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Trajectos do imaginário do espaço em "A Criança em Ruínas", de José Luís Peixoto

 

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1. Numa entrevista concedida, em Dezembro de 2004, a João Morales, o escritor José Luís Peixoto afirmava:

 

"Em certa medida, parece-me que a escrita, ao nomear, é também uma forma de iluminar ou de obscurecer. Quando se escreve, é absolutamente necessário que se faça uma gestão daquilo que se mostra, da forma como se mostra, do ponto de onde se mostra, bem como daquilo que se oculta e que influencia também tudo o que está em causa. Esse é também o papel da luz. Acredito que essa é uma das razões pelas quais a luz e a sombra surgem naturalmente nos meus textos. A luz é um elemento vital e, por isso, interessa-me grandemente".1

 

Estas palavras prosseguem com a consideração, enquanto exemplo deste processo, de uma das suas obras mais conhecidas, o romance "Uma Casa na Escuridão" (publicado em 2002), mas poderão ser igualmente aplicadas com pertinência aos restantes títulos publicados, se considerarmos como um dos traços definidores da sua poética a importância assumida pelo contraste dialéctico entre zonas de obscuridade e de luminosidade, cuja origem é atribuída ao acto criativo, representado pelo próprio acto de nomear intrínseco à escrita. A luz, neste contexto, parece adequar-se a um dos tópicos de reflexão privilegiados das poéticas da modernidade, a questão da representação e do real; cabe ao poeta a gestão "daquilo que mostra, da forma como mostra, do ponto de onde se mostra", ainda que não perdendo de vista o necessário distanciamento que, por outro lado, pugna em relação a uma referencialidade total cuja impossibilidade é evidente. Desde Rimbaud e Mallarmé que a modernidade elegeu a linguagem enquanto espaço privilegiado de reflexão e de revolução, conforme salientaram vários estudiosos, do quais destacaremos António Ramos Rosa; na sua perspectiva de poesia em liberdade, o trabalho privilegiado do poeta "realiza-o ele pela linguagem e na linguagem que é a um tempo destruição e reconstrução da linguagem, uma revolução permanente"2. A linguagem adquire, neste sentido, uma importância transcendental, não apenas enquanto veículo de expressão mas na medida em que será através dela que o ser se assume na sua plenitude, formulação que se aproxima do conhecido enunciado heideggeriano — "a linguagem é a casa do Ser na qual o homem habita"3. Para Heidegger, o Ser é revelado mediante a linguagem e é a poesia o seu modo de expressão privilegiado, simultaneamente o surto "iluminante e ocultador do próprio ser". Valorizando esta linha de pensamento num estudo intitulado " 'Dizer o Ser' e Poesia", Fernando Guimarães encara, por outro lado, que o pensador alemão, ao repudiar a linguagem constituída enquanto estrutura, repudia igualmente uma outra estrutura, a qual "corresponderia à organização de múltiplos saberes, conhecimentos e experiências onde, se considerarmos um caso limite, acabaria por se incluir a própria comunicação possibilitada por essa linguagem"4 ou seja, um envolvimento cultural que atribui à linguagem da poesia um sentido especial. Na conclusão deste estudo, o ensaísta retoma a imagem heideggeriana da casa do poema para referi-la enquanto metáfora do universo dispersivo da poesia, cuja reencontrada unidade é possibilitada pela leitura do poema (a operação com vista à sua actualização perante o mundo), encontrando para o autor um papel essencial, dado que é este o primeiro a lê-lo.

        

Neste sentido, partilhando uma linha de pensamento de base fenomenológica, Ramos Rosa defende que se a poesia moderna é, na verdade, uma experiência da palavra, logo também é uma experiência da realidade, pelo que "a génese da palavra poética é o encontro do corpo e da palavra, das pulsões e das imagens, da materialidade e do espírito"5. A valorização desta noção de encontro com o real surge na perspectiva de um aprofundamento ontológico, a partir do qual, como referiu em "Poesia Liberdade Livre", "o conteúdo surge da totalidade das formas que o poeta vai descobrindo na sua tentativa de estabelecer correlações cada vez mais complexas e unas com vista à realidade original com que entrou em contacto"6, experiência que, por sua vez, é traduzida através da linguagem do poema. Assim o parece entender José Luís Peixoto na "Arte poética" com que inicia "A Criança em Ruínas", ao admitir que "o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, / poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva / fresca e os teus lábios"7. Os sentidos, na poética de José Luís Peixoto, derivam por caminhos e espaços que se confundem com a própria memória, numa persistência que não poderemos deixar de assinalar e que definiremos como um dos tópicos privilegiados nesta obra; na sua perspectiva, a poesia acompanha a memória, num regime persistente de invocação da temporalidade que percorre dialecticamente o passado e o presente, assumida numa dimensão de espacialidade que, simultaneamente, a acompanha e que uma presença deítica assinalável vai denunciando:

 

"o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias

do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu

fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não

conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a

letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do

quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel

e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas

e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças

e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo." (pgs.7-8)

 

 

O imaginário do poeta decorre, assim, dessa persistência que Silvina Rodrigues Lopes sintetizou na expressão do "drama da memória", "a qual é ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade: participação do passado pela relação com ele, e por conseguinte pela «imposição» de um desvio, pela ruptura."8 Não se trata, por outro lado, de uma interpretação psicologista do imaginário enquanto "depósito de vivências concretas", pois a memória é caracterizada pela sua capacidade interpretativa, conforme também entende a autora de "A Legitimação em Literatura": "O facto de as imagens nascerem da memória não significa que a memória seja equivalente a um depósito, um arquivo ("o imaginário"). Pelo contrário, nascem porque a memória é a possibilidade de passar do indecifrável à significação infinita, de transportar as afecções para o mundo das interpretações"9.

        

Memória e interpretação concorrem, deste modo, para a formulação da estrutura do imaginário poético de José Luís Peixoto onde, como veremos, se complementam as dimensões da temporalidade e da espacialidade; na sequência dos estudos de Antonio García Berrio, assumiremos a poeticidade dos seus textos como decorrente de uma estrutura imaginária que assenta sobretudo no desenho da espacialidade, cuja importância este estudioso assinala, na medida em que "Los diseños de espacialización imaginaria que sugiere la peculiar canalización de las pulsiones subconscientes en los textos artísticos, constituyen ante todo formas de orientación antropológica de la imaginación en el seno de su propria explicación del universo como alteridad"10. A procura de estruturas imaginárias prototípicas acentua, na sua perspectiva, a vertente processual comunicativa da própria obra, reconhecendo-lhe um valor que ultrapassa as inconsequentes reflexões baseadas numa hermenêutica psicologista que visa sobretudo o autor em detrimento do leitor, ao contrário das primeiras, que, como defende, implicam tanto o emissor activo como o público receptor, os seus destinatários, cumprindo deste modo a dimensão comunicacional do texto. A imagem poética, neste conjunto, ultrapassa o nível da simples vivência, do "impulso", para, de acordo com a definição de Gaston Bachelard, ser encarada como "um produto directo da imaginação", "um acontecimento do logos", pois "tudo o que é especificamente humano no homem é logos."11. Ao falar de uma fenomenologia da imaginação, Bachelard define-a como "um estudo do fenômeno da imagem poética quando a imagem emerge na consciência como um produto directo do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade"12, revalorizando a ideia de "fabricação", "produto" que emerge numa consciência individual. Assim, para Bachelard, conforme resumiu Jean Burgos, a palavra não é um signo convencional mas uma matéria que se pretende habitar ("la maison du mot"), num movimento de valorização do logos que procurámos evidenciar nos parágrafos anteriores.

        

Para além dos estudos da poética dos símbolos de Bachelard, García Berrio adopta criticamente os tópicos mais relevantes de outros estudiosos do imaginário, nomeadamente Gilbert Durand e Jean Burgos. No primeiro caso, o trajecto antropológico que estabeleceu relativamente ao imaginário simbólico, escolhido pela "incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjectivas e assimiladoras e as intimações objectivas que emanam do meio cósmico e social"13, levou-o a conceber um estudo sobre os arquétipos fundamentais da imaginação humana, entendendo arquétipo como uma "substantificação dos esquemas", os quais, por sua vez, são vistos enquanto "generalização dinâmica e afectiva da imagem"14. Este estudo impôs-se como uma sistematização importante e precisa sobre os mitos e os símbolos, com o agrupamento em categorias ou regimes da imagem, destacando-se o diúrno ou postural (o regime da antítese, caracterizado pela inquietude humana face ao dado que se tem por objectivo) e o nocturno ou digestivo, por oposição o da antífrase, da intimidade e do eufemismo. Jean Burgos, por seu lado, não se desviando dos contributos de Durand no domínio da antropologia do imaginário, procurou desenvolver uma sintaxe imaginária do texto literário a partir do estudo da constituição de redes de associação interselectiva das imagens no texto, centrada no conceito que desenvolveu acerca do dinamismo da imagem poética, na medida em que "elle est considérée dans son rôle vivant qui la situe au commencement et la porte au-delá de ce qu´elle énonce"15 e, por outro lado, devido à sua função essencialmente simbólica, pela sua integração no mundo onde ela surge, no qual obedece às leis próprias no interior de uma determinada linguagem. Concedendo uma importância fundamental aos estudos de Durand, Jean Burgos admite três tipos de organização do imaginário: a escrita da revolta (regime antitético), caracterizada "a la fois manifestation d’une tendance organique profonde refusante toute finitude et réponse apportée a l’ angoisse liée à cette finitude"16, a escrita da recusa (regime eufemístico), na qual se sublinha a elisão de toda a imagem cronológica através de esquemas de fuga, interiorização e encerramento, entre outros17, e, por fim, a escrita do progresso (regime dialéctico), não uma síntese das anteriores, baseadas na angústia cronológica, mas a sua aceitação com vista à sua transcendência, facto que se aproxima, como defende, aos esquemas, entre outros, de retorno, processo, relação, germinação defendidos por Gilbert Durand. Neste regime, como afirma, a escrita "va donc se révéler comme une écriture qui n’a pas besoin d’occuper, ou de délimiter, ou d’aménager un espace privilégié. Son espace est l’ éspace profane dont elle donne un double qui va être progressivement valorisé, et sacralisé, par la valorisation même du temps qui l’oriente et le plénifie ; espace en mouvement où se multiplient les bornes et les repères, constamment balisé par un passé et un futur qui prennent les mesures: lieux où l’on évalue toute distance parcourue.18

        

Diante desta última afirmação de Jean Burgos, seria tentador admitir, desde logo, o predomínio deste regime dialéctico na constituição do imaginário poético de José Luís Peixoto em "A Criança em Ruínas", assumindo a progressão com vista ao apaziguamento que se verifica ao longo desta obra através da sucessão de espaços, orientada gradativamente num sentido ascendente, como teremos a oportunidade de demonstrar; no entanto, e como o autor de "Pour une Poétique de L’Imaginaire" reconhece, "ces modes de relation à aucun moment ne seront envisagés comme premiers ni envisagés pour eux-mêmes, en dehors des matériaux em présence; et moins encore seront-ils donnés comme les éléments ultimes de l’analyse à partir desquels se dégagerait le sens"19. A complexidade da obra poética não admite a univocidade plena, facto que, no entanto, não impede igualmente o predomínio de um determinado regime do imaginário, dados os variados isomorfismos que a mesma permite desvelar; as metáforas espaciais, por outro lado, impõem pela sua variedade ao leitor um itinerário plurissignificativo, que procuraremos relacionar com a estruturação tripartida deste livro, através do reconhecimento de grandes núcleos temáticos — o espaço da memória, o espaço do corpo e as tensões entre eros e tanatos, percorridos por uma variedade de domínios que constituem, na sua totalidade, a sintaxe imaginária de "A Criança em Ruínas". A delimitação destes núcleos temáticos não se assume, no entanto, como totalizante no seu âmbito restrito, dada a recorrência com que certas imagens interpelam a obra, trancendendo o âmbito de cada núcleo e possibilitando deste modo a leitura de um texto na sua globalidade, de modo a que o sentido do sujeito, como afirma, "esteja em todos os lugares / onde"20 ele mesmo é. Como relembrou Gérard Genette, "tout notre langage est tissé d’espace" e a literatura e o pensamento na actualidade "ne se dit plus qu’en termes de distance, d’horizon, d’univers, de paysage, de lieu, de site, de chemins et de demeure: figures naïves, mais caractéristiques, figures par excellence, où le language s’espace afin que l’espace, en lui, devenu langage, se parle et s’écrive"21.

 

 

2. a) Espaço - memória

 

Em "A Poética do Espaço", Gaston Bachelard declara que as verdadeiras imagens são gravuras, inscritas na memória através da imaginação. Conforme refere, "Elas aprofundam lembranças vividas, deslocam-nas para que se tornem lembranças da imaginação"22. Estas palavras surgem a propósito da imagem da cabana do eremita, representação do que entende por "solidão centralizada", tópico que poderíamos inscrever numa das dimensões do imaginário da casa em José Luís Peixoto, um dos arquétipos centrais da sua poética. A sua produtividade, na verdade, ultrapassa o âmbito de "A Criança em Ruínas", inscrevendo-se em muitos momentos na memória intertextual de "Morreste-me", a sua obra de estreia, publicada em 2000. O primeiro poema do grupo inicial de textos apresenta-nos um espaço de intimidade doméstica, paradoxalmente dominado pelo vazio da solidão e simultaneamente preenchido pela memória, numa tensão mantida entre a aproximação proposta pelo sema da habitualidade (a hora de pôr a mesa) e a separação evidenciada pela repetição paradigmática dos lexemas e por um forte apelo à delimitação sintáctica, imposta pelo uso sistemático da pontuação que, pela sua reiteratividade, condicionam espacialmente o próprio verso, conduzindo-o a uma contenção que, assinalavelmente, também decorre da repetição dos marcadores cronológicos:

 

"Na hora de pôr a mesa, éramos cinco:

o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs

e eu. Depois, a minha irmã mais velha

casou-se . depois, a minha irmã mais nova

casou-se. depois, o meu pai morreu, hoje,

na hora de pôr a mesa, somos cinco,

menos a minha irmã mais velha que está

na casa dela, menos a minha irmã mais

nova que está na casa dela, menos o meu

pai, menos a minha mãe viúva. cada um

deles é um lugar vazio nesta mesa onde

como sozinho. mas irão estar sempre aqui.

na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.

enquanto um de nós estiver vivo, seremos

sempre cinco." (p.13)

 

Em "Morreste-me", esta associação doméstica fora já posta em evidência de forma a sublimar a recordação do pai morto e da família reconstituída em torno da mesa:

 

"Entrei em casa. Apenas a lareira fria, as janelas fechadas a moldarem sombras finas no escuro. (...) E vi-te pensei-te lembrei-te, à mesa, sentado no teu lugar. Ainda sentado no teu lugar, e eu, a minha mãe, a minha irmã, sentados também, a rodearmos-te. Iguais ao que nós éramos. Ali estávamos há muito tempo, esquecidos abandonados desde um dia em que o passar das coisas parou na nossa felicidade simples singela. Como uma alegria, como se tivéssemos jantado ou esperássemos jantar ou o melhor banquete, estávamos. Felizes."23

 

Como refere Bachelard, "a casa natal é a casa habitada", "a seus abrigos de solidão associam-se o quarto, a sala onde reinaram os seres dominantes"24. Tomada metonimicamente, percebemos que a mesa poderá ser encarada como o seu eixo cósmico, centro de um espaço íntimo de religação com o passado; com pertinência, poderíamos associá-la à "lâmpada nocturna" descrita por Bachelard, também ela o centro do microcosmos que constitui o imaginário do poeta25. Importa destacar a interioridade, perscrutada na reiteração do arquétipo da casa através da miniaturização dos objectos, indispensável para a sua topoanálise por confirmarem a adesão plena da imaginação ao espaço da memória:

 

"a fruteira sobre a mesa da cozinha é sangue no poema.(...)

(...). respondo tantas coisas aos

talheres guardados na gaveta. (...)" (p.30)

 

"estou na casa onde as memórias se sentam nas cadeiras

para jantar em pratos invisíveis. Aquele quadro é bonito.

aquela jarra foi comprada na feira de outubro, aquele

livro tem palavras que não significam nada.

 

existe uma fruteira na mesa onde a mãe serve todos os dias

o meu destino, existe um corredor a lembrar todos os dias

a solidão povoada. (...)

existe uma mesa, uma lareira apagada, as mãos, uma sepultura

sozinha no cemitério, os olhos, os ossos, a minha pele e as horas

escritas no futuro impossível" (pgs. 31-32)

 

A presença de certos objectos povoa a solidão do poeta, destacando-se os signos por excelência que constituem os modelos da intimidade, como é o caso da gaveta que, de acordo com a topoanálise de Bachelard, tal como os armários e as suas prateleiras, "são objectos mistos, objectos-sujeitos. Têm, como nós, por nós e para nós, uma intimidade"26. A solidão, por outro lado, é reforçado pela imagem da lareira apagada, uma versão negativa do focum familiar que, segundo a reflexão Junguiana, pode ser associado ao arquétipo do pai.27 No excerto transcrito de "Morreste-me", o primeiro contacto com a casa, após a morte do pai, é com a "lareira fria", dominante sensorial que, na análise antropológica proposta por Gilbert Durand, corresponde às estruturas antifrásticas ou místicas do regime nocturno, decorrentes do processo de eufemização, que, contrariamente ao regime diúrno da imagem, caracterizados pelo regime da antítese e a sua dominante heróica e afirmativa, procura "captar as forças vitais do devir, em exorcizar os ídolos mortíferos de Cronos"28, através de uma relação com o tempo baseada na ambivalência da pulsão erótica e do destino mortal. Neste regime, a eufemização da morte é conseguida por uma ambivalência constante dos valores simbólicos, em que a libido, a componente essencial dos dois regimes, no seu "sentido de desejar em geral", sofre "todas as consequências do seu desejo"29. Assim, o desejo da eternidade, segundo Durand, estaria relacionado com o regime diúrno na agressividade da luta contra tanatos, enquanto o regime nocturno valorizaria essencialmente a regressão e a transfiguração da libido num símbolo materno (com as estruturas sintéticas ou dramáticas), ou, por outro lado, com uma ocupação do tempo que visa, paradoxalmente, a sua fuga (estruturas místicas ou antifrásticas). Encontramos em García Berrio uma síntese adequada dos pressupostos atrás enunciados sobre este regime, sobretudo na especial relação que estabelece com a concepção do tempo, ao referir que "el universo nocturno representa la dominante digestiva. (...) Análoga a la vivencia de la propia intimidad digestiva, como caos inabarcable por la experiencia postural, es la representación imaginaria de la noche absoluta como tiniebla espacial excluida a la medida de la luz".30

        

À luz de Durand e desta atitude de eufemização de tanatos, não será abusivo afirmar que, em "A Criança em Ruínas", este processo de fuga, próprio do imaginário nocturno, corresponde a uma progressiva substituição do arquétipo masculino (neste caso, das estruturas esquizomorfas) pelo feminino; esta transferência, no entanto, em nada pretende anular a referencialidade ao pai, não estivéssemos no âmbito do regime antifrástico, em que esta figura "constitui uma verdadeira conversão que transfigura o sentido e a vocação das coisas e dos seres conservando embora o inelutável destino das coisas e dos seres"31. Neste processo de conversão, a presença materna parece corresponder, sobretudo, à presença da casa, no isomorfismo da intimidade repousante32 e no espaço por excelência da memória, na qual a mãe é instada a participar. O excerto do poema que se segue parece confirmar esta possibilidade:

 

"(...)

recordas mãe o riso aberto

das crianças na paz do nosso quintal?,

a luz filtrada pelos pessegueiros

e a luz maior e muito mais limpa do olhar,

recordas mãe a segurança

calada dos nossos abraços distantes ?,

as minhas irmãs meninas, o

meu pai, o teu rosto pequeno, menina,

recordas mãe os domingos

com gasosa e uma galinha depenada?

a tua cadela sem raça a guardar-nos

e a dormir quieta aos nossos pés,

recordas mãe como morreu

como acabaram os domingos e as manhãs

para nunca mais ser domingo

ou manhã no silêncio do nosso quintal?" (p. 17)

 

O apelo maternal é combinado com imagens clássicas de fertilidade, associadas numa estrutura que combina imagens diversificadas de fragmentação que mais não fazem do que confirmar essa multiplicidade:

 

" (...) mãe,

vida multiplicada, como se o teu corpo se rasgasse e a carne

fosse a terra e as palavras, e os ossos fossem os ramos das

laranjeiras e as palavras." (p. 31)

        

Um outro espaço de intimidade importante no imaginário de José Luís Peixoto é o quintal, várias vezes assimilado a um microcosmos que prolonga a interioridade da casa. Opondo-se ao campo e à imensidão da paisagem aberta, o quintal é um espaço delimitado e interior, caracterizado pela sua domesticidade, tal como o jardim. Em "Morreste-me", o regresso inicial a casa inicia-se pela porta do quintal, espaço por excelência associado à memória paterna:

 

"A porta do quintal parada à minha frente, fechada, desafiante. Dizia nunca esquecerei, e esta tarde lembrei-me (...) A ferrugem, as dobradiças soltaram um grito como um suspiro ou um estertor. O alumínio rente ao mármore arrastou, varreu uma figura certa e branca no cobertor grosso de folhas de pessegueiro. Abandonado sobre o tamanho grande de um inverno, o quintal de quando eu era pequeno, o quintal que construíste, pai." ("Morreste-me", pág. 9)

 

Este espaço é delimitado por um muro, a interpor-se entre a paisagem exterior e o microcosmos da casa, conforme mais adiante é referido, num excerto do texto em que a memória do pai surge no dinamismo próprio do regime diurno:

 

"Começa o dia a nascer nas coisas e as coisas a nascerem um pouco também. Abro as janelas. Sobre a terra, rasante, avança o luminoso, como uma praga que se estende e galopa, que avança como uma onda que não volta atrás. Aos poucos, começam gestos a surgir dos ramos suspensos das árvores. Atrás do muro caiado de branco do nosso quintal, levantam-se as oliveiras na lonjura. Começam os pardais no céu. É luz o tempo, pai. E chegas no sol, expulsas a noite, trazes a manhã, como quando era sábado e me ias chamar e, no caminho da horta, acordava aos poucos". ("Morreste-me", pág. 28)

 

A figura paterna, neste excerto, aproxima-se do herói solar ascendente descrito por Durand, a " hipóstase por excelência das potências uranianas"33, mitificada através da aparência do sol invictus, antítese vencedora da noite. Os símbolos ascencionais do passado repartem-se também pelas aves e pelas árvores, elementos por excelência associados à verticalidade. Por outro lado, a cal branca do muro reforça a contenção da memória, associando-se ao imaginário nocturno e à progressiva eufemização da morte. Em "A Criança em Ruínas", a imagem das mulheres a caiarem as paredes sintetiza esta relação, permitindo-nos alcançar um novo arquétipo, o do corpo, que, em seguida, procuraremos desenvolver.

 

 

b) Espaço – corpo

 

Em "Arte poética", repetidamente citada nas páginas anteriores, o poema é metaliguisticamente definido como "carne salgada por dentro",detentor não de estrofes ou versos mas de corpo e sangue, concebendo a linguagem na perspectiva de um espaço-corpo onde escreve o seu sentido, acentuando-lhe deste modo uma dimensão comunicacional importante. José Gil, ao reportar-se ao modo como as sociedades primitivas e os seus xamanes pretendiam estabelecer a comunicação com a natureza, refere neste processo a importância do corpo, "mas o corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos"34, num sentido antropológico baseado nas práticas sociais e no papel dominante da memória. Num outro passo de "Metamorfoses do Corpo", esta afirmação civilizacional aparece na sequência de uma valorização do corpo como "transdutor de signos", dada a sua função fundamentalmente significante, cuja valorização semiológica resultou no estudo atrás indicado.

        

Numa outra perspectiva, igualmente útil na relação que se procurará manter com o imaginário do corpo em "A Criança em Ruínas", encontramos as reflexões no âmbito da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty, sobretudo na relação comunicacional do corpo enquanto correlativo do mundo. Segundo Isabel Carmelo Renaud, ao considerar o corpo o lado individual do homem, Merleau-Ponty distingue-lhe uma especial importância na perspectiva do corpo-sujeito, que determina a sua abertura ao mundo, opondo-lhe a noção de corpo-objecto, no qual ele mesmo é a estrutura original e sujeito à análise fisiológica; enquanto corpo-sujeito, a percepção surge da sua projecção no mundo e da sua apropriação, pelo que o seu projecto assenta em "un jeu relationnel entre le corps et le monde et, vice-versa, un jeu qui rend possible l’apparition du monde objectif et intersubjectif ainsi que le passage du corps objectif au corps vécu"35. Nesta relação de experiência do mundo, na qual "toutes les significations renvoient et où elles s’articulent comme lieu de compréhension et de rencontre, de comunication et d’éxpression"36, o sujeito determina, assim, um estilo próprio no sentido de o habitar.

        

Em "A Criança em Ruínas", o imaginário do corpo confronta-se, em parte , com a experiência dolorosa do mundo, nascida do vazio imposto pela ausência e por um progressivo confronto com a solidão ontológica. Simbolicamente, a imagem da parede é associada livremente ao sujeito; no ponto anterior deste estudo, sublinhámos a presença das paredes caiadas de branco e a sua relação com o regime antifrástico, pelo que apontaremos no dramatismo presente nesta associação o caminho certo da fragmentação:

 

"entre as palavras da minha voz, as minhas palavras, renasce um silêncio

rasgado da morte. cresce um vazio no que em mim é vazio. sou a erosão

de mim próprio. minto-me. nego cada brisa das minhas mãos, que não

são minhas, das minhas lágrimas, que não são minhas, das minhas palavras.

eu não sou eu. eu sou uma parede a morrer. eu sou a árvore a morrer.

eu sou um céu morto. venceu-me um inverno e lutei ao seu lado para me

destruir. nunca fui criança. nunca encontrei ingenuidade ou arrependimento.

hoje, cadáver insepulto, despeço-me sem mágoa do que não fui. sou a erosão

de mim próprio e isso basta-me. sou o holocausto dentro de mim." (p. 48)

 

Apesar de poder ser encarado como um arquétipo ascensional, a parede parece confundir-se no excerto anterior com a imagem da árvore, segundo Gilbert Durand assimilada aos arquétipos e símbolos messiânicos, essencialmente dramáticos no seu confronto com o tempo; na sua perspectiva, estes poderão figurar entre o que define como "mitos sintéticos", "que tentam reconciliar a antinomia que o tempo implica: o terror diante do tempo que foge, a angústia diante da ausência e a esperança na realização do tempo, a confiança numa vitória sobre o tempo"37. Sendo o regime nocturno por excelência antifrástico, a perpetuação de esquemas deste tipo decorrem da necessidade de eufemização do tempo através do enfraquecimento de uma representação possibilitada pela nomeação do seu contrário. O reconhecimento dramático do "céu morto" ou da "árvore a morrer", tal como a parede, parecem denunciar essa crescente dramatização, no entanto antinomicamente contrariada pelo retorno cíclico aos mesmos arquétipos simbólicos dominados pela certeza do tempo e da morte; a incessante reflexão sobre o tempo, a partir do corpo e da sua visão fragmentada implicam, em grande medida, uma parte importante nesse processo de "domesticação do devir" pela obsessão decorrente do seu confronto38:

 

"Olho as minhas mãos, nas minhas mãos tudo passa.

duas planícies desertas. ruínas. O que ficou para trás.

uma menina que caminhou sozinha nas minhas mãos e

que perdeu a sombra, um inverno distante que esqueceu

a solidão entre os meus dedos. nas minhas mãos tudo passa

e tudo morre. nas minhas mãos tudo sufoca até ser nada.

jardins que as minhas mãos arrasam. mundos inteiros que

as minhas mãos devastam. nas minhas mãos tudo passa.

as minhas mãos são uma noite insípida e vazia. são uma

noite cheia de gente como cadáveres ou fantasmas.

as minhas mãos foram mesa e não eram mesa. foram cama

e não eram cama. nas minhas mãos tudo passa. (...)" (p.38)

 

Numa aproximação ao modelo proposto por Jean Burgos, o poema anterior poderia reconhecer-se no regime dialéctico pela aceitação, ocupando as mãos o que define como um dos espaços "où l’on avalue toute distance parcourue. Aussi est-ce là l’écriture de qui a tout son temps, de qui prend tout son temps, et sait regarder loin"39 Ao nível morfossintáctico, a repetição permite a insistência processual, ao mesmo tempo que as oposições entre passado e presente e entre pronomes indefinidos (tudo, nada) aumentam essa tensão dialéctica, numa escrita que "spécule sur les oppositions pour mieux les surmonter et par là se révèle a la fois moniste et dualiste (...)"40. Por outro lado, esta atitude vai-se estendendo à amplidão da paisagem, passando do registo íntimo perscrutado no ponto anterior deste trabalho para uma dimensão espacial cada vez mais abrangente, com uma crescente preferência, em outros poemas, pela permanência de espaços amplos e horizontais, como a planície, sem lhes retirar, ao mesmo tempo, a componente dramática referida anteriormente:

 

"a morte é esta caneta que não é os meus dedos.

Lâmina, de encontro às paredes, a explodir.

Um homem

Invisível numa seara.

Explodiram corpos de pássaros em pleno voo,

As palavras calaram-se dentro dos gritos,

E também isso é a morte." (p. 26)

 

"caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem

a terra estende-se infinita nos teus passos

ao passares o horizonte serás o último

e partindo de mim avanças" (p. 21)

 

Gaston Bachelard refere-se à experiência da imensidão como valor íntimo primordial, sendo que "quando vive realmente a palavra imenso, o sonhador se vê libertado de suas preocupações, de seus pensamentos, libertado de seus sonhos. Já não está enclausurado em seu peso. Já não é prisioneiro de seu próprio ser".41 Esta pretensa liberdade, no entanto, é dominada, no primeiro excerto anteriormente transcrito, pelo sentido de tanatos, em grande medida demonstrado pela imagem da explosão dos corpos dos pássaros, símbolos ascensionais do eros sublimado. Em outros versos de José Luís Peixoto, encontramos a recorrência desta relação:

 

"procurámos tudo o que não quis. esperámos.

entre as manhãs que sofremos, entre a chuva, o frio, as árvores, os pássaros.

éramos a terra triste, éramos uma aragem.

não sabíamos que uma lágrima, não sabíamos que a imensidão

da morte é maior que uma esperança pequena." (p. 25)

 

A "terra triste" associa-se ao corpo mortal, o lado visível do corpo do sujeito. De acordo com Patrice Thompson, "Chemin et contrepoint, mouvement et fixité, réduction et totalisation, géométrie et perception, vertige et extase, le paysage réunit les limites symboliques où notre corps (se) voyant le monde prend conscience de la dificulté de son être-là. Nous sentons que les limites où il se joue sont la forme invisible de sa jouissance, comme l’éspace d’une danse figurée, dans la mesure où il peut se la représenter. Le paysage n’est pas un état d’âme, mais un état de corps, dont les états d’âme se seraient qu’une approximation verbale"42. A este « estado de corpo » corresponde a representação do sujeito, assimilada recorrentemente à terra, um símbolo isomórfico da passividade oposta aos símbolos esquizomorfos do regime diurno do imaginário43 O imaginário do corpo surge no decurso de uma progressiva identificação com o húmus, recuperando nesta identificação os arquétipos associados ao sujeito que referimos anteriormente, conforme podemos observar no poema que se segue:

 

"espelho, és a terra onde as raízes rebentam de mistérios.

repetes as perguntas que te faço, porquê?, repetes

os olhares sem fim das coisas paradas. repetes o meu olhar.

espelho, és a parede e a pele cansada, és um silêncio a morrer a noite,

és o que ninguém quer, a verdade mais triste e cansada por dentro.

repetes as perguntas que te faço, porquê?, repetes

a desgraça, a miséria e o desespero.

espelho, quis conhecer-te e perdi-me de ti." (p. 39)

 

A presença do espelho sugere, conforme é amplamente reconhecido, a presença do duplo. Nos versos transcritos, repete o corpo do sujeito, contemplado enquanto "parede" e "pele cansada", mas inicialmente voltado para a imagem telúrica. Sobre a raiz, Gaston Bachelard, em "A Terra e os Devaneios do Repouso", refere que "os valores dramáticos da raiz se condensam nesta única contradição: a raiz é o morto vivo. Essa vida subterrânea é sentida intimamente. A alma sonhante sabe que essa vida é um longo sono, uma morte enlanguescida, lenta"44. Nesta contradição dramática, a raiz e a terra tornam-se símbolos da intimidade, tomadas em oposição à imensidão da paisagem natural valorizada em poemas anteriores. Em comum verifica-se a mesma concepção dramática do tempo devorador e o domínio de tanatos, por vezes na disforia de certas imagens que encontram na recorrência (processo de eufemização) a sua sublimação:

 

"eu de propósito, eles sem querer, morreremos

talvez sem notarmos que morremos muitas vezes

e que levamos camadas de luto sobrepostas na pele."(p. 44)

 

A morte entranha-se no corpo do sujeito, de tal modo que, como o poema, é "carne salgada por dentro"; a eufemização nasce, em síntese, no imaginário do corpo, do confronto com esquemas antifrásticos em que as oposições e as repetições obsessivas, como foi referido, apenas reforçam a necessidade de neutralizar os desígnios de Cronos:

 

"não te direi sou nada, não te direi nunca serei nada,

não te direi não posso querer ser nada, as minhas mãos

tornar-se-ão dois silêncios cinzentos a minguar dentro

das paredes de fumo e matar-me a matar-me a matar-me,

duas mãos assassinas a apertar-me o pescoço,

a rasgar-me e a expor-me finalmente a esta luz.

É primavera é primavera e eu quero por força morrer.

não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada.

Fumo, e a minha dor é ser tarde demais para desistir vencendo,

A minha dor é saber o que inventei de hoje no começo

Das manhãs de sábado, nos primeiros dias da primavera

De ser eu o mundo e o sol ser eu a sonhar este dia.

A minha dor é esta primavera que nasce e me mostra

Que o inverno se instalou definitivamente dentro de mim." (p. 46)

 

A dor, que é encarada como um estado permanente, nascida paradoxalmente do confronto com a realidade do tempo, concorre com o silêncio, abrangendo uma tradição literária que encontra as suas raízes na sigé grega, o "silêncio dos deuses". João Barrento entende que "o Eu capaz de dor, que aceita esse silêncio de Deus e o desafia, num tempo que tende a excluir a dor e o luto, é um Sujeito desamparado, despido, mas empenhado numa busca (do elementar e de si) que o pode levar, percorrendo todo o passado humano esse reservatório de dor que a nossa época sem memória quer ignorar , ao encontro dessa dor original, que é a parte perdida de si próprio."45, admitindo a perspectiva de uma busca da dor no espaço da memória do sujeito interior desamparado, como vimos no ponto anterior.

 

Sobre o corpo e o imaginário, ainda no domínio eufemístico e nesta demanda no interior da recordação, não poderemos deixar de sublinhar em "A Criança em Ruínas" o confronto entre as potências de eros e tanatos e o modo como concorrem para a afirmação do regime nocturno que, em última análise, procuraremos evidenciar como dominante numa leitura do imaginário desta obra.

 

 

c) Eros e tanatos e o caminho da ruína interior

 

A terceira parte de "A Criança em Ruínas" é desde, o primeiro poema, orientada no sentido de destacar e prosseguir as tensões próprias do confronto entre as forças eróticas e a presença da morte, a partir do momento em que, na repetição combinatória de definições de amor, nos confrontamos com o tópico da coita amorosa: "(...) o amor é sermos fracos. O amor é ter medo e querer morrer" (pág. 57). O que parece ser uma imagem colhida no reservatório mítico da literatura universal é oposta à complexidade surgida pela permanência de dois regimes simultâneos, que irão oscilar ao longo dos restantes poemas no confronto do espaço significativo e, sobretudo, do tempo próprio e descontínuo. A variedade de imagens de aparente felicidade decorre da gestão de signos, num primeiro instante assimiladas à contemplação do rosto:

 

"não posso encontrar mais

que as nossas vozes

entrançadas onde não

posso encontrar mais

que o nosso tempo (...)

que o teu rosto

que o teu rosto que

a brisa breve e definitiva

do teu rosto na espiral

constante de te amar e

te sofrer noites insones (...)

teu sorriso discreto o

círculo do teu olhar e

em duelo comigo próprio

não posso encontrar mais (...)" (p.59)

        

Novamente, a apresentação de um tópico literário (o duelo entre amador e coisa amada) associado ao rosto, símbolo ascensional; num outro poema, este trajecto ascendente é admitido pela inclusão de outras imagens —  as escadas, o elevador —  relacionadas com um topos concreto —   "a torre eiffel" —, que, segundo Durand, pode ser assimilado a uma imagem da verticalidade própria do regime diurno do imaginário46:

 

" subimos a torre eiffel

 

devagar no elevador

suave no toque lento

da tua voz suave

devagar nas escadas

calmas no eco lento

dos teus dedos calmos

subimos a torre eiffel

 

subimo-nos e encontramo-nos

na certeza

 

paris espraia-se no mundo

todo vive cresce estende-se

na superfície toda do mundo

que vive e corre nas ruas

nas estradas debaixo de

nós dentro das nossas veias

no nosso coração a bombear

luz e paris na noite

tão distante (...)" (p. 62)

 

Esta atitude de distensão associada à erotização crescente do espaço, tomando a torre como símbolo fálico pela sua verticalidade desafiante, encontra no corpo feminino a imagem seminal da "pele terra", ao revisitar o arquétipo da "pele cansada" do ciclo de poemas anterior para a transmutar, agora na perspectiva do objecto, num símbolo da feminilidade sexualizada:

 

"dá-me alguma da tua pele terra

tu não me pedes nada e

me apareces de noite vestida de

nudez pele terra e me abres caminhos

para que e conheça (...)" (p. 61)

 

A sublimação erótica, no entanto, corresponderá a um momento de recuperação da dimensão pretérita, no subtil caminho do anúncio das ingerências de tanatos na tessitura dramática dos poemas seguintes:

 

" ela é a que chegou santificada a caminhar imaterial acima

através por sobre mim dentro de mim dentro do meu coração,

o ritmo sereno do teu rosto calmo aqui no meu peito,

no meu coração e ela ela é toda esta história cantada

por pássaros a voar nos teus cabelos e ele repetido por mim

é a terra do meu peito, o peito cheio de terra,

se esta é a história de dois que mergulharam mortos na vida,

que a beberam num copo de vidro, és tu que o sonhas

e lhe dás o céu que ele respira e sou eu num sonho

que recebo e respiro o céu que ela me dá" (p. 72)

 

A presença de imagens ascensionais, como o pássaro e o céu, conjuga-se com a erotização do corpo (os cabelos, o peito cheio de terra) e com a acumulação deíctica, impondo ao discurso uma luminosidade pouco habitual no conjunto de poemas desta obra e intensificada por algumas imagens, como a chegada da amada, remetem para o texto bíblico ("ela é a que chegou santificada a caminhar imaterial") e para o encontro dos amantes no Éden. Esta estratégia, inversamente, parece favorecer a presença de tanatos, com a imagem clássica do "inferno dos amantes" de que a releitura do mito de Inês de Castro é um dos exemplos mais significativos:

 

"era sangue nas mãos deles do teu

ventre inês as árvores agitaram-se

mais outras mais unas com o teu

sentido também a noite germinal

de ventos e o teu ventre vento

fecundo inês no silêncio do nosso

filho no seu olhar de águas correntes

limpas mondego sob a tua pele

era sangue no punhal que te abriu

para te matar para tirar de ti o

filho nosso mais nosso era sangue

o nosso filho a sair de ti a tua

força a rebentar nos infernos nas

brisas entre o verde das plantas

a fazer crescer gritos gritos

a fazer crescer gritos nas vozes (...)" (p. 66)

 

O sentido patético vai-se adensando ainda no âmbito da erotização de recorte dionisíaco, com as imagens fálicas (o punhal) contrapostas à feminização indiciada na presença das águas correntes, arquétipo simultaneamente vital e maternal. Ao sentido ascensional de excertos anteriores opõe-se agora, progressivamente, a convocação da descida infernal, com imagens como a do ventre sexual que, de acordo com Durand, é considerado significativo na definição do imaginário nocturno. O engolimento é reiterado no poema que se sucede, num ambiente posterior ao pathos possibilitado pela paragem do tempo:

 

"(...)

hoje não sofro e posso dizer-te

sobre os campos sobre a terra seca

que engoliu toda a chuva dos dias que passaram

a terra suspensa debaixo

dos pés e digo paz digo eu que fecho

o amor simples da tua beleza grandiosa

digo paz e o céu sopra o voo planado

de muitos pássaros pequenos e simples

que nunca poderão entender a serenidade

grandiosa do céu adormeceu o nosso filho

em ti e tu e ele são o que respiro neste dia

sem vento para mim não quero mais que

este instante parado" (p. 68)

 

O passado, no entanto, domina a percepção do tempo do sujeito; no processo de afastamento subsequente é significativa a referência à "terra seca" como isomorfa da amada e do amor, arquétipo engolidor da memória. Anuncia-se a constatação crua da perda com o progressivo engolimento do objecto através da separação; como afirma, "todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só / os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte" (pág. 75). À criança saída da sublimação de eros corresponde agora "esse filho / só de sangue que te escorre pelas pernas e morre / sou eu, o meu sangue e a minha memória" (pág. 76), essa "criança em ruínas" que é o próprio sujeito. Os poemas finais apresentam-nos, significativamente, essa dilacerante certeza da impossibilidade do reencontro, escurecendo qualquer traço de esperança no futuro:

 

"vamos separar-nos. Nada mais me trará

os teus olhos ou os teus dedos ou tantas coisas

que eram palavras. Nada, nunca mais, manhã após

manhã, te mostrará o meu rosto a acordar. Nem as

estrelas, nem a cama antes de adormecer. Nada.

vamos separar-nos, e nada nunca mais nos poderá

unir, nem mesmo o tempo, nem mesmo a morte".(p. 84)

 

 

3. Nos momentos finais deste estudo, recuperamos os versos da "Arte poética" para relembrarmos a importância de que a palavra poema se reveste enquanto recipiente da memória do visível e do invisível, sendo graças à sua presença que o sujeito procede à definição das linhas de força do seu imaginário poético e do espaço que pretende transfigurar. Como afirmou Maurice Blanchot, "ce traduteur essentiel, c’est le poète, et cet espace, c’est l’espace du poème, là où il n’y a plus rien de présent, où, au sein de l’absence, tout parle, tout rentre dans l’entente spirituelle, ouverte et non ps immobile, mais centre de l’éternel mouvement"47. Neste contexto, não deixaremos de filiar a poesia de José Luís Peixoto em muitos dos registos próprios da poesia portuguesa mais recente que, não ocultando a experiência das gerações anteriores, encontraram o seu caminho na pluralidade temática, âmbito em que se destacam, de acordo com Rosa Maria Martelo, "a memória pessoal e literária, a valorização da experiência subjectiva, a exploração do fragmento narrativo subitamente revelador, a contraposição do poder da linguagem a uma experiência existencial ou ontológica de perda, de desencontro e de ruína"48, temáticas que, de certa forma, são afloradas em "A Criança em Ruínas" e que encontram uma coerente progressão nas obras posteriores; afinal, como nos refere em "A Casa, a Escuridão", "os versos são os degraus da escada que o príncipe / desce devagar. o seu pé direito está sobre esta palavra"49.

 

 

 

 

Bibliografia

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

 

Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1999. Presentemente, é mestrando em Criações Literárias Contemporâneas, na Universidade de Évora, na área de especialização de Teoria da Criação Literária. Tem centrado os seus estudos no âmbito da Literatura Portuguesa, sobretudo na poesia contemporânea. Desde a sua constituição (Junho de 2001) é membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra de Daniel Faria, responsáveis pelo estudo e divulgação da obra deste poeta. Tem alguns artigos e ensaios publicados em revistas e em suporte on line. Algumas publicações: Para una Teoría de la Literatura Hispanoamericana, de Roberto Fernández Retamar, in "Humanística e Teologia", Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto), ano 18 - Janeiro/Abril de 1997, pág. 200; Na Fábrica do Mito Algumas notas sobre a estoria de D. Afonso I, in Revista da Faculdade de Letras, "Línguas e Literaturas", Porto, XVI, 1999, pp. 231-245; Como se Acordasse a Mão que Semeia Das Obras Poéticas de Daniel Faria, in Apeadeiro revista de atitudes literária, dir. de Valter Hugo Mãe e de Jorge Reis-Sá, nºs 4/5, Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2004.

 

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