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Os recentes acontecimentos turbulentos, envolvendo bolsas de valores em boa parte do mundo, além

de induzirem a necessárias reflexões, remetem-nos a ninguém menos que Machado de Assis e seu olhar

oblíquo e crítico sobre o mundo das finanças durante um período crucial da história brasileira.

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Inovador na ficção, como contista e romancista — está na história da literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem por ele executada no final da década de 1870, que abalou e mudou os rumos da narrativa literária — cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário, Machado de Assis tratou da especulação financeira e das 'bolhas' de expansão monetária como nenhum outro em sua época. Muitos de seus escritos no período 1892-96, publicados na Gazeta de Notícias [um dos principais jornais da capital nessa ocasião, ao lado do Jornal do Commercio, O Paiz, Jornal do Brasil, Diário de Notícias, A Cidade do Rio, Rio-News], cujo fundador e  proprietário, Ferreira de Araújo, era amigo pessoal de Machado, mostram como o notável escritor, cronista, autor e criador debruçou-se com seu olhar acurado, lúcido, crítico, irônico, satírico — por vezes claro, nítido e direto, por vezes obliquo, dissimulado, sutil — sobre as mazelas provocadas e advindas dos tempos novos da República de uma ciranda financeira e sua plêiade de emissões, crédito luxuriante, jogatina, falências em cadeia. Não sem antes ter passado pelo crivo machadiano, sempre aguçado e satírico, quebras de bancos — a "quebra do Souto", alusão à falência da Casa (bancária) A. J. A. Souto e Cia., em 1864 (o fechamento inesperado, em 10 de setembro, da casa bancária gerou pânico em toda a cidade do Rio de Janeiro) — uma  'convulsão' da bolsa de valores em 1876 (a Lei 6.132, de 04 março de 1876, reformava a dinâmica de funcionamento dos pregões), a crise financeira inerente à guerra do Paraguai (1865-70), os problemas da conjuntura econômica envolvendo companhias, bancos e entidades nos anos finais do Império. Tudo registrado, comentado e por vezes acidamente criticado pela visão aguçada de Machado.

Convém notar que a crônica machadiana, desde sempre — apesar de suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística (muito próxima da oralidade), ironia satírica e sarcasmo — foi, ao longo do tempo, em maior ou menor grau, de um lado influenciada e de outro refletora do fluxo da história brasileira do século XIX. Destacada a presença marcante também nas crônicas, como ocorre em sua obra ficcional, dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato  e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em especial a "arte das transições" — levada a extremos ao unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado surpreendente, cujo trajeto Machado 'ameniza' para o leitor, primeiro desviando-o do tema principal, depois, retornando e reintegrando-o, numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobrí-la e fazê-la emergir: utiliza à exaustão a 'estratégia da negação/(que é uma) afirmação', as armadilhas estéticas típicas da ficção machadiana executadas também na crônica: quando diz que "política não é o assunto da crônica", pode-se ter certeza que efetivamente o é, e ao sentenciar que "não sei finanças" (que se tornou mais comum, em suas crônicas a partir de 1893, do que a repetida expressão de antes "não entendo de política"), vale observar o quanto  comenta os fatos da área financeira, e o quanto os valoriza, a ponto de repetir "finanças e semana são a mesma coisa".

Justamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado de Assis recebeu, indevidamente, a pecha de "despolitizado", "alienado". Ledo e puro engano. Foi ele um crítico contundente da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu sobre  política e, para surpresa de alguns, sobre economia em crônicas e artigos, em contos e romances e até na poesia. Assim como para os assuntos da política, Machado não era um "alienado" na visão e discernimento para as coisas da economia. Aqueles que a ele dedicaram, ou dedicam, o atributo de "alheio às questões de seu tempo" (inclusive, e principalmente — alegam seus detratores — à escravidão) é recomendável, para não passarem esses críticos eles sim por alienados, conhecer as instigantes crônicas machadianas inerentes a essas duas searas, escritas durante mais de quatro décadas em diversas publicações.

Machado de Assis tinha opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República, repudiava Floriano Peixoto (quem, apoiado em golpe de Estado em 1891, governava com poderes autoritários, levando o País à ditadura, à censura e à guerra civil) — e é possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentenciou que se pode vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado: tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos, utilizando uma série de elementos políticos — escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura, aparelho policial, autocracia absolutista, totalitarismo, etc. — na elaboração, em sua escritura literária, de uma  crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, a qual, no campo dos estudos literários, não foi adequadamente percebida pelos especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de  outros aspectos, uma das grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro, fio condutor e leitmotiv de sua produção não-ficcional, centrava-se  na questão da identidade nacional — preocupação expressa claramente nos  ensaios "O passado, o presente e o futuro da literatura" (ainda em 1858), "Instinto de  nacionalidade" (de 1873) e "Nova geração" (1879) e na essência de seus artigos e crônicas. Mas os textos tratando de política e economia são justamente aqueles que registram opiniões nunca expressadas por ele com tanta clareza e coerência.

Machado criou crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e disfarces, desde 1858, em O Paraíba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864),  para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: "Comentários da Semana"; 1864-67: "Ao Acaso"), O Futuro (1862-63), A Semana Ilustrada (1865-75: "Crônicas do Dr. Semana", "Correio da Semana", "Novidades da Semana", "Pontos e Vírgulas", "Badaladas"), Ilustração Brasileira (1876-78: "Histórias de 15 dias", "Histórias de 30 dias"), O Cruzeiro (1878: "Notas Semanais"), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: "Balas de Estalo", "Gazeta de Holanda" [conjunto de 48 crônicas publicadas de 1º de novembro de 1886 a 24 de fevereiro de 1888, em versos, os "versiprosa", expressão que Machado criou muitos anos antes de Drummond, numa manifestação de prodigiosa inventiva temática, estrutural e formal, comentários dos fatos da semana, focalizados por um viés exclusivamente satírico, cômico, sarcástico], "Bons Dias!"  e "A Semana") e  para a Imprensa Acadêmica (1888) — com uma produção de mais de 600 artigos. A par da quantidade, a explícita e intrínseca qualidade textual fizeram da crônica machadiana um referencial para os praticantes do gênero nos anos finais do século XIX e início do século XX — e que somente encontraria um diferencial em Lima Barreto, na década de 1910, criador este de uma novíssima linguagem na não-ficção e na ficção, numa crucial e histórica inflexão a moldar a própria linguagem literária  brasileira por todo o século XX até os dias de hoje.

Machado fez da crônica mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero — haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum, janeiro 1893: "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura. E exatamente como se deu na esfera ficcional, sob um processo evolutivo, passando da volubilidade e digressibilidade  das primeiras ("Histórias de 15 dias" e "Notas Semanais") para a maior 'consistência' e contundência de "Bons Dias!" e "A Semana", tendo "Balas de Estalo" como elemento de transição e "A+ B" e "Gazeta de Holanda" como elementos de 'distração'. Nesse particular, é possível a construção de uma equação especulativa/interpretativa sobre a correspondência do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra — em especial, o momento da inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos de Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima 'reformulação' de enfoque, forma e estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional — transpondo o romantismo dos primeiros três romances (Ressureição, A mão e a luva, Helena) e a 'ideologia' presente nos contos iniciais (abrigados nas coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador  da inovação/'revolução' sintetizada no 'shandiano' Memórias póstumas de Brás Cubas) para um aprofundamento e sedimentação do realismo [Machado, aliás, foi o único dos grandes autores a atravessar, em vida e em obra, o romantismo e o realismo literários brasileiros], mas 'subvertendo' e renovando esse realismo (em Papéis avulsos, consolidado em Quincas Borba, em Dom Casmurro, depois em Esaú e Jacó e no definitivo Memorial de Aires). Esse  processo de reformulação, dizíamos, deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a mesma 'latitude' literária, na mesma época, também na  produção das crônicas publicadas na imprensa.

Machado, como ninguém, anteviu que a própria evolução da sociedade nacional e o processo transformador que o País atravessava — sintonizado com o mundo industrializado, capitalista e socialmente 'darwinista' — impunham mudanças, de toda ordem, também em sua criação literária: daí, a significativa 'guinada', para ao mesmo tempo expor e contrapor, adotar e minar, revelar as contradições. Esta é a razão primordial da inflexão machadiana que tanto estimula e insufla a historiografia e o pensamento crítico literários — a par da equivocada interpretação de uma "crise dos 40 anos" e, sobretudo, a par de considerações de outra ordem como, p. ex., a de que Machado teria uma primeira fase de 'ascensão social e profissional', quando incorporou em sua literatura os valores do dominado, identificando-se com as pessoas (personagens) comuns, os empregados,  agregados,  humildes, os populares, substituída essa fase pela "consolidação social, profissional e artística", de identificação com o dominador, por meio de personagens, ambiências e situações da classe social ascendente.

Mister enfatizar que as drásticas mudanças temática, estilística e de linguagem, realizadas por Machado no final da década de 1870/início da década de 1880 — concretizando o grande salto literário de sua obra e criando uma linguagem ficcional e não-ficcional diferenciada, mescla do humor e da seriedade, da galhofa e da crítica social e política, do riso e do tédio — teve como  instrumento e ferramental a forma shandiana e o shandismo [cf. Wbster's International Dictionary, "shandean", "aquele que tem o espírito de Tristan Shandy"; "shandysm", "a filosofia de Tristan Shandy" — em referência à obra A vida e as opiniões de Tristam Shandy, um cavalheiro, de Laurence Sterne], para se utilizar da expressão magistralmente criada por Sergio Paulo Rouanet, inerente tanto ao romance e a contos, como a crônicas. A expressão, hoje comum e consensual no meio da machadologia (e da machadofilia), define uma forma literária, que vindo de Sterne, de Xavier de Maistre, Almeida Garret e Denis Diderot, adquire em Machado sua substância mais consistente, simbiótica e conclusiva, inclusive, dando a essa forma literária seus contornos e conteúdo definitivos. À forma shandiana estão associadas — não de modo genérico e onipresente, porquanto válido em algumas obras e autores, em outros não — a sátira menipéia e a tradição luciânica, originadas  de uma tradição grega, dos diálogos socráticos, que mesclam temas especificamente filosóficos com assuntos de retórica e dialética, eivados de hilaridade, comicidade e ironia: na duplicidade sério-cômico, abriga o popular, o erudito, o burlesco, tornando-se p. ex. um dos elementos basilares da carnavalização conceituada por Mikhail Bakhtin. Na obra machadiana a partir da década de 1880 denota-se a presença marcante de manifestações da sátira menipéia, como a paródia, o subterfúgio, a profanação, o disfarce e, em especial, a 'desconstrução' de formas literárias.

Ao olhar machadiano nada escapou dos fatos e assuntos políticos, econômicos e financeiros de seu tempo — uma época sob todos os aspectos de grande ebulição, tumultuada e marcante para a história brasileira, a partir da Abolição, seguida pelo advento da República e as novas formas e manifestações de um capitalismo emergente. O complexo cenário de reformas, transições e transformações foi  registrado, comentado e dissecado por ele notoriamente nas séries "Bons Dias!" e "A Semana", mas também em "Notas Semanais", "Histórias de 15 dias", "Balas de Estalo" e "Gazeta de Holanda", todas para a Gazeta de Notícias. As crônicas de Machado de Assis, mormente as das séries "Bons Dias!" e "A Semana" — de peculiaridades que as distinguem das demais — possuem, em si, estrutura, forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político, econômico, social, cultural, urbano, sob os quais foram elaboradas: revelam cadeias de pensamento e reflexão (machadianos) em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos, ambiências e situações de romances e contos.

A economia, especificamente, foi objeto primordial nas crônicas da série "A Semana", um conjunto seqüencial escrito e publicado ininterruptamente de 1892 a 1900 na Gazeta de Notícias — embora, como reiteramos, já escrevesse sobre questões econômicas desde 1859, assim como no decorrer das décadas de 1860, 1870 e 1880. Foi crítico 'sofrido e perplexo' do Encilhamento — denominação dada à "bolha" especulativa na bolsa de valores do Rio de Janeiro, iniciada no final do Império, impulsionada com a reforma monetária feita por Ruy Barbosa, e geradora da grave crise econômico-financeira de 1891 — que o chocou profundamente, fazendo-o sentir-se desalentado, tedioso, desgostoso diante do vale-tudo do dinheiro pelo dinheiro, das fortunas feitas ou desfeitas da noite para o dia e da orgia financeira que se multiplicava a partir do que ele denominava "ano terrível (1890-91)".

Tanto foi seu desalento, que nesse biênio sua produção não-ficcional paralisou-se — na verdade, um interregno que vinha desde 1889, a primeira  das duas únicas interrupções  na produção contínua para a Gazeta de Notícias entre 1883 e 1900 — explicável, de um lado, pela elaboração, em fase final, do romance Quincas Borba, publicado em fascículos na revista A Estação, entre 1888 e 1890, e em livro, em 1891, obra à qual Machado dedicou muitos anos e muito esforço de criação e execução (é este seu romance de maior complexidade e textura tramática e dramatúrgica), sobrevindo mesmo um processo de crise criativa, em Machado, no decorrer de sua gestação — e, de outro lado, por  uma razão de ordem política aliada à natureza de Machado, extremamente cauteloso diante de um período conturbado, de alta tensão, com golpes e contragolpes de Estado (o "golpe da bolsa" de Deodoro da Fonseca, em 3 novembro 1891, e a substituição de Deodoro por Floriano Peixoto em 23 novembro desse ano), além de seu estado de completa desilusão com os rumos da República, e sua  profunda desolação com relação ao Encilhamento. A segunda interrupção deu-se entre 1897 e 1900, quando já se denotava no conjunto das crônicas machadianas certos sinais de esgotamento temático: afinal, havia um enredo, ou um leitmotiv, pautando esta série, qual seja o  Encilhamento e suas decorrências e efeitos, os quais ainda se manifestariam — nos fatos e nos comentários do cronista — até 1895; esse efeitos passados, ou cauterizados, a tensão machadiana, embora algo diluída, focou-se preponderantemente nas endêmicas manifestações de um cenário de corrupção, aos olhos e na pena de Machado, inerente ao próprio regime republicano e seus projetos 'modernizadores'. Aparece e exterioriza-se, enfaticamente, um tom amargo que afeta até mesmo a regularidade de publicação, ímpar em sua antecessora "Bons Dias!",  regularidade que começa  a falhar e cessa por completo ainda no ano de 1897, quando a última crônica é datada de  28 de fevereiro e só retomada nas duas únicas crônicas de 1900, a 4 e 11 de novembro: causas, motivos e explicações podem ser procurados, dificilmente encontrados de modo claro, embora, há de se observar e atentar, se mantivesse ele ativo na criação ficcional, haja vista ser esse o período de construção de nada menos que Dom Casmurro.

Na seara econômica, no entanto, Machado não ficou só no repúdio ao Encilhamento: destilou sua ácida ironia crítica ao câmbio, aos juros, à dívida pública, aos bancos, à política financeira, aos impostos, às subvenções do Estado, às crises de abastecimento. Como poucos literatos de seu tempo, via e antevia os primeiros passos do nascente capitalismo brasileiro, mediado pelo Estado, como propulsor não de um processo de desenvolvimento econômico, mas de endividamento generalizado.

As crônicas de Machado que tratam de finanças e economia formam um elenco bastante significativo de sua produção não-ficcional: são 79 textos, dos quais 1 em O Paraíba, 1859; 1 no Diário do Rio de Janeiro, 1861; 6 em Ilustração Brasileira, 1876, 1877; 2 em O Cruzeiro, 1878; 69 na Gazeta de Notícias, 1883, 1884, 1885,1886, 1888, 1889, 1892, 1893, 1894, 1895, 1896, 1897, 1900.

Veja-se p. ex. três dessas crônicas — com respectivos títulos e textos introdutórios do economista e ensaísta Gustavo Franco — entre si defasadas cronologicamente em três anos, mas escritas sob o mesmo clamor crítico-satírico do olhar machadiano, feito testemunho incomparável sobre a vida econômica e financeira brasileira nas últimas décadas do século XIX.

 

 

22. [este é o encilhamento...]

18 de dezembro de 1892, A Semana

 

 O termo "encilhamento" vem do momento em que os cavalos de corrida eram encilhados para o páreo, e quando, supostamente, entabulavam-se as combinações de resultado. Ficou célebre o romance "a clef" escrito pelo Visconde de Taunay em 1893, em folhetins e sob o pseudônimo de Heitor Malheiros, trazendo um vívido retrato da cena carioca durante os anos críticos da especulação1. Perto da superlativa descrição de Taunay, a apresentação do Encilhamento como um ajuntamento de pessoas em torno da bolsa do Rio parece mesmo distante e alienada; que não se perca de vista que Machado voltou a este tema muitas vezes, inclusive em seus romances. É firme o paralelo entre a descrição do Encilhamento em Esaú e Jacó, escrito em 1904, e o relato de Taunay, porém, no relato de Machado, não há "nenhum sentimento anti-republicano, pelo menos aparentemente", como observa Faoro (1976, p. 262). As nuances sobre o Encilhamento nas visões dos amigos Machado e Taunay já foram discutidas no prefácio. Esta crônica, tão alheia às jogadas financeiras, é uma indicação interessante do distanciamento do cronista desse assunto, coisa que não se vê em Taunay.

 

Ontem querendo ir pela Rua da Candelária, entre as da Alfândega e Sabão (velho estilo), não me foi possível passar, tal era a multidão de gente2. Cuidei que havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas não era. A massa de gente tomava a rua, de uma banda a outra, mas não se mexia; não tinha a ondulação natural dos cachações. Procissão não era; não havia tochas acessas nem sobrepelizes. Sujeito que mostrasse artes de macaco ou vendesse drogas, ao ar livre, com discursos, também não.

Estava neste ponto, quando vi subir a Rua da Alfândega um digno ancião, a quem expus as minhas dúvidas.

— Não é nada disso, respondeu-me cortesmente. Não há aqui procissão nem macaco. Briga, no sentido de murros trocados, também não há, — pelo menos, que me conste. Quanto à suposição de estar aí alguma pessoa apregoando medalhinhas e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor, esquina da do Carmo ou  da  Primeiro  de Março, menos ainda.

— Já sei, é uma seita religiosa que se reúne aqui para meditar sobre as vaidades do mundo, — um troço de budistas...

— Não, não.

— Adivinhei: é um meeting.

— Onde está o orador?

— Esperam o orador.

— Que orador? Que meeting? Ouça calado. O senhor parece ter o mau costume de vir apanhar as palavras dentro da boca dos outros. Sossegue e escute.

— Sou todo  ouvidos.

— Este é o célebre Encilhamento.

— Ah!

— Vê? Há mais tempo teria tido o gosto dessa admiração, se me ouvisse calado. Este é o encilhamento.

— Não sabia que era assim.

— Assim como?

— Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno fechado, particular ou público, não este pedaço de rua estreita e aborrecida. E olhe que nem há meio de passar; eu quis romper, pedi licença... Entretanto, creio que temos a liberdade de circulação.

— Não.

— Como não?

— Leia a Constituição, meu senhor, leia a Constituição. O art. 72 é o que compendia os direitos dos nacionais e estrangeiros; são trinta e um parágrafos: nenhum deles assegura o direito de circulação... O direito de reunião, porém, é positivo. Está no § 8º : "A todos é lícito reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia, senão para manter a ordem pública". Estes homens que aqui estão trazem armas?

— Não as vejo.

— Estão desarmados, não perturbam a ordem pública, exercem um direito, e, enquanto não infringirem as duas cláusulas constitucionais, só a violência os poderá tirar daqui. Houve já uma tentativa disso. Eu, se fosse comigo, recorria aos tribunais, onde há justiça. Se eles ma negassem, pedia o júri, onde ela é indefectível, como na velha Inglaterra. Note que a violência da polícia já deu algum lucro. Como as moléculas do encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de dispersados, a polícia, para impedir a recomposição fazia disparar de quando em quando duas praças de cavalaria. Mal sabiam elas que eram simples animais de corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegaria primeiro a certo ponto. — É da esquerda. — É a da direita. — Quinhentos mil-réis. — Aceito. — Pronto. — Chegou a da esquerda: dê cá o dinheiro.

— De maneira que a própria autoridade...

— Exatamente. Ah! meu caro, dinheiro é mais forte que amor. Veja o negócio do chocolate. Chocolate parece que não convida à falsificação: tem menos uso que o café. Pois o chocolate é hoje tão duvidoso como o café. Entretanto, ninguém dirá que os falsificadores sejam homens desonestos nem inimigos públicos. O que os leva a falsificar a bebida não é o ódio ao homem. Como odiar o homem, se no homem está o freguês? É o amor da pecúnia.

— Pecúnia? chocolate?

— Sim, senhor, um negócio que se descobriu há dias. O senhor, ao que parece, não sabe o que se passa em torno de nós. Aposto que não teve notícia da revolução de Niterói?3

— Tive.

— Eu tive mais que notícia, tive saudades. Quando me falaram em revolução de Niterói, lembrei-me dos tempos da minha mocidade, quando Niterói era Praia Grande. Não se faziam ali revoluções, faziam-se patuscadas. Ia-se de falua4, antes e ainda depois das primeiras barcas. Quem ligou nunca Niterói e S. Domingos a outra idéia que não fosse noite de luar, descantes5, moças vestidas de branco, versos, uma ou outra charada? Havia presidente, como há hoje; mas morava do lado de cá. Ia ali às onze horas, almoçado, assinava o expediente, ouvia uma dúzia de sujeitos cujos negócios eram todos a salvação pública, metia-se na barca, e vinha ao Teatro Lírico ouvir a Zecchinni6. Havia também uma assembléia legislativa; era uma espécie do antigo Colégio de Pedro II, onde os moços tiravam carta de bacharel político, e marchavam para S. Paulo, que era a assembléia geral. Tempos! tempos!

— Tudo muda, meu caro senhor. Niterói não podia ficar eternamente Praia Grande.

— De acordo; mas a lágrima é livre.

— É talvez a coisa mais livre deste mundo senão a única. Que é á liberdade pessoal? O senhor vinha andando, rua acima, encontra-me, faço-lhe uma pergunta, e aqui está preso há vinte minutos.

— Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilhões! São grilhões de ouro.

— Agradeço-lhe o favor. Nunca o favor é tão honroso e grande como quando sai da boca ungida pelo saber e pela experiência; porque a bondade e própria dos altos espíritos.

— Julga-me por si; é o modo certo de engrandecer os pequenos.

— O que engrandece os pequenos é o sentimento da modéstia, virtude extraordinária; o senhor a possui.

— Nunca me esquecerei deste feliz encontro.

— Na verdade, é bom que haja encilhamento; se o não houvesse, a rua era livre, como a lágrima, eu teria ido o meu caminho, e não receberia este favor do céu, de encontrar uma inteligência tão culta. Aqui está o meu cartão.

— Aqui está o meu. Sempre às suas ordens.

— Igualmente.

(À parte) Que homem distinto!

(À parte) Que estimável ancião!

 

 

29. [o primeiro mistério anda já tão safado... é o câmbio]

16 de dezembro de 1894, A Semana

 

Depois da crise cambial, ou da grande desvalorização, de 1891, o país viveu sob o regime de taxas de câmbio assumidamente flutuantes, experiência de modo algum intencional ou desejada. Antes pelo contrário, era o excepcional  tornado regra, mais uma vez, e desta vez no contexto de acentuada instabilidade política e econômica. As influências financeiras sobre o câmbio, a especulação a arbitragem, elementos familiares aos mercados financeiros modernos, aí se manifestavam em um esplendor, ou em uma magnitude, que não se havia testemunhado neste século. O funcionamento do mercado de câmbio, nessas condições, parecia introduzir mais um dos novos e grandiosos mistérios da modernidade republicana. O fato é que a moeda incorpora muita carga simbólica, é como a bandeira e o hino. Ainda não pertence a esta época a referência ao "mercado" e às interpretações que este produz do noticiário cotidiano, mas é o mesmo fenômeno hoje bem conhecido e, naquela ocasião, uma distorção cuja explicação tinha que ver como outra: a moeda fiduciária inconversível. A instabilidade do câmbio, aí uma ou duas oitavas acima do que se experimentou ao longo do Segundo Império, apenas acentuava sensação de desamparo própria das épocas de mudança, sempre sensível a influências espúrias, boatos, manipulações e teorias conspiratórias.

 

Um telegrama de S. Petersburgo anunciou anteontem que a bailarina Labushka cometeu suicídio. Não traz a causa; mas, dizendo que ela era amante do finado imperador, fica entendido que se matou de saudade.

Que eu não tenha, ó alma eslava, ó Cleópatra sem Egito, que eu não tenha a lira de Byron para cantar aqui na tua melancólica aventura! Possuías o amor de um potentado. O telegrama diz que era amante "declarada", isto é, aceita como as demais instituições do país. Sem protocolo, nem outras etiquetas, pela única lei de Eros, dançavas com ele a redowa7da mocidade. Naturalmente eras a professora, por isso que eras bailarina de ofício; ele, discípulo, timbrava em não perder o compasso, e a Santa Rússia, que dizem se imensa,  era para vós ambos infinita.

Um dia, a morte, que também gosta de dançar, pegou no teu imperador e transferiu-o a outra Rússia ainda mais infinita. A tristeza universal foi grande, porque era um homem bom e justo. Daqui mesmo, desta remota capital americana, vimos os grandiosos funerais e ouvimos as lamentações públicas. Não nos chegaram as tuas, porque há sempre um recanto surdo para as dores irregulares. Agora, porém, que tudo acabou, eis aí reboa o som de um tiro, que faltava para completar os funerais do autocrata. Rival da morte, quiseste ir dançar com ele a redowa da eternidade.

Há aqui um mistério. Não é vulgar em bailarinas essa fidelidade verdadeiramente eterna. Muitas vezes choram; estanques as lágrimas, recolhem as recordações do morto, outras tantas lágrimas cristalizadas em diamantes, contam os títulos de dívida pública, estão certos; as sedas são ainda novas, todos os tapetes vieram da Pérsia ou da Turquia. Se há um palacete, dado em dia de anos, as paredes, que viram o homem, passam a ver tão somente a sombra do homem, fixada nos ricos móveis do salão e do resto. Se não há palacete, há leiloeiros para vender a mobília. Como levá-la à velha hospedaria de outras terras, Belgrado ou Veneza, aonde a meia viúva se abriga para descansar do morto, e de onde sai, às vezes, pelo braço de um marido, barão autêntico e mais autêntico mendigo?8

Eis o que se dá no mundo da pirueta. O teu suicídio, porém, última homenagem, e (perdoem-me a exageração) a mais eloqüente das milhares que recebeu a memória do imperador, o teu suicídio é um mistério. Grande mistério, que só o mundo eslavo é capaz de dar. Foi telegrama o que li? Foi alguma página de Dostoievski? A conclusão última é que amavas. Sacrificaste uma aposentadoria grossa, a fama, a curiosidade pública, as memórias que podias escrever ou mandar escrever, e, antes delas, as entrevistas para os jornais, os interrogatórios que te fariam sobre os hábitos, e quantos copos de chá bebias diariamente, as cores mais do teu gosto, as roupas mais do teu uso, quem foram teus pais, se tiveste algum tio, se esse tio era alto, se era coronel, se era reformado, quando se reformou, quem foi o ministro que assinou a reforma, etc., um rosário de notícias interessantes para o público de ambos os mundos. Tudo  sacrificaste por um mistério.

Mistérios nunca nos aborrecem; a prova é que folgamos agora diante de dois mistérios enormes, dois verdadeiros abismos (insondáveis). Sempre gostamos do inextricável. Este país não detesta as questões simples, nem as soluções transparentes, mas não se pode dizer que as adore. A razão não está só na sedução própria do obscuro e do complexo, está ainda em que o obscuro e o complexo abrem a porta à controvérsia. Ora, a controvérsia, se não nasceu conosco, foi pelo fato inteiramente fortuito, de haver nascido antes; se se não tem apressado em vir a este mundo, era nossa irmã gêmea; se temos de a deixar neste mundo, é porque ainda cá ficarão homens. Mas vamos aos nossos dois mistérios.

 O primeiro deles anda já tão safado, que até me custa escrever o nome: é o câmbio. Está outra vez no "tapete da discussão". O segundo é recente, é novíssimo, começa a entrar no debate: é o bacilo vírgula. Os mistérios da religião não nos acendem uns contra os outros; para crer neles basta a fé, e a fé não discute. Os do encilhamento aturdiram por alguns dias ou semanas; mas desde que se descobriu que o dinheiro caía do céu, o mistério perdeu a razão de ser. Quem, naquele tempo, pôs uma cesta, uma gamela, uma barrica, uma vasilha qualquer, ao luar ou às estrelas, e achou-se de manhã com cinco, dez, vinte mim contos, entendeu logo que só por falsificação é que fazemos dinheiro cá embaixo. Outro puro e copioso é o que cai do eterno azul.

Eu, quando era pequenininho, achei ainda uma usança da noite de S. João. Era expor um copo cheio d'água ao sereno, e despejar dentro um ovo de galinha. De manhã ia-se ver a forma do ovo; se era navio, a pessoa tinha de embarcar; se era uma casa, viria a ser proprietária, etc. Consultei uma vez o bom do santo; vi, claramente visto, — vi um navio; tinha de embarcar. Ainda não embarquei, mas enquanto houver navios no mar, não perco a esperança. Por ocasião do encilhamento, a maior parte das pessoas, não podendo sacudir fora as crenças da meninice, não punham gamelas vazias ao sereno, mas um copo com água e ovo. De manhã, viam navios, e ainda agora não vêem outra coisa. Por que não puseram gamelas? Vivam as gamelas! Ou, se é lícito citar versos, digamos com o cantor dos Timbiras9: 

.................... Paz aos Gamelas!

Renome e glória...

 

 Há quem queira filiar o câmbio atual aos costumes do encilhamento. A pessoa que me disse isto, provavelmente soube explicar-se; eu é que não soube entendê-la. É uma complicação de dinheiro que se ganha ou se perde, sem saber como, anonimamente, com designação geral  de baixistas e altistas. Quem se lembra daqueles belos dias do encilhamento, sente que eles acabaram, como os belos dias de Aranjuez10. Onde está agora o delírio? Onde estão as imaginações? As estradas na lua, o anel de Saturno, a pele dos ursos polares,onde vão todos esses sonhos deslumbrantes, que nos fizeram viver, pois que a vida es sueño, segundo o poeta?11

Tais sonhos ainda são possíveis com o mistério do bacilo vírgula12. Toda esta semana andou agitado esse bicho da terra tão pequeno, para citar outro poeta13, o terceiro ou quarto que me vem ao bico da pena. Há dias assim; mas eu suponho que hoje esta afluência de lembranças poéticas é porque a poesia é também um mistério, e todos os mistérios são mais ou menos parentes uns dos outros. Suponho, não afirmo; depois do que tenho lido sobre o famoso bacilo, não afirmo nada; também não nego. Autoridades respeitáveis dizem que o bacilo mata, pelo modo asiático; outras também respeitáveis juram que o bacilo não mata.

Hippocrate dit oui, et Gallien dit not.14

 

 

30. [a sensibilidade nervosa do câmbio]

10 de fevereiro de 1895, A Semana

 

O boato, os bancos e a especulação ofereciam as explicações mais fáceis para movimentos que pareciam estranhos, mas  eram a nova realidade dos mercados financeiros. A moderna literatura acadêmica trata a influência de "notícias" sobre a determinação das taxas de câmbio de forma bem mais fria, concluindo, em geral, que as "notícias" podem aumentar a volatilidade, mas não a direção das coisas, que é dada por "fatores fundamentais", nada muito diferente do que dizia um especialista da época, J. P. Wileman (1896, p. 231) sobre a experiência brasileira. No terreno dos "fundamentos", deveras, o ano de 1895 começava com a percepção de que havia um "passivo a liquidar"15. Os excessos eram os do Encilhamento, isto é certo, mas também e principalmente, eram de dívidas, obrigações e garantias oferecidas pelo Estado em valor fartamente excedente à sua capacidade financeira, como era próprio de situações de precariedade política: o Império buscando sobreviver, a jovem República tentando se afirmar, as revoltas de Norte a Sul, e tudo isso sob uma conjuntura externa ingrata e no contexto de uma crise bancária latente. A lenta agonia do câmbio ao sabor das notícias e boatos perturba o cronista, como no capítulo anterior, talvez tanto quanto as "soluções" oferecidas para todos esses problemas. A encampação (ou estatização) das emissões dos bancos dependia dos rumos que se quisesse dar ao BRB, em sérias dificuldades, e fadado a arrastar com ele todo o sistema. O déficit público crescia, bem como a dívida pública; o custo das "garantias de juros em ouro", oferecidas a inúmeras ferrovias e outros empreendimentos, se tornava particularmente proibitivo em razão da desvalorização cambial. O re-escalonamento das obrigações do Estado, combinado com alguma solução para a questão bancária, parecia inevitável. Como alternativa, volta e meia emergiam idéias como a venda ou arrendamento de ativos do Estado, sendo a Estrada de Ferro Central do Brasil o que hoje chamaríamos, no contexto de programas de privatização, de "a jóia da coroa". Os Rothschilds foram muito insistentes, ao longo de muitas tratativas sobre o equacionamento das dívidas brasileiras, na necessidade ou conveniência de se arrendar a Central. Esta perspectiva, curiosamente, parecia sobressaltar mais o cronista que a possibilidade, já nítida, de alguma forma de moratória sobre as apólices da dívida pública16. Por hora, todavia, a hesitação dominava os artífices da política econômica, não havendo consenso sobre o que fazer; tampouco havia sucesso nas negociações com os bancos emissores, ou como possíveis arrendatários para a Central.

 

As pessoas foram crianças, não esqueceram decerto a velha questão que se lhes propunha, sobre qual nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha. Eu, cuja astúcia era então igual, pelo menos, à de Ulisses, achava uma solução ao problema, dizendo que quem primeiro nasceu foi o galo. Replicavam-me que não era isto, que a questão era outra, e repetiam os termos dela, muito explicados. Debalde citava  eu o caso de Adão, nascido antes de Eva e de Caim; fechavam a cara e tornavam ao ovo e à galinha.

Esta  semana lembrei-me do velho problema insolúvel. Com os olhos, — não nos camarotes da quarta ordem, ao fundo, e o pé na casinha do ponto, como o Rossi17, — mas pensativamente postos no chão, repeti o monólogo de Hamlet, perguntando a mim mesmo o que é que nasceu primeiro, se a baixa do câmbio, se o boato. Se ainda tivesse a antiga astúcia, diria que primeiro nasceram os bancos. Onde vai, porém, a minha astúcia? Perdi-a com a infância. A inocência em mim foi uma evolução, apareceu com a puberdade, cresceu com a juventude, vai subindo com estes anos maduros, a tal ponto que espero acabar com a alma virgem das crianças que mamam.

Não citei os bancos e continuei a recitar o monólogo. O enigma não queria sair do caminho. Quem nasceu primeiro? Não podia ser a baixa do câmbio. Esta semana, quando ele entrou a baixar, disseram-me que era por efeito de um boato sinistro; logo, quem primeiro nasceu foi o boato. Mas também me referiram que depois da baixa é que o boato nasceu; logo, a baixa é anterior. Os primeiros raciocinam alegando a sensibilidade nervosa do câmbio, que mal ouve alguma palavra menos segura, fica logo a tremer, enfraquecem-lhe as pernas, e ele cai. Ao contrário, redargúem os outros, é quando ele cai que o boato aparece, como se a queda fosse, mal comparando, a própria dor do parto. O diabo que os entenda, disse comigo; mas o problema continuava insolúvel, com os seus grandes olhos fulvos18 espetados em mim. Nisto ouço uma terceira opinião, aqui mesmo, na Gazeta, uma pessoa que não conheço, e que em artigo de quinta-feira opinou de modo parecido com a minha solução do galo. Quem primeiro nasceu foi o papel-moeda; esse peso morto é a causa da baixa, e uma vez que se elimine a causa, eliminando fica o efeito. O remédio é reduzir o papel-moeda, mandando vir ouro de fora, e, como não seja possível mandá-lo vir a título de empréstimo, "é chegada a oportunidade de vender a estrada de ferro Central do Brasil".

A queda que este final do período me fez dar, foi maior que a do câmbio; fiquei a 815/1619. Se o período concluísse pela venda das Pirâmides, da ponte de Londres ou da Transfiguração20, não me assombraria mais. Esperava câmbio, papel-moeda, ouro, depois mais ouro, mais papel-moeda e mais câmbio, mas estava tão pouco preparado para a Central do Brasil, que nem tinha arrumado as malas. Entretanto, o artigo não ficou aí; depois da venda da central, lembra o resgate da estrada de Santos a Jundiaí, em 189721, venda subseqüente, e mais ouro. Em seguida, começam os milhões de libras esterlinas e os milhares de contos de réis, crescendo e multiplicando-se, com tal fecundidade e cintilação, que me trouxeram à memória os grandes discursos de Thiers22, quando ele despejava na câmara dos deputados, do alto da tribuna, todos os milhões e bilhões do orçamento francês e da aritmética humana. O câmbio, pelo artigo, não tem outro remédio senão subir a 20 e a 24; não logo, logo, mas devagar, para o fim de não produzir crises. Acaba-se a baixa, e resolve-se o problema.

O conhecimento que tenho de que a economia política não é a particular, impede-me dizer que também eu recebo, não milhões, mas milhares de réis, e, se não há deselegância em comparar o braço humano ao trilho de uma estrada de ferro, e a cabeça a uma locomotiva, dão-me esse dinheiro pela minha Central; mas tão depressa me dão, como me levam tudo, visto que o homem não vive só da palavra de Deus, mas também de pão, e o pão está caro. A economia política, porém, é uma outra cousa; ouro entrado, ouro guardado. Por saber disto é que não me cito; além de quê, não é bonito que um autor se cite a si mesmo.

Há só uma sombra no quadro cintilante do câmbio alto pelo ouro entrado. É que o Congresso Nacional resolveu, por disposição de 1892, examinar um dia se há de ou não alienar as estradas federais, todas ou algumas, ou se as há de arrendar somente, ou continuar a trafegá-las; e, porque não se possa fazer isso sem estudo, ordenou primeiro um inquérito, que o governo está fazendo, segundo li nas folhas públicas, há algumas semanas. A disposição legal de que trato, arreda um pouco a data dos deslumbramentos cambiais, e pode ser até que quando a União tiver resolvido transferir ao particular alguma estrada, já o câmbio esteja tão alto, que mal se lhe possa chegar, trepado numa cadeira. Não digo trepado num banco, para não parecer que faço trocadilho, — cette fiente de l'esprit, qui vole23, — como se dizia em não sei que comédia do Alcazar24.

Aos demais, o Congresso não tinha em vista o câmbio, e menos ainda o desta semana. E, o câmbio, e menos ainda o desta semana. E, francamente, — sem tornar ao problema da anterioridade do câmbio ou do boato, — quem é que pode com o primeiro destes dois amigos? Contaram-me que na quinta-feira, tendo a alfândega suspendido o serviço e fechado as portas, em regozijo da solução das Missões25, lembrou-se um inventivo de dizer que a causa da suspensão e do fechamento era a revolução que ia sair à rua. O câmbio esfriou, como se estivesse na Noruega, e caiu.

E em que dia, Deus de paz e de conciliação! No próprio dia em que uma sentença final e sem apelação punha termo à nossa velha querela diplomática. Quando nos alegrávamos com a vitória, e repetíamos o nome do homem eminente, Rio Branco, a cuja sabedoria, capacidade e patriotismo confiáramos a nossa causa, é que o câmbio desmaia ao primeiro dito absurdo. Não, não creio na anedota; a prova é que a alfândega já reabriu as portas, e o câmbio continua baixo. Por S. Crispim e S. Crispiniano, metam-lhe uns tacões debaixo dos pés!26

 

 

 

Notas

 

 

 

setembro, 2007

 
 
 
 

Mauro Rosso. Pesquisador de literatura brasileira, ensaísta e escritor, autor de São Paulo 450 anos: a cidade literária. Prepara, com Gustavo Franco, a coletânea O olhar oblíquo do acionista (Rio Bravo, Editora Reler), abrigando as crônicas machadianas sobre finanças, e organiza coletânea de crônicas de Machado de Assis sobre política.