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Qualquer discussão séria acerca da poesia contemporânea, deveria avançar sobre a questão do espaço de atuação que lhe é reservado. Se não há um espaço efetivo para o seu aparecer no mundo, ou para a manifestação da interlocução inteligente, é como tentar falar de algo que não existe. De certa forma, poder-se-ia dizer que a poesia contemporânea não existe porque, segundo alguns pensadores, o presente não existe. O presente precário se dissipa, se desmancha num piscar de olhos antes mesmo que qualquer um de nós termine de enunciar a palavra presente. O que nós temos de fato é o passado e a expectativa-imagem de um futuro provável.

Para a grande mídia e para a cultura entendida como manifestação do estado de alma da nação (epopéia da sensibilidade de um povo no anseio de um verismo regional/nacional), a poesia em geral e a contemporânea em particular, não constituem matéria de interesse.

No entanto, embora os espaços tradicionais (jornais, revistas, TV, rádio, etc.) persistam como reféns da mediocridade insistindo numa recusa frontal a tudo que se aproxime de um lance de pensamento, a internet, por outro lado, começa a dar sinais de vida inteligente e às vezes chega mesmo a nos enganar. Ou seja, a rede mundial/virtual, algumas vezes, finge ser o lugar por excelência de um saber/conhecimento que nós deveras há muito esperamos que cresça e apareça. Mas, na verdade, ainda é um meio em vias de estabelecer-se. Tem muito dos defeitos e das virtudes dos outros meios que um dia talvez venha a substituir. Assim, à diferença dos veículos consagrados (que tentaram contar a história desses dois últimos séculos), a internet parece encarnar a imagem desse nosso presente sem margens do pós-tudo. E a poesia contemporânea se sente bastante à vontade no interior da fragmentação especular que marca esse âmbito virtual.

Agora, destacarei alguns aspectos dessa poesia. Figuras de sua verdade cambiante. Primeiro aspecto: os poetas de agora-agora, grosso modo, dominam desde tenra idade os repertórios da linguagem poética; eles demonstram conhecer os pontos cruciais da tradição literária do ocidente; estar familiarizados com a voz dos mestres do modernismo histórico; prestar atenção aos recursos da versificação quer seja livre, quer seja metrificada; e, por fim, simpatizar, naturalmente, com proposições das vanguardas de quatro décadas atrás. A sofisticação, no caso deles, beira o lugar-comum. Não praticam mais uma poesia ingênua, de coração, confessional. Todos têm uma consciência de linguagem de causar inveja. A propósito disso, Heloisa Buarque de Hollanda publicou um estudo-antologia em que discute essa questão. Seu recorte tem um cunho multicultural. Mas a autora vai na contramão daqueles que denunciam na poesia contemporânea um pendor para a alienação, para a fuga da realidade, sintomas que, de acordo com esses críticos, seriam resultantes dessa opção pela extrema sofisticação. A autora não nega a existência desse traço sofisticado, mas no recorte que ela nos apresenta fica demonstrado que os poetas não participam inteiramente de um estado de espírito neutro ou indiferente em relação ao que os cerca. Isto é, o requinte, a erudição intertextual, etc., não estão necessariamente em contradição com a consciência política e social e também histórica.

Vejamos outro aspecto: a poesia atual se acomoda muito bem dentro da moldura do ecletismo. Haroldo de Campos chegou a cunhar a expressão "ecletismo retrô" para provocar ironicamente essa geração que lhe sucede. Com efeito, tudo agora parece possível depois das vanguardas históricas das décadas de 1960/50. A tolerância poeticamente correta permite desde o soneto camoniano até o poema concreto strictu sensu. É como se os poetas contemporâneos quisessem resgatar das zonas do limbo aqueles exemplares excluídos pelo afã talibanesco do modernismo histórico. As vanguardas tão esclarecidas quanto totalitárias (porque utópicas) da virada do século 19 para o século 20, talvez tenham jogado fora o bebê junto com a água do banho. O poeta carioca Alexei Bueno defende essa tese pós-moderna de revisão do legado. Ele reivindica toda uma tradição e um repertório deixados de lado pela parelha dicotômica novo-velho preconizada pelos diversos discursos do modernismo (que serve de escopo a eles, que os informa). O poeta-crítico repropõe os nomes de, por exemplo, Gonçalves Dias e Castro Alves. Há alguns anos, Alexei Bueno também chegou a publicar uma carta aberta criticando o que ele chamou de "uma apropriação midiática e totalitária do neoconcretismo" e dos seus epígonos, entre eles o poeta Nelson Ascher. Não obstante, o tom algo tresloucado e mesmo ofensivo — motivado talvez pela provinciana rivalidade Rio-São Paulo —, o conteúdo da carta foi e é importante para mexer com um estado de coisas relativo a certa apologia acrítica em torno do valor da poesia concreta — que não condiz, em fim de contas, com o radicalismo desse movimento —, e que, por tabela, denuncia no sistema literário esse constante risco de estagnação a que está sujeito.

Outro aspecto também interessante da poesia atual é o seguinte: nunca, como hoje, vimos os poetas que praticam essa poesia, tão entranhados nas regras de eficiência e competência exigidas pelo sistema literário, representação especular, mas com suas particularidades, dos imperativos sócio-econômicos abrigados sob o arco ideológico do livre mercado. E que outra razão haveria para a grande presença de poetas dentro dos muros da academia? O meio social nos cobra filiações consagradas e consagradoras. Alexei Bueno, pergunta pelos poetas engenheiros; pelos poetas médicos; pelos poetas sem profissão; enfim, pelos poetas "à margem da margem": onde estão eles? Isso parece coisa de um outro tempo. Uma parcela significativa dos poetas vivos, isto é, nascidos no século passado, se formam ou se formarão na academia. Mestrandos e doutorandos em Letras. Isso pode ser um problema. No entanto, não faço aqui a defesa do poeta romântico ou inspirado, o gênio monstruoso cuja originalidade sem começo nem fim, ofusca a nossa compreensão. Por outro lado, a poesia demanda anos de estudo vagabundo, de leitura de prazer, e uma constante prática corpo a corpo com a linguagem. O poeta precisa distinguir, por exemplo, uma sextina de um soneto, identificar tanto nos traços fonológicos quanto nos grafológicos insumos estéticos. Um poeta está sempre in progress. É neste sentido que uma formação burocratizante numa atividade equívoca como a poesia, termina sendo, ao fim e ao cabo, deformante. A (de)formação acadêmica talvez seja útil apenas para ratificar a existência ou a importância do nosso "censor interno" (W. H. Auden dixit) numa situação que nos seja exigido um ato de julgamento. Jorge Luis Borges diz que "o poeta não condena nem absolve". Mas qual seria a qualidade de um juízo condicionado por cânones hegemônicos, por pontos de vista superciliosos quanto à informação nova, por discursos presunçosamente totalizadores? Esses questionamentos precisam ser feitos para que a poesia e a literatura-arte (e não o "literário" do mercado livreiro) não restem tão-só a serviço do "controle institucional da interpretação" (Frank Kermode dixit), representado pela universidade, pela crítica especializada, pelos grupelhos de poetas bem relacionados, pelos órgãos públicos e/ou privados ligados à cultura, etc.

Assim, dentro desse panorama pluralista, o quarto aspecto que identifico no atual panorama da produção poética, diz respeito ao espaço para o exercício da experimentação. A bem da verdade, um espaço reconhecido um pouco a contragosto.  Mas essa poesia experimental ou vanguardista se mostra ainda bastante epigonal. Ou seja, opera num registro virtuosístico, tendo como base as rupturas que a poesia de vanguarda das décadas de 1950/60 levou quase ao limite da aporia. Em resposta à poesia "em greve", isto é, negativa, daquelas vanguardas, a poesia de invenção desse século pós-utópico é alegre e sem compromisso com uma poética progressiva. A vanguarda (e principalmente como movimento coletivo) deixa de ser uma bandeira. O experimentalismo, como conceito, perde força. Agora, não é senão uma possibilidade de performance dentro de um determinado repertório oferecido pela tradição.

Mas todos os dilemas, ou os vícios e virtudes da poesia moderna e contemporânea, poderiam ser resumidos ou ter sua origem num ponto apenas, que é o que concerne ao verso livre. Embora seja um exagero insistir em dizer que o "ciclo histórico do verso está encerrado", parece ficar cada vez mais claro que o verso livre modernista — que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas — experimenta um momento de estagnação.  Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a "música sem-versista": o poema como uma constelação suspensa na página; nem mesmo elas, conseguiram mudar o quadro. Talvez isso se deva, em parte, a precoce canonização do versolibrismo. O verso livre da fase áurea do modernismo representou uma possibilidade expressiva mais afim àquele momento histórico e ao que viria a seguir. O soneto, essa máquina parnasiana onde os poetas-medalhões se refestelavam com seu virtuosismo métrico, começara a emperrar. Em contrapartida, a defesa do verso não-metrificado, em alguns casos, foi tão dogmática quanto a dos que o repudiavam. A verdade é que o verso livre — mais como prática inercial do que como afirmação ou ensaio inventivo de um modelo conquistado — ainda tem muita coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu substituir.

 

 

 

 

abril, 2007

 
 
 
 

Ronald Augusto (Rio Grande-RS, 1961). Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor, entre outros, de Homem ao rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de valha (1992), Confissões aplicadas (2004) e No assoalho duro (2007). Tem poemas, artigos e/ou ensaios publicados em várias revistas nacionais e estrangeiras. É co-editor, ao lado de Ronaldo Machado, da Editora Éblis. Ministra oficinas de poesia. É integrante do grupo os poETs. Assina os blogues Poesia-Pau e Poesia Coisa Nenhuma.

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