra mostram seu grau de efetividade, independente do seu campo de atuação e de suas modalidades. Por isso Deleuze diz em uma entrevista que o que lhe interessa, na verdade, são as relações entre arte, ciência e filosofia, posto que as três têm um núcleo comum: a criação. Não existe privilégio de um desses saberes sobre os outros. Cada uma delas é a seu modo criadora. O objeto da ciência é criar funções, o objeto da arte é criar agregados sensíveis e o objeto da filosofia é criar conceitos.

Como uma malha compacta que se desmancha provocando uma reação em cadeia, temos nosso ser desfiado, convergindo para um núcleo de forças, como a rede se direciona de acordo com a corrente marítima. Justo neste núcleo e neste ato de nos desfiarmos, onde a psicanálise diz que não encontramos nosso verdadeiro eu, podemos dizer: nós ainda não desfiamos nosso eu totalmente, ainda não conhecemos de fato todas as nossas possibilidades. Pois em tudo a filosofia de Deleuze pode ser vista como uma política do possível, tomado em sua virgindade. Diferente dos projetos abstratos, é um pensamento que procura revelar vias de acesso, criar territórios, orientar práticas, experiências, realizações. Aqui a construção da realidade se dá no nível lingüístico e ela mesma se projeta numa dimensão que prescinde de correspondência com a exterioridade empírica ou com a realidade positiva. Por outro lado, se insere nas fissuras do real, brota delas, nasce de suas aberturas as mais inesperadas, para que também a opacidade da linguagem se resolva e se traduza na completa transparência do mundo. E de novo, mais que oportuna, a literatura é vital. Pois se Deleuze também parte da premissa lacaniana da linguagem, segundo a qual somos mais atuados por ela do que seus atores, somos mais constituídos por ela do que seus constituintes, o filósofo dá um passo além em relação à psicanálise, ao quebrar a disjunção entre os planos simbólico, imaginário e real. E o faz, muitas vezes, recorrendo à literatura, esse sonho dirigido, para lembrar as palavras de Borges. Porque para esta não há polarização nem cisão representacional: a palavra subsiste nas coisas que designa, conferindo-lhes a própria realidade e razão de ser. Não há recalque do inconsciente em um pretenso sujeito do discurso, não há deslizamento do inconsciente para um ponto de fuga individual determinado. Maquínico, o inconsciente está mais próximo das experiências-limite do corpo sem órgãos de Artaud, dos territórios e intervalos compostos por Proust, do esvaziamento de toda a subjetividade que lemos em Kafka, dos corpos-linguagem de Klossowski. Não se trata de uma zona de sombra a ser iluminada e resolvida pelos dispositivos da razão e da mesura, mas de um novelo que precisa ser mais e mais desfiado para que a própria noção de eu e de sujeito seja felizmente destruída e soterrada.

É um pensamento que não comporta mensagens, não pretende sínteses totalizadoras. Está mais próximo do abismo do infinito, perquirido pelas belas linhas de Emmanuel Lévinas, e das injunções complexas da ética, pulverizada em todas as interações possíveis entre os homens, interações que nos despertam para a revisão de todos os estatutos jurídicos que regram os valores e as relações civis entre o homem, os animais e o planeta, entre povos, indivíduos, raças, credos, nacionalidades, línguas, culturas e afins, em um mundo que se vê aturdido pela falta de paradigmas a partir dos quais se orientar. Redescobrir e se abismar no Outro — eis o imperativo. Pensamento que quer dissecar o movimento, mapear a marcas subjetivas operadas no real para além dos indivíduos, confiscá-las, entender como elas funcionam, quais os seus substantivos, em suma, fazê-las falar. A Tipologia, ou seja, o conjunto de abstrações conceituais cordatas efetuadas em busca da identidade, cede à Topologia: o decalque, a assinatura, a inscrição, o mapeamento visto sob a ótica da diferença e de sua excentricidade irredutível. Uma filosofia da diferença que reconhece a própria finitude e a impotência dos conceitos diante do mundo que pulsa, o horror à descrição que distancia sujeito e objeto, a intraduzibilidade do sensível e do experienciado de Kierkegaard finalmente afirmada e redimida, isenta das possíveis conotações pessimistas e religiosas de origem. O pensamento passa da história à geografia: deixa de ser uma sucessão de significantes que aspiram a dizer e passa a integrar a metáfora mineral das placas tectônicas, platôs, superposições de camadas, sedimentações, desníveis, movimentos, pulsações e deslocamentos de estratos que não nos remetem a sentidos ulteriores e que se negam mesmo a qualquer tipo de teleologia, essa forma branda e terrível de entorpecimento do espírito. Aspira a ser, não a dizer. É por si só uma diferença, um corpo singular, uma das faces assumidas pelo Percepto mais do que a cristalização operada pelo Concepto e seu corte cirúrgico nas malhas móveis da vida. Não representa a realidade: é o próprio real e o que ele engloba.

Um movimento semelhante se encontra na obra de Joyce e de Proust, além de outros autores caros a Deleuze. Porém, de modo matizado. Creio que, no Ulisses, Joyce tenha chegado ao ápice da narrativa de tipo flaubertiano, levando-a ao próprio paroxismo por meio do fluxo de consciência. Porém, por mais que esse fluxo dissolva a unidade subjetiva e todas as contingências históricas em um caudaloso rio que arrasta tudo em seu leito, nele tem-se a impressão de estar entrando em um edifício, um monumento, algo de muito poroso e ao mesmo tempo muito sólido. Um compartimento erigido em monolito, mas cujo acesso nos fosse facultado por qualquer um de seus lados, entradas, portas, poros. Em suma: um monomito. Não é necessário seguir linearmente o enredo, e a escrita mesma dos capítulos se deu de maneira simultânea, como já foi aventado pela análise genética dos manuscritos por parte de seus exegetas e biógrafos. Mas se o mito é uma narrativa sem sujeito, como quis um teórico, no Finnegans Wake temos a diluição e o desmantelamento noturno deste castelo, dessa Martelo Tower literária, talhada no bronze mais perene. O fluxo noturno e as movências fluidas e invisíveis que passam pelas veias dessa construção entram em cena. Já não há mais um pacto com a superação do realismo ou com o espaço romanesco herdado da grande tradição do romance burguês. Estamos em uma ambiência mais próxima dos tratados herméticos e alquímicos dos séculos XVI e XVII, por exemplo, ou de monomitos de arte verbal, criados única e exclusivamente para serem decifrados. O que no Ulisses era recuperação da tradição bufa, de Folengo e Rabelais a Flaubert, e arquitetura verbal, no Wake se transforma em arte hermética, pura e simples, e em técnica narrativa híbrida, afinada no diapasão de uma espécie de música absoluta, onde o rio melodioso e amorfo dos sons cria corpo e produz sentidos à superfície da linguagem.

É consenso dizer que há artes do espaço e artes do tempo. Segundo a semiótica, artes que tratam a informação em paralelo e em série, por justaposição ou por subordinação, por parataxe ou por hipotaxe, respectivamente. É interessante notar como uma das tendências de certas correntes da arte moderna é inverter esses papéis: artes espaciais, como a escultura e a pintura, ganham dinâmica, são de uma certa forma temporalizadas. Temos isso bem nítido na experiência dos artistas imbuídos de bergsonismo. O mesmo ocorre na tendência contrária. Artes temporais, como a literatura e a música, se valem cada vez mais do espaço. No que tange à música e à guisa de exemplo, Pierre Boulez conseguiu reproduzir, por meio da tecnologia de câmaras de eco, as freqüências emitidas durante a interpretação de suas peças para flauta solo, dando assim a impressão esférica do som projetado na sala de concerto. Quanto à literatura, essa tendência vem de muito antes e podemos detectá-la em Proust e Mallarmé. O mecanismo de Em Busca do Tempo Perdido, construído a partir de cadeias associativas e redes de ligações nos remete a uma esfera atemporal, tem a estranha capacidade de nos dispor a existência de substâncias estáticas, como que intactas perante os desmandos do próprio tempo. O longo devaneio do biscoito e do chá, do qual Marcel desentranha toda a estrutura em espiral da Busca, os infinitos motivos de sua separação de Gilberte, o seu demorado processo de adormecimento, a arquetípica bifurcação de Guermantes e Villeparisis, a sonata de Ventuil executada na casa dos Verdurin e seu importante ritornello, a figura de Swann transitando por todas as esferas sociais, o hotel de Balbec, o grupo de meninas praieiras aglutinadas numa única massa perceptiva amorfa, o trem, o tecido azul da cortina no qual Marcel mergulha, entorpecido de café durante a viagem, o caminho dos Champs Élysées, a frustração diante da duquesa de Guermantes, o retrato de Odette de Crécy feito por Elstir, o encontro de Charlus e Jupien, Sodoma e Gomorra, o tempo transfigurado e por fim redescoberto. Tudo isso aliado às reflexões de Proust sobre a origem de nossas percepções, animosidades amorosas e a eternidade intrínseca à obra de arte e à atividade artística, nos impregna de uma sensação de perenidade nunca antes aparecida em literatura. Por isso Proust pediu que a Busca fosse vista primeiramente como uma catedral, posteriormente como um vestido: infinidade de rendas, mônadas, fulcros entretecidos de intensidade cambiante, como uma colcha de retalhos, onde a transição de um compartimento a outro, de uma célula social e outra, se faz pela mundanidade e pela transversalidade dos sujeitos, como Deleuze propõe em seu estudo brilhante dobre o grande escritor francês. Essa operação se dá principalmente pelo espírito mundano do judeu Swann, que transita entre os diversos seguimentos sociais e promove as suas conexões. E é por isso, por conta dessas correspondências dessimétricas realizadas mais no campo espacial do que no fluxo temporal, que o filósofo diz muito acertadamente, por paradoxal que possa parecer, que na Busca o espaço é mais importante que o tempo.

No caso de Mallarmé, como sabemos, esse movimento se faz pela ruptura com o conceito de verso. O aproveitamento de recursos tipográficos, onde os signos são dispostos em sete níveis distintos e cambiantes de leitura, dá a idéia de um poema constelar, projetado estaticamente ao redor do eixo a que o poeta chama a Idéia, espinha absoluta e incorruptível do mundo, ou da frase-chave, seu próprio título, que funciona como leitmotiv. James Joyce segue essa tendência. Porém, no Finnegans Wake essa tendência à espacialização desaparece ou, se quisermos, se torna complexa, poderíamos dizer que adentra a dimensão de um espaço-tempo dificilmente definível em poucas linhas. Porque não há mais edificação, mas sim desmantelamento, não há mais luminosidade solar, mas fluxo líquido contínuo, subterrâneo e indeterminado. A arte temporal chamada literatura submerge em definitivo no devir temporal que lhe enforma a própria essência e que radica como pedra angular em seu coração. A passagem do Ulisses ao Wake, como já foi mais de uma vez observado por vários estudiosos, é a passagem do dia à noite, do estado desperto e solar ao estado de vigília e de delírio. No entanto, ambos os livros se tocam, no horizonte poético e literário maior da obra do autor. Obra esta de orientação metafísica, fruto de leituras de Dante, Tomás de Aquino, Vico, Giordano Bruno, da tradição da alquimia e de práticas iniciáticas da Golden Dawn, ordem secreta da qual James Joyce foi integrante. O personagem principal dessa obra, à exceção o próprio autor, dado o forte teor autobiográfico de sua ficção, é a energia criadora, a magia verbal tomada em sua latência e em sua vocação épica.

No caso desse monumento admirável e espantoso que é o Ulisses, como apontar, e se eles existem, quais são os recursos precisos que lhe dão o tom? Como explicar as atmosferas do Prostíbulo e do Hades homérico, este último ambientado nos túneis escuros de Dublin, no momento em que os amigos se dirigem para o enterro de Dignam? Como explicar o tom idílico e irônico de Leopold Bloom no episódio em que flerta com as garotas na praia, e que, sem perder a graça e a leveza, consegue mobilizar em si as massas de informação que a crítica tem evidenciado? Capítulo paródico, como toda a obra, baseado em reciclagem estilística e vocabular da literatura do século XVIII? Como averiguar a importância do monólogo de Molly Bloom, e ir além das evidentes e inúteis constatações psicanalíticas acerca da sexualidade feminina, das associações aos mitos matriarcais ou de uma mera transposição do regresso de Ulisses a Ítaca e a Helena? Como definir o personagem Stephan Dedalus, que já aparece no Retrato do Artista Quando Jovem, e seu forte caráter autobiográfico? Em todas essas instâncias a palavra agencia em si o real e ao mesmo tempo o transforma. Não há cisão ou disjunção entre o imaginário e o que há de atualizado em nossa realidade imediata, por mais ordinária que ela seja, como a obra de Joyce bem o demonstra, raiando as margens da profanação e unindo o mais erudito e sublime vocabulário às cenas mais sórdidas, hilariantes e grotescas de que temos notícia. E só ter feito isso já constitui uma das grandes virtudes do escritor irlandês e sua contribuição maior às letras.

É curioso notar como há uma tendência da literatura moderna de criar universos instáveis, porém estáticos, espacializados. Trata-se de uma postura diante da arte e do mundo cujo sentido último, mais do que pura e simples renúncia, é uma atitude ativa, crítica, pois consiste, de modo ambivalente, em uma negação sumária da realidade, tal como ela se nos apresenta, aviltada e amesquinhada, e uma afirmação das potencialidades vitais que foram lançadas para fora da circulação social, em conseqüência do esvaziamento intelectual e espiritual levado a termo pela idolatria do dinheiro. Este passa a ser a instância reguladora de todas as nossas práticas e o horizonte último da experiência humana, fora do qual nos aguardaria o completo silêncio ou a mais tácita inexistência. Porém, a literatura, ritual auto-imolatório, transforma a carência em ser, a anulação em potência e esta, em uma forma superior de afirmação. É nesse espectro de ação que se direciona um autor como Kafka e é nesse sentido que ele produz uma literatura menor, nas palavras de Deleuze.  

Menor porque faz da sua morte como autor a maior de todas as glórias da escrita. Menor porque não se rende à circulação das mercadorias nem aos valores arruinados e vendidos de qualquer cânone. Menor porque produz a escala valorativa de seu próprio fracasso e transfigura sua ruína na forma mais intransigente de existência. Menor porque morrer como um cão ou viver como um inseto, na escrita, é exorcizar o negativo e devolvê-lo à estupidez pensamente que o consumirá, mas que é, no entanto, fracassada, natimorta, eunuca, desprezível, covarde, porque não teve a coragem de encarná-lo. Menor porque chegar à maldição, incorporá-la, vivê-la e, mais que isso, querê-la e amá-la, não é tarefa para o gado, seja ele intelectual ou não. É o dever e o devir do herói, que purifica o mundo pelo sacrifício e o torna habitável ao abraçar e ao reivindicar para si toda abjeção. Menor porque transforma a miséria em esplendor por meio do gesto deliberado de não sofrer a negação, mas de querê-la, e assim fazer do negativo e da ruína o mais diáfano e perene dos castelos erigidos em nome da beleza.

Muitos outros autores seguem esses caminhos, como Borges, Pessoa, Beckett. Criam um universo privado, um cosmo auto-suficiente, um mundo com sistemas de significação que lhe são próprios, suplementares, como para suprir a lacuna da vida. E é essa escrita feita no intervalo entre a vida e sua negação que mais afirma nossa potência. Porque ela nos diz que uma obra é uma obra em si e por si. Porém, espelho simétrico da própria vida, sua autonomia se enraíza no que há de mais profundo em nossa consciência coletiva e nos fornece a as linhas de nossa própria face. Ela é existente e subsistente. É um Afecto — uma vida. Puramente afirmativa, não traz em si nenhum trauma ou recalque, porque, sendo vida, só pode agir e existir na potência, nunca no ressentimento e na má consciência. A potência é sua definição ontológica incontornável.

Aliás, a ambição suprema do artista moderno parece ser a de dar vida, trazer à luz um ser, não comunicar uma mensagem ou representar uma exterioridade. Para isso seria necessário um otimismo filosófico que já não nos cabe. O criador, como esquizoanalista de si mesmo, não quer interpretar seu fantasma, saná-lo e inscrevê-lo novamente na ordem, mas sim sublimar sua existência — falta, ausência, pecado, culpa — em fato experimentado. Transformar o não-ser em ser. É realizador de um itinerário, de um roteiro, de um programa. E, como nos lembra Deleuze, há bastante diferença entre a interpretação psicanalítica dos fantasmas e a experimentação esquizoanalista dos programas. Entre o fantasma, interpretação a ser ela própria interpretada, e o programa, motor da experimentação, como lemos em Mil Platôs. Assim, na medida em que a arte elide tanto sujeito constituinte quanto objeto constituído, trabalha dentro de margens escusas, fora do domínio relacional imediato, é justo qualificá-la de desumana ou, no mínimo, como portadora de um novo senso de humanidade. Nesse aspecto, somos forçados a concordar com Paul Valéry: estamos diante de um humanismo seco, áspero, não mais aquele feito de uma abnegação perversa, porque escamoteia, elide suas finalidades e interesses implícitos. Como um personagem de Beckett, a obra dá as costas à humanidade (a platéia), pois essa é a sua forma de se singularizar e só a partir de então produzir sentido. Diremos que é a sua forma de se salvar.

Dos exemplos citados, por mais diversos em suas particularidades, podemos tirar um fator comum, alguns princípios eletivos, que valem para todos eles, bem como para a situação do mundo em que vivemos. Um deles é a tensão existencial que passa a se concentrar na sua própria raiz. Ora procura minar suas bases, no caso, os preceitos de tempo e espaço, ora os fundamentos de uma prática, quer filosófica ou artística, e subverter seu estatuto. O criador, seja ele artista, filósofo ou cientista, não se satisfaz em herdar um conhecimento dado e propagá-lo para a posteridade com um acréscimo, mas insiste em rever sua própria condição de ser-no-mundo. É a sua adesão ao real que ele atesta e à sua condição concreta e histórica que ele se reporta. Ela que fornecerá o sentido a sua prática e dará a última palavra sobre sua criação, como Heidegger já o atestou no seu libelo decisivo sobre o assunto. Nesse cruzamento entre a historicidade de uma prática, uma arte ou um saber e a sua unidade formal, se fixa o centro gravitacional do pensamento de Deleuze. Mas uma das ambições do filósofo é superar aquela aporia que funda a modernidade, e que consiste, como Foucault já demonstrou, em uma oscilação entre o empírico e o transcendental. Não quer a historicidade que apostasia o elemento material em detrimento da produção de sentido que esses mesmos elementos podem produzir para além de sua contingência histórica; tampouco quer negar a constituição material do pensamento, dos objetos, dos valores, das práticas, pois é nas suas tramas que somos atuados e são os seus próprios contornos que o pensamento autêntico tenta transbordar. Por outro lado, Deleuze não só recupera, mas faz deles o cerne de sua filosofia, apenas e simplesmente os dois motivos centrais do pensamento no Ocidente: o conceito de acontecimento e a relação entre identidade e diferença. Como bem observou Alain Badiou, conceitos que são também a espinha dorsal do cristianismo, traduzidos em termos de revelação e advento e de diferença assimilada à pura identidade de Deus. No caso de Deleuze, trata-se do reconhecimento, sob a ótica imanentista, da unidade que subjaz ao múltiplo e ao aparentemente polar, da univocidade que fala a partir da diferença e apenas dela, do singular irredutível, da ordem dos fatores que não se excluem. Porém, a multiplicidade não existe por si só. Ela integra aquilo que o filósofo chama de espaço ideal de pensamento, espaço este para o qual ele transpõe tanto a história da filosofia quanto a história propriamente dita e a atualidade. Este é um dos conceitos nucleares de seu pensamento. A partir dele é que ele vai fazer ruir a dialética e os transcendentais platônicos, bem como o apriorismo kantiano.

Esse espaço ideal do pensamento pode ser entendido como uma cartografia, uma película de decalque sutilíssimo. Para essa cartografia não importam Descartes, os dualismos e o cogito, nem Hegel, as tríades e o trabalho do negativo. Não estamos no campo da tão celebrada história da filosofia, também ela história de uma longa barbárie, pala lembrar o tema de Walter Benjamin. Valem aqui, ao contrário, aqueles autores que, como diz Deleuze, parecem fazer parte da história da filosofia, mas a ela solenemente dão as costas: Lucrécio, Duns Scott, Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson, Whitehead. Esses autores, podemos objetar em um primeiro momento, têm pouca relação entre si, com exceção de Nietzsche e Espinosa. No entanto, mantêm outro tipo de relação. Dir-se-ia que algo se passa entre eles, com velocidades e intensidades diferentes, que não está nem em uns nem em outros, mas realmente nesse espaço ideal que, para Deleuze, não faz mais parte da história. É o lugar geográfico e geológico ocupado pelo intempestivo, que ele via em Nietzsche principalmente, pelo pensamento que não se projeta nem como eterno nem como histórico, que renega o duo de alternativas temporal e intemporal, histórico e eterno, particular e universal, e considera o intempestivo como mais profundo que o tempo e a eternidade, pois perfaz o desenho de um pêndulo em constante oscilação entre as margens postuladas.

É esse espaço ideal, essa zona de indeterminações e lapsos propícios ao pensamento que possibilita a contaminação de diversos componentes, já que perderam o caule transcendental que os elegia como corpos incomunicáveis. É o espaço ideal da tela de cinema, tão cara a Deleuze, onde o mundo vibra em uma heterogênea composição de cores, tons, freqüências, velocidades, realidades, perspectivas e matizes no domínio de um horizonte único, de uma unidade pulsante e por isso antípoda dos nivelamentos e homogêneses. É a afirmação do uno, sim, mas que se dá na unidade vital e apenas nela; um uno que só pode ser atingido pela multiplicidade, pelo fragmento, pela força diferencial e através deles apenas. É um uno que bebe em Leibniz e em seu Deus-mônada, e encena uma relação especular e conflituosa com filósofos da identidade unívoca, como Parmênides e sua matéria imóvel que admite unidade formal e pluralidade sensível, mas que os transgride em benefício da diferença pura.

Uma filosofia da diferença consistirá basicamente nisso: sua noção de conhecimento e de sua produção estará pautada na capacidade de organizar de novo o mundo, mediante outros paradigmas, de afirmar as singularidades e emergências que se fazem presentes e torná-las viáveis. Muitos detratores podem chamar tal filosofia de irracionalista. Mas o que está em jogo não seria uma responsabilidade de outra ordem que não a ordinária? Uma responsabilidade trágica, para falar com Nietzsche? Um padrão de compromisso e cumplicidade com a vida que, mesmo nas condições mais adversas, nos obriga, não a negá-la, mas a reinventá-la? Em um tempo que, em meio às nossas atrocidades cotidianas, nos vemos diante da liberdade total, tentar dirigir essa liberdade sem, contudo, nutrir qualquer esperança de sua realização ou de uma redenção ulterior não seria essa uma nova maneira de acreditar? Uma nova crença?

 

 

 

 

Que idade a Terra tem? Quem a Terra pensa ser? Ao dizer isto, estou invariavelmente delegando a ela a condição de ser pensante. Mas que não é, nem se aproxima, do racionalismo ordinário. Não nos cabe negar a razão, mas dar-lhe elasticidade e tentar encontrar novas conexões que ela estabeleça com o real. Talvez devamos dizer com Ernest Cassirer: o homem tem de ser visto, não como animal racional, homo sapiens, mas como animal simbólico, homo symbolicum. A margem de definição entre os dois sentidos é de difícil demarcação. Mas é inegável que representaria um enorme progresso se conseguíssemos não mais dissociar o inteligível do sensível, atributo esse tomado sempre em relação àquele e, portanto, encarado sempre sob o viés da falta, da insuficiência, da negatividade. Esta disjunção é que gera a dualidade, fundamento de toda a metafísica e da filosofia da representação, oriunda do campo conceitual platônico, que só vai ser amplamente revista pela teoria kantiana do sujeito transcendental e terá seu ciclo definitivamente fechado com Nietzsche. Podemos dizer que todo o pensamento ocidental, de Platão a Deleuze, excetuando alguns casos especiais, como os mencionados acima, se forja em torno de duas idéias basilares: a representação e o inteligível como matriz derivante do real. Criou-se assim uma esfera desconectada da experiência, um conjunto de postulados concebidos a priori, enfim, nasceu assim a — verdade. Não é necessário aqui frisar as relações necessárias que, a partir desse momento, a verdade vai estabelecer com o outro mundo, e como ela vai despotencializar a vida e os sentidos, o desejo e a força vital, e até mesmo a morte, que é então apartada fatidicamente da vida. Também, como diria Nietzsche, se de acordo com tais filósofos a verdade é algo que deve ser perseguido, daqui o leitor aduz por conta própria o quão nocivo e antípoda do livre pensamento é a noção de dever, ainda mais quando o objeto desse enlace é algo que foi feito para ser amado e não servido. 

O fato é que com Deleuze essa simbiose perfeita da santíssima trindade composta pela Representação, a Intelecção e a Verdade é invertida. O desejo, elemento negativo que deve ser domado, as pulsões parciais, corruptelas imperfeitas do ser total e vistas como deficitárias mesmo por Freud, como falta a ser sanada, enfim, tudo aquilo que a filosofia da representação evita, ou seja, o erro, é aqui tomado como potência, como via de acesso e ponto de partida, não à filosofia, mas ao pensamento. O desejo não é carência de ser a ser suprimida, mas sim potência de ser a ser encarnada. Nisso basicamente consiste a noção deleuzeana de uma filosofia que, à sua maneira, se vincula ao fato imediato, ao contorno temporal, ao dado de época, em suma, ao presente. Não é, nem de longe, uma filosofia popular, feita para o consumo, para ser entendida. Ao contrário, a maioria dos textos de Deleuze são intrincados e de difícil acesso. Mas sim uma filosofia que se faz a partir de qualquer coisa: um livro, um som, um objeto, um autor, um complexo de sensações, uma notícia, um fato político, a história ou a própria filosofia. É um saber apropriativo e criativo: assimila o dado e o transforma em criado, introduz no campo do conhecimento, em detrimento da unidade epistemológica da filosofia, demarcada pela regra e delimitada a partir de um campo conceitual de tipo descritivo, o fator experimental e operativo. Quer estar mais próximo ao Pensamento, saber o que a Terra pensa. E para isso é necessário se distanciar da filosofia. Como diria Nietzsche, só quando deixamos a cidade sabemos a que altura suas torres se elevam sobre suas casas.

 

 

 

 

Há algumas teorias recentes segundo as quais a constituição biológica do ser humano, como a concebemos atualmente, teria derivado e sido conseqüência de um longo processo evolutivo, de agenciamento de forças, tendências, posições climáticas, acontecimentos milenares que acompanham a chamada história natural, onde o homem teria por antecedentes longínquos os primeiros seres unicelulares e estes, por sua vez, teriam se desdobrado em outras espécies mais complexas estruturalmente, até atingir a diversidade da vida planetária que conhecemos hoje. Acontece, entretanto, que os desenvolvimentos da vida e do universo não operam de forma evolutiva ou excludente; são coetâneos, derivam um do outro e se moldam mutuamente. Assim, crêem os cientistas, toda possibilidade de conhecimento do universo já estaria previamente mapeada em nossa constituição biológica e mental. Esta guardaria, como um arquivo de precisão delicadíssima, pacientemente sedimentado, todos os passos dos seres vivos sobre a Terra e todos os movimentos empreendidos por ela desde sua primeira erupção de existência. Essa tese é sustentada pelo professor Wagner Garcia, do Massachusset Institute of Technology.

Afora certo positivismo candente dessa visão, sua perigosa propensão a biologizar fatores que são da ordem da cultura ou de uma alternância entre ambas, e, nesse caso, penso aqui, mais uma vez, nos corpos-linguagem de Klossowski, ela traz em si uma reserva poética inusitada, de margens abertas a muitas discussões. Por exemplo: em biologia chama-se tropismo a capacidade dos vegetais, principalmente as trepadeiras, de orientar seu crescimento conforme as condições de luz e umidade mais ou menos favoráveis, de decifrar mensagens contidas no meio, ao qual sua constituição material se encontra conectada, articulada osmoticamente, ou seja, não se diferencia o que lhe é próprio e o que lhe é derivado, o que lhe é essencial e acidental. Esse processo ativa conhecimentos ou potencialidades que já se encontram virtualmente na tessitura de suas fibras. Em outras palavras, podemos dizer que o vegetal e seu meio, com tudo aquilo que ele comporta, constroem um território (um platô) onde sujeito e objeto se interseccionam compondo um único corpo. Ora, se retomarmos a idéia anterior do homem como constituinte e constituído pelos signos, não em oposição, mas em complementaridade à noção individual da racionalidade cartesiana, e a defrontarmos com o tropismo, veremos que a diferença é quantitativa, não qualitativa. Que a diferença fundamental entre o homem e as demais formas de vida deriva dele poder organizar informações com maior complexidade e possuir linguagem articulada, não de uma entidade abstrata interativa, um deus ex machina racional agindo sobre a realidade, distanciado e onipotente. É um problema lógico, de superfície e grau, não ontológico, de essência e profundidade. Aliás, um papel importante desempenhado pela física de partículas elementares tem sido justamente o de demarcar de novo as fronteiras, às vezes chegando até a eliminá-las, entre organismos complexos e simples, ou seja, entre humanos e animais, e entre estes e a matéria inorgânica.

Pois bem: será justamente em Proust que Deleuze verá um decodificador de signos em enunciados de significação e lhe reivindicará, além do título de artista maior que já lhe é amplamente reconhecido, também o de filósofo prenunciador de um novo paradigma para a ratio ocidental. Em um dos capítulos do livro a ele dedicado, Deleuze se vale da estranha e, ao mesmo tempo, bela metáfora da aranha presa à própria teia, onde não se pode apartar uma da outra. Compara Proust a uma aranha imersa numa rede de significações, agente e paciente, agenciador e agenciado, criador e criatura de uma mitologia pessoal posta em prática. Aqui Proust, Marcel e a construção em espiral do itinerário da busca pelo tempo perdido formam um objeto único e íntimo. Proust e sua obra compõem um território. O leitor de sua obra compõe outro em contigüidade, interação e contaminação com o agente e o ato primeiros. Os afetos mobilizados na obra de Proust, ao escoarem sempre para a região amorfa e indeterminada das sensações, são sempre dirigidos pela música interior do narrador e por seus movimentos volitivos, e assim acabam por se identificar aos próprios movimentos impessoais dos seres vivos, à própria palpitação orgânica do mundo. Em Proust os signos não estão a serviço da definição dos afetos nem da demarcação da realidade, mas sim empenhados em sua mais absoluta, completa e afirmativa dissolução. É esse movimento que faz dele um dos autores que melhor definiram esse lado não humano do homem, que o liga aos animais e às mais insuspeitas formas vegetativas. Movimento este que lhe é alheio justamente por brotar de suas camadas inconscientes mais profundas, aquilo que toda razão e todo conceito procuram desprezar como sendo uma margem sobressalente do espírito e, portanto, indigna da atenção da verdade vigilante.

Por maiores que sejam as diferenças entre as obras desses autores, em certo sentido até mesmo antitéticas, unidos pela intempestividade do pensamento de Deleuze é impossível não ver no torvelinho de suas realizações o componente temporal decisivo para a configuração de seus universos mentais. Seja ele plasmado pela subjetividade infinita de um narrador que realiza o sonho máximo da escritura e de um autor que submete sadicamente o leitor ao ritmo de leitura que ele mesmo dita e fornece, seja no tempo redescoberto, amparado no esteio mítico coletivo da humanidade, que esfacela o indivíduo, arroja-o no devir histórico que lhe transcende e, por isso mesmo, lhe é fundador e originário. A literatura, individualizada parcialmente nos nomes desses autores, compõe com o pensamento de Deleuze um território ilimitado. Habitá-lo é extravasar a escrita e transbordar o grafismo para recuperar a vida em seu esteio mais viscoso e indeterminado, mas, por isso mesmo, fonte maior de toda afirmação, alegria, potência, força. Conglomerados de paixões felizes, nesse agenciamento coletivo todos se constroem mutuamente e suas singularidades são sempre provisórias. E nelas e com elas, também todos nós nos transformamos dentro dessa semiose aberta ad infinitum, no fluxo desse rio de signos, cuja misteriosa água só se decifra pelos decalques da diferença. Aqui não há como olhar de fora, pois não há fora. Somos a Terra, seu pulso e sua transpiração. Tudo o que nela brota retorna a nós, porque nós mesmos retornamos a ela, nascedouro e fim. Refaz-se a aliança de nossa origem animal, e a seiva deles volta a correr em nossas veias, para a nossa própria salvação. Aqui não é mais possível pensar sobre o mundo, racionalizar, refletir. Mas apenas pensar a partir dele, com ele — criar.

 

 

 

julho, 2006
 
 
 
 
Rodrigo Petronio é escritor. Autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este último publicado em Portugal. Lançou, em 2005, o livro de poemas Pedra de Luz, pela editora A Girafa, finalista do Prêmio Jabuti 2006.
 
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