©bordallo pinheiro
 
 
 
 
 
 
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Uma exumação de O Defunto
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Cotejando as datas de publicação primeira dos textos inscritas na colectânea "Contos"1, constata-se que os mesmos foram publicados entre 1874 e 1897. Um quarto de século, aproximadamente.

Esmiuçando um pouco, conclui-se, afinal que todos vieram a lume na década de 90, com excepção de "Singularidades"2 (1874) e "Outro Amável Milagre" (1885). Atendo-nos a uma análise mais funda, diríamos que os textos foram escritos em data próxima daquela em que foram divulgados.

E o facto é que quase todos os contos ressumam de uma fase amadurecida, densa de leveza, demonstrando uma escrita quase encantada falando de devaneios, ultrapassada já a dura e desolada luta do Realismo e posta de parte a missão, mais dura ainda, do naturalismo que se vinha impondo. Porque, realmente, são escritos naquela que viria a ser a última década de vida do escritor. A época da sua última fase literária, também. E de todas as redundâncias.

Convém ressaltar desde já que se destaca francamente de todos os mais o escorço de "Singularidades". Distinto no período curto, no uso aceso do diálogo, no delinear de cenas e figuras. E, sobretudo, distinto no conteúdo, anunciando o realismo dos próximos romances, e distinto no estilo, ainda empobrecido e esforçado, minado de frases afectadas de romantices mal digeridas, mas já a espaços vibrando a ruptura com esse tipo de textos.

Ousando espelhar a actualidade, obriga a entrecenar cruamente as personagens, fazendo-as gerar as virtualidades que resultam do facto de serem de carne e osso.

Mas ainda esbarrando, como aliás se verificaria na ideologia de livros posteriores, com o conservadorismo da época, assumido medrosamente pelo autor ainda quando o contrário pareça, permitindo que mero desvio patológico — no caso, a cleptomania — se sobreponha e acalque todo o sentimento passional, ainda que este tenha sido obtido pelo preço exausto de todas as energias vitais.

Desde cedo se vislumbra aquilo a que chamaria os "crimes" de Eça de Queirós: perpassar entre a mulher santa que se esconde e a outra, a que peca, e que ele desde logo condena para mais tarde matar, pouco importando agora o teor das várias mortes de que deitou mãos.

Mais importa aqui e agora, relevar a suprema redundância: dois textos repetidos, "Suave Milagre" e "Outro Amável Milagre". Poder-se-ia questionar a oportunidade da inclusão do último, igual ao primeiro mas escrito antes, tendo à sequela apenas sido acrescido o mendigo de forma a justificar o conhecimento prévio de Jesus pela criança. Sobraria sempre o facto de ter sido escrita duas vezes a mesma história.

Situação que se repete com "Civilização", conto de 30 páginas que viria a ser expandido num romance de cerca de 200, "A Cidade e as Serras".

Também este livro, "Contos", permite observar a atracção por outro tipo de escritas aparentadas, não só bíblicas que já foram anotadas e a que se deveria acrescentar "Adão e Eva"3, mas ainda as míticas e as esbulhadas a autores que fecundaram renascimentos tal como "A Perfeição" ou "A Aia", ou a trechos medievantes, "O Tesouro", "O Defunto", mas, sobretudo, a escavações hagiológicas, "Frei Genebro".

E este último nos remete para as vidas de santos, S. Cristóvão, Santo Onofre e S. Frei Gil, temas que seduziram os últimos tempos do autor e que se esparramam no volume a que se deu o título, absurdo, de "Últimas Páginas".

Pode-se, por parênteses, referenciar que Eça escreveu o "Padre Amaro" 3 vezes e, de igual modo, 3 vezes escreveu "Os Maias". Só que a segunda e terceira versões se viriam a chamar "A Capital" e "A Tragédia"4, e que o autor não teve coragem de as publicar.

Tudo o que fica expresso, pode ser sintetizado na atracção irresistível de Eça por temas e escritas incompatíveis com os realismos de que saía agora dessorado mas decidido. E a cedência a estas escritas se configura como sedução ou, mais do que isso, autêntica obsessão.

 

Mas o que se pretende abordar é uma outra obsessão: a da escrita. Porque foi sempre esse o alvo de Eça, foi o único espelho de que pretendeu retirar reflexos: não a realidade, social ou outra, ou o romantismo retomado e, muito menos, réplicas religiosas ou a-históricas.

Na era da ficção, mais pujante que nunca, é óbvio que a literatura a fazer-se teria na base personagens e cenas e entrechos.

Mas o objecto, quase rochedo, a que Eça se atirou foi a escrita e só a esse quis desbastar e expandir. É, por isso decerto, um autor maldito, chato, desagradável, imposto às juventudes estudantis por ensaístas e pedagogos, e que, portanto, é preterido a quase todos, apenas sendo suplantado no ódio dos jovens pelos "Lusíadas".

Não deve usar-se a comparação com outros romancistas, mesmo os do romance histórico. Apesar da casticidade de alguns e da fenomenal caracterização de outros, dos seus enredos uma só personagem resta viva: a escrita.

 

Isso nos permite circunscrever ao conto que encerra, da forma aparentemente mais desastrada, um tipo. Referimo-nos a "O Defunto", o "enforcado recadeiro do Eça" na irónica definição de Maria Velho da Costa5. Texto que demonstra a  atracção por caminhos medievais que já haviam subornado Herculano com "A Dama Pé-de-cabra".

Podemos hoje afirmar que este conto, "O Defunto", não está vocacionado, e muito menos apontado, para tempos idos. A evolução futura literária, ainda a contemporânea, sobretudo as últimas décadas, agarrou a fórmula: o conto ou romance fantástico, o realismo mágico, o irrealismo, o gótico, o onírico. Ameaçando inclusive tornar-se uma face autónoma das várias literaturas ou ficções, que para muito analista em verdade já é.

Também podemos confirmar o talento de um autor buscado na periferia. Isto é, o alinhar de uma história, e cenas, e paisagens, e sentimentos, não vivida pelo criador, vislumbrada do exterior ou, na melhor das hipóteses, reabitada apenas nos dias de febre em que a mesma foi congeminada e escrita.

Esse aspecto ressalta vivamente nas frases que se dedicam a erguer ambientes, locais e cenários e odores que permaneceram até hoje e que só agora começam a ficar sepultos, o que fará o degelo de muito texto, designadamente "As Pupilas" de Dinis.

Veja-se, discando finalmente uma transcrição; ou duas; ou três, assinalando apenas início e termo:

"Para além da Porta de S. Marcos … lua cheia, ainda escondida".;

"Assim chegou ao cruzeiro … Cerro dos Enforcados". – pg. 181.

"De um alto da estrada … ponte romana". – pg. 185.

Algumas páginas, como esta, buliram em antes que ainda não existia, sendo precisamente título de filme a haver6. Outras, nitidamente, esporeiam um tipo de ficção que, iniciado muito antes, não permanecia na época, brotou e foi ferozmente atacado, e retomou-se a cavalo: o romance psicológico.

Mas o mais admirado é ter Eça, ele que seguramente visionou baçamente o mundo português por viver na Europa, ter desenvolvido os territórios físicos e mentais do interior provinciano de forma conivente, ele que sempre foi urbano e, diríamos, não era árvore e morreria seco em qualquer aldeia. Estas, Segóvia e Cabril, levantam-se de pernas e são iguais, aparentadas às que alguns de nós comemos na única época em que é viável a assimilação de tal fruto: a infância.

 

Vamo-nos então cingir ao termo.

Redundância, muito simplistamente, é a repetição de determinado vocábulo ou de vocábulo da mesma família morfológica em determinada frase. Ou em frases próximas entre si. Pecado que se condena e empurra, em todos os manuais de cartas e outras correspondências, mas também em todas as lições que se projectam em reinos de escritórios administrativos ou jurisprudenciais.

Pois não é que Eça, que alardeia este defeito aqui e além no presente volume, deixa-se distrair e cai esbarrondado numa autêntica hemorragia de redundâncias n"O Defunto"? Descontando as que nos escaparam e ainda as que por sua forma subtil seria excessivo contabilizar, ainda assim apuramos a ocorrência de 230!

Obriga ao uso da matemática e obrigaria o recurso à estatística, o que não faremos. Em termos muito triviais, atendendo a que o conto se estende por 31 páginas, verifica-se a existência de 7,7 redundâncias em média, assim distribuídas: 23 na primeira parte – 5 páginas; 41 na segunda – 8 páginas; e 8 na última – uma página. Constata-se ainda que apenas uma página, a 171, não dispõe (aparentemente) de nenhum efeito repetidor de palavras, observando-se o máximo de recorrências — 15 — na página 195, o que equivale a dizer, para um texto paginado a 35 linhas, que há redundância linha sim linha não.

Mas, mais importante que a quantidade, é aferir da sua qualidade, isto é, dos efeitos estilísticos e suas consequências de leitura. Que tentaremos fazer, sumariamente.

Algumas quase nem valeria a pena citar, porque se trata de expressões comuns ou aparentadas e sem qualquer revérbero luminoso na frase: "uma por uma"; "pedra por pedra"; "seria sua, toda sua".

Noutros casos, ostenta-se apenas, levemente, um breve insinuar do texto glosando as palavras em género, número ou grau, isolados ou em simultâneo: "… maldizendo uma frieza que lhe parecia mais fria que a dos frios muros …"; "Duas vezes desceu à cavalariça a verificar se o seu cavalo estava bem ferrado …"; "… e que a amava, e que por esse amor vinha correndo deslumbrado …"

Ocorre ainda uma fina vibração da linguagem, por força das seguintes situações: inversão dos vocábulos: "… não sabia o nome nem a vida, e só por ela daria vida e nome …"; atribuição de qualificativos diversos a um mesmo objecto: "E ela ergueu também os olhos para D. Rui, mas uns olhos repousados, uns olhos serenos …"; o declive linguístico na sinestesia: "Todo o solar era como um jazigo onde jazia um insensível …"; a redonda circularidade de elementos sinónimos: "Assim seu marido usava a sua beleza, o seu leito, como a rede de ouro em que devia cair aquela presa estouvada".

Falemos agora do efeito mais vulgar com que se pretende objectivar o uso da redundância: é a insistência, a grossura da frase, o alicerce da história, a promiscuidade com o leitor, a familiaridade, a explicitação do texto. Esta é a fórmula mais frequente e os exemplos são múltiplos, destacando desses três: "… sobre as mesmas lajes onde a viu ajoelhada, pousava ele os joelhos …"; "… sempre os olhos dela permaneciam descuidados e como esquecidos …, que D. Rui os preferiria ofendidos e faiscando de ira, ou soberbamente desviados com soberbo desdém".; "D. Leonor ajoelha, com o peito a arfar, tão pálida e tão feliz que a cera das tochas não era mais pálida, nem mais felizes as andorinhas que batiam as asas livres pelas ogivas da velha igreja".

Esta fórmula sonora da textura linguística, um quase rouquejar roufenho da frase, ressalta e exalta-se sempre que transcende virtualidades já abusadas.

E isso acontece quando a repetição de vocábulo(s) funciona como o eco, a síntese, a charneira, a rosácea, a cereja no cimo do bolo: "Como pudera escapar aquele homem, com uma adaga atravessada no coração? Como pudera? …"

Quando a palavra deve ser martelada como o som de um sino, de forma a produzir sequelas no interlocutor ou no íntimo: "Vilão, vilão!"; "Era cedo, era cedo!".; "Sobre o soalho, vergou e revergou, para a experimentar, a folha da espada …"; "E D. Rui a cada momento sentia um frio mais regelado que lhe regelava os ombros, como se levasse sobre eles um saco cheio de gelo".

Quando a frase se entrelaça, obstinada em repetições de vocábulos e dos seus contrários, ascendendo ao reino do barroco, mas ao de leve, na filigrana, por mor dos elementos femininos manuseados:

"… na manhã de Maio em que a viu de joelhos ante o altar, … o rosário caindo de entre os dedos finos, fina toda ela e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra, mais branca entre as rendas negras e os negros cetins que à volta do seu corpo … se quebravam, em pregas duras, sobre as lajes da capela, velhas lajes de sepulturas".

Quando a aflição atinge o escritor, na febre de demonstrar a rapidez, a perigosidade e a ânsia com que se desenrola a cena e ele se esforça, torto e cansado, por a acompanhar com passadas de letras e fonologias. Seria estultícia, pela sua extensão, transcrever o quarto parágrafo da página 188, onde a redundância dá a mão ao autor para redigir uma cena veloz, 12 redundâncias numa só frase, entremeadas de pausas, de silêncios, de gritos iminentes, de reticências e arranques súbitos, tentando ressuscitar uma acção vertiginosa e múltipla.

Muita vez a redundância dá o braço e se enamora de outras figuras de sintaxe, parecendo ceder-lhes a voz.

E então se metamorfoseia na enumeração, na anáfora, no polissíndeto:

"… e uma lâmina da adaga faísca, e cai, e outra vez se ergue, e rebrilha, e se abate, e ainda refulge, e ainda se embebe! …";

"Rebuscou então cada rua, cada sombra, cada maciço de arbustos. E … não descobria o corpo, nem pegadas, nem terra que houvesse sido remexida, nem sequer rasto de sangue sobre a terra!".

E dá mão resoluta ao pleonasmo:

"— Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui! …"

 

à animização:

"… onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo …"

 

à metáfora:

"… toda ela … branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra …"

 

à rima, despertando vagos anseios poéticos de Eça:

"… bem ferrado e bem folgado …";

" … grito ansiado e mal sufocado".

"Ela passara — nem pensara".

 

e, ainda, de forma quase subterrânea, à aliteração:

"Estava já rígido …, todo puído e carcomido como uma velha carcaça".

 

É altura de desfibrar a árvore, obtendo o que nela é mais duradouro: as raízes. De retirar uma a uma as fímbrias acres da cebola dorindo os olhos com seu etéreo líquido. De observar a redundância transplantada, sepulta de si mesma, agilizando-se nos ares, puro e fluido efeito linguístico que perfura novos terrenos literários.

Aí podemos assomar se os lexemas variam a posição e a forma temporal, e se dão dedos obtendo o cruzamento ou entroncamento de ideias e sensações que deixam de o ser a despeito de um hipotético conjuntivo se tornar presente, concreto:

"… esperando que o seu coração serenasse e se consolasse sob a influência d'Aquela que tudo consola e serena".

Também quando um dos vocábulos se centraliza no nó a que os restantes colam orelhas, espetando-se no ramalhete:

"Ambos os beiços se lhe arreganhavam num sorriso empedernido. De entre os dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua muito negra".

E se as palavras ecoam, reflexos de espelho, desfigurados e invertidos mas apelando ao primeiro surgimento, no parágrafo imediato em que nos voltam ao caminho:

"Convém que aqui deixeis o cavalo, … se o tendes por seguro e fiel. …

… prendeu o cavalo, que sabia fiel e seguro …"

De igual modo se tais palavras, as que se repetem, foram arremessadas longe, duas páginas, como uma pedrada, e agora nos tocam com a mão, lembrando-nos que o percurso a elas teria de voltar:

"Nesses dias da sua estada em Cabril, nenhum caso criara pela cidade espanto e murmuração?". – pg. 193;

"… lhe contou logo de um prodigioso caso, que causava pela cidade grave murmuração e espanto …" – pg. 195.

Ou quando, golfinho sagaz, a frase se mostra, mergulha, emergindo de novo escorrente de outras águas:

"— Oh! Lá sobe o maldito! — rugiu D. Rui. O enforcado subia".

Ou quando a repetição usa artes de camaleão, permanece quase escondida, camuflada, e imitando o sagitário, ressurge sendo parte integrante de novo vocábulo:

"A lua descia e desfalecia".

Mais ainda, se o turvar de sentimentos força ao despiste e permite a alocução de formas verbais equívocas que desaguam em sentidos paradoxais e em ironias mortuárias:

"…estacou a olhar, esgazeado e lívido, para o enforcado e para a adaga que lhe varara o peito. Era a sua adaga — fora ele que matara o morto!".

 

Mas, sobretudo, quando a redundância persegue o corpo da toupeira e flui, de manso, quase imperceptível, subterrânea, mal se notando o seu sulco na linha de água do texto. Não se trata já de reincidência de frases, nem de expressões, nem sequer de palavras ou mesmo sílabas: estamos ao nível puro e semântico da letra, do sonoro, o grau zero da escrita, o seu componente mais atómico. É este o parágrafo:

"E aí se encerrou com o seu segredo, começando logo a amarelecer, a definhar, sempre arredado da senhora D. Leonor, escondido pelas ruas sombrias do jardim, murmurando palavras ao vento, até que na madrugada de S. João uma serva que voltava da fonte com a sua bilha o encontrou morto, por baixo do balcão de pedra, todo estirado no chão, com os dedos encravados no canteiro de goivos, onde parecia ter longamente esgravatado a terra, e procurado..."

Como numa larga e loira eira, a que acedem ventos contrários, mas minimamente coordenados, assistimos ao rodopio, ao langor surdo, ao redemoinho dos fonemas mal sibilados mas indómitos.

Observamos a prevalência de vogais tónicas orais, depois as tónicas nasais fechadas e finalmente as átonas orais.

Vemos como os sentimentos se encadeiam através do uso determinista de consoantes, primeiro as alveolares, a seguir as linguodentais, ainda as bilabiais, agora as labiodentais, de novo as linguodentais e por fim as velares.

E neste jogo sinestésico, em que o texto murmura e respira e borbulha e resfolega e enlangora, é possível traduzir o abatimento humano, o desfalecimento e o modo como a mente fica submersa sob as patas das coisas e da paisagem até se depositar e esvair pela última peça orgânica a que ainda chegava, anémico, um brevíssimo fôlego do sangue: os dedos.

E os dedos nos encaminham para uma toada melancólica, perpassando nos sulcos de piano da terra ou nas finas cordas de harpa dos ventos que a sacodem.

 

Tudo compulsado, devemos concluir que mais que um aneurisma que revolve e rasga os tecidos do texto, esta invulgar reincidiva de palavras iguais ou idênticas ou aparentadas se assemelha a um abcesso, a um enorme tumor, que como um vulcão galga e trasborda para fora do conto, por qualquer ângulo que o mesmo se aborde: linguístico, formal, literário ou temático.

Terá sido, designadamente, embora inócua, desalvejada, involuntária obra de provocação?

Que se pode medir por outros aspectos contraditórios e redundantes. Faça-se uma estranha comparação com "Singularidades". Ali temos uma "rapariga loira", Luísa, aqui deparamos com uma mulher "aureolada de cabelos de ouro", Leonor. Ambas mulheres, com nomes de idêntica inicial, presas ambas, uma de seus instintos, outra de seu senhor, padecem de finais opostos e, mera redundância, ambos imprevistos face ao evoluir da história: a tragédia de Luísa (tal como mais tarde a Luísa do "Primo Basílio") e o happy-end de Leonor.

Aliás, se "Singularidades" beneficia de um título estupendo, "O Defunto" é totalmente inadequado. Até pela forma como a palavra e o personagem ocorrem, mencionado dezenas de vezes na parte mais extensa do texto, o título só poderia ser "O Enforcado".

Mais do que provocação, desenha-se aqui uma armadilha. Tendo nós de deslocar o título e suas nuanças para outra personagem. De facto, não é o enforcado que representa o defunto mas D. Alonso. Não é a pessoa já morta antes do início da narração que o encarna, mas aquela que, no auge da vida e do poder, empurrada por forças sobre-humanas, se torna ele o defunto, vivo primeiro e morto depois. Provocando-se aturdidas inversões, como o casamento improvável e impossível erguendo-se sobre um cadáver e só perante este sendo viável, e a subversão que permite obter um defunto à custa de um vivo e por obra de um morto. De tal forma a tarefa, (o casamento), era irrealizável.

Provocação? Provocações? Decerto. Como a que intentámos, chamando a atenção para algo que, soberanamente visível, ainda não fora assinalado. Para as vagas sucessivas e desavisadamente idênticas de que se formam as colinas de sal de um texto. Obrigando-nos uma nova leitura. Novas leituras. Ângulos diversos. Predisposições. Que, abraçadas, nos revelam um novo caminho, um caminho novo, um novo texto, absolutamente diverso do que vinha sendo lido. Mudado de noctívago em diurno. E que ninguém escreveu. Ou apenas sugeriu, porque o que ocorreu foi a reescritura do leitor.

 

 

 

outubro, 2005

 

Antero Barbosa (Marco de Canavezes, distrito do Porto, Portugal, 1956). Escritor (poema, ficção, ensaio), licenciado em Estudos Portugueses e dirigente em Escola de Ensino Superior. Publicou Contextos (contos), 2005. Escreve o blogue Poligrafia. Mais aqui.