©grant faint
 
 
 
 
 
 
 
 

Era a Verdade esposa legítima do Entendimento, porém, a Mentira, sua grande êmula, resolveu desterrá-la de seu tálamo e derrubá-la de seu trono. Para isto, que embustes não tentou? Que trapaças não cometeu? Começou por desacreditá-la como grosseira, desalinhada, desabrida e néscia, e, ao contrário, por vender-se a si mesma como cortês, discreta, bizarra e aprazível; e, se bem que feia por natureza, procurou desmentir suas faltas com seus enfeites. Tomou por árbitro ao Gosto, com que, em pouco tempo, tanto fez, que tiranizou para si o rei das potências. Vendo-se a Verdade desprezada e ainda perseguida, buscou amparo na Agudeza; comunicou-lhe seus desgostos e consultou-a sobre seu remédio.

 

         '— Verdade amiga', disse a Agudeza, 'não há manjar mais desabrido, nestes tempos estragados, que um desengano a seco — mas, que digo, desabrido! — não há bocado mais amargo que uma verdade desnuda. A luz que fere diretamente, atormenta os olhos de uma águia e de um lince, quanto mais dos que fraquejam. Para isto, os sagazes médicos do ânimo inventaram a arte de dourar as verdades e açucarar os desenganos. Quero dizer (e observa-me bem esta lição, estima-me este conselho) que, política, produza-os: vista-os segundo o costume do próprio Engano, disfarce-os com os seus próprios adornos, que, com isso, eu lhe asseguro o remédio e ainda a vitória'.

        

Abriu os olhos a Verdade e começou desde então a andar com artifício; usa das invenções, introduz-se por rodeios, vence com estratagemas, pinta longe o que está muito perto, fala do presente no passado, propõe naquele sujeito o que quer condenar neste, aponta um para indicar outro, deslumbra as paixões, desmente os afetos e, por engenhoso circunlóquio, acaba sempre por chegar ao ponto que pretendia.

 

         Uma mesma verdade pode vestir-se de muitos modos; assim, por um gostoso apólogo, com o doce e fácil de sua ficção, a verdade persuade eficazmente.

 

 

***

 

 

O texto acima é uma tradução esforçada que fiz do original espanhol, tentando manter todas as metáforas gastronômicas utilizadas nele. Trata-se do "Discurso LV", um dos mais belos capítulos do livro que é, sem exagero, um dos pontos altos do estilo posteriormente (mal) chamado de "barroco conceptista" e, certamente, o ponto mais alto da teoria da analogia ou da metáfora "aguda", no século XVII. Seu título: Agudeza y Arte de Ingenio; seu autor: o jesuíta aragonês Baltasar Gracián. Nascido em Belmonte de Calatayud, em 1601, e morto em Terragona, em 1658, Gracián teve apenas breves passagens por Madrid, nas quais se tornou conhecido sobretudo como pregador. A rigor, pode-se dizer que escreveu toda a sua obra, decisiva para o siglo de oro espanhol, sem se distanciar muito de sua província natal, nas cercanias de Saragoça.

 

         Além da Agudeza y Arte de Ingenio, cuja primeira edição é de 1642, deve-se mencionar do autor, ao menos, dois outros textos fundamentais para a compreensão e a fruição prazerosa de sua obra e do período em questão. O primeiro deles é o milagrosamente bem divulgado "Oráculo manual y Arte de prudencia", de 1647, que chegou a ser traduzido para o alemão por Schopenhauer e que, no Brasil, teve várias traduções, três delas ainda em circulação. Uma delas, a da Ediouro, tem resoluções equivocadas e notas infames de um tal Morus, que, segundo entendi, é uma espécie de guru para executivos ou secretárias em busca de "qualidade total" ou de técnicas de "R.H.". Outra tradução é da Editora Best Seller e corre por aí com o título esdrúxulo de "A Arte da Sabedoria Mundana", talvez porque vertida não do espanhol, mas da tradução inglesa. Também não deixa de ser engraçado o anacronismo de traduzir o termo "manual", que tem o sentido de "algo que se carrega na mão", ou resumidamente, "de mão", por um muito atual "de bolso". Há ainda uma tradução da Editora Martins Fontes, que é a única adequada, cujo título, entretanto, foi encurtado para "A Arte da Prudência". O milagre da divulgação, já se vê, vai por conta da tentativa mais ou menos cômica de vendê-lo como literatura de "auto-ajuda".

 

O outro texto de Gracián, a citar-se obrigatoriamente é "El Criticón", que escreveu entre 1651 e 1657. Talvez pudesse ser traduzido simplesmente por "O Crítico", ou, mais analiticamente, por "O Cânone Crítico", pois o título remete, não ao sentido do termo do espanhol atual, que significa "implicante" ou "aquele que critica tudo", e que se fixou justamente em conseqüência do seu uso na obra de Gracián, mas sim, inicialmente, à idéia de "conjunto" ou "coleção de críticas", à imagem do sentido da terminação lexical presente, por exemplo, no "Satyricon", de Petrônio.

 

Não sei de nenhuma tradução do "Criticón" para o português, não sei se digo feliz ou infelizmente. Para quem quiser lê-lo em sua língua original, na qual os encantos da sua leitura, em princípio, devem ser maiores, há edições espanholas populares, a preços bem acessíveis, com notas muito elucidativas a respeito do texto; poderia citar, por exemplo, a da coleção "Clásicos Universales", do Editorial Planeta, de Barcelona. Quem estiver disposto a adquirir as melhores reuniões contemporâneas de seus escritos, deve procurar em bons sebos, reais ou virtuais, as "Obras Completas", da editora Aguilar, de Madrid, que se encontra há tempos fora de catálogo, ou então tentar adquirir a belíssima edição da Taurus, também de Madrid, lançada em 1983. Com Gracián, que não elide na própria escrita o que reza sua preceptiva, a Verdade nunca anda desacompanhada da Agudeza. O Ser não se diz sem elegância e formosura. Longe de desabrida, a Verdade descoberta por este jesuíta seiscentista é ato de inteligência que jamais se conhece sem susto e espanto. Suas razões ocultas são monstros de deleite intelectual e de intelecto deleitoso. Deus se elucida e converte pela metáfora que gera e excele. 

 

 

 

 

dezembro, 2005

 

 
 
 
 
Alcir Pécora. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do sermonário do Padre Vieira. É crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Editora Globo. Co-editor da Sibila — Revista de Poesia e Cultura.
 
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