Em recente entrevista
publicada no Clarín1, de Buenos Aires,
o ensaísta George Steiner revelou, dentre outras, suas interrogações
sobre o processo de criação da obra de arte: "Sempre procurei entender
onde está o segredo, qual é o mistério da poiesis (criação
e poesia), e como, inclusive, a maior inteligência crítica ou analítica
pertence a outra classe, diferente daquela do criador. Como funciona
a explosão de sinapses cerebrais durante a criação, não o sabemos.
Alguns psicólogos e cientistas cognitivos crêem que resolveram o problema.
Eu me mantenho cético..."
De fato, o processo
através do qual um impulso nervoso passa de uma célula cerebral a
outra — o que recebe o nome de sinapse —, é uma das descobertas
que colocam o homem na soleira dos meandros do cérebro2.
Os neurônios estão permanentemente conversando entre si, criando conexões
inusitadas a cada milésimo de segundo e, portanto, se excitados da
maneira correta, podem produzir, por meio de milhões de sinapses,
idéias geniais. O próprio George Steiner dá um exemplo: "O pequeno
Paul Klee, aos seis anos, saiu numa excursão com sua escola; a professora
disse-lhes que desenhassem um aqueduto, um tema muito maçante. Todos
os meninos desenharam um aqueduto, mas Paul Klee colocou um sapato
em cada coluna: o aqueduto caminhava."
Numa explicação resumida
e fria, que, evidentemente, não dá conta de toda a profusão de estímulos
presentes no cérebro do menino artista, os neurônios de Klee —
estimulados pela ordem da professora, pela visão do aqueduto e por
milhões de outras informações que jamais conseguiremos determinar —
transmitiram, por meio de impulsos nervosos, certos sinais codificados
que, graças aos neurotransmissores, passaram de uma célula a outra,
criando as conexões que tornaram possível o ato de abstrair a imagem
do aqueduto e, num átimo, imaginá-lo calçando sapatos.
O mais curioso, no
entanto, é que a transmissão de informações de um neurônio a outro
ocorre quimicamente, pois há um mínimo espaço vazio entre ambos, a
chamada fenda sináptica. A ciência afirma que os neurônios jamais
se tocam.
A sinapse, essa transmissão
ou diálogo permanente, que promove milhões de mudanças, sentimentos,
dúvidas e decisões em nossos cérebros — um processo por meio
do qual uma informação transforma-se de impulso elétrico em impulso
químico e, novamente, num outro neurônio, em impulso elétrico —,
guarda o segredo da criação artística.
Imaginar que as informações
nadam de um neurônio a outro, em meio a bilhões de outras mensagens,
e que, caso recebam o estímulo adequado, podem, ao invés de se perderem,
produzir obras geniais, concede, ao conhecimento desse incrível processo,
a qualidade de uma aventura num universo ainda por demais obscuro
para o homem, apesar de ocorrer em seu próprio interior.
Mas não são apenas
os cientistas que se debruçam sobre tais enigmas. A angústia por se
descobrir os tortuosos caminhos da criação tem influenciado, inclusive,
muitos poetas. E, ao tentarem explicar as razões que os motivaram
a escrever, muitos o fizeram através da poesia.
Rosalía de Castro
(1837-1885), a figura mais importante da poesia galega do século XIX,
deixou um poema sutil, em cujo lirismo ela tangencia as raízes do
processo criativo:
Cantiga3
Eu cantar, cantar, cantei;
a graça não era muita,
pois nunca por meu pesar,
fui eu menina graciosa.
Cantei como foi possível,
dando voltas e mais voltas
assim como quem não sabe
perfeitamente uma cousa.
Porém depois de mansinho
e um pouco mais alto agora,
fui soltando essas cantigas
como quem não quer a cousa.
Eu bem quisera, é verdade,
que elas fossem mais bonitas;
(...)
Isto e ainda mais quisera
dizer com língua graciosa;
mas onde a graça me falta,
o sentimento me sobra.
Entretanto isto não basta
para explicar certas cousas
que, às vezes, por fora um canta
enquanto por dentro chora.
Não me expliquei qual quisera:
sou de pouca explicação;
se graça em cantar não tenho,
o amor da terra me afoga.
Eu cantar, cantar, cantei,
a graça não era muita,
mas que fazer — desgraçada! —
se não nasci mais graciosa.
O poema fala sobre
a sua própria gênese, quer explicar-se e, contudo, parece esbarrar
numa dificuldade intransponível. Semelhante a um animal que se enrola
em si mesmo ou uma serpente que morde a própria cauda, os versos vão
e voltam sem conseguir alcançar seu intento: descerrar o processo
criativo. Mas o poema nasce, ainda que num ritmo triste, dessa mesma
insatisfação.
O jesuíta inglês Gerard
Manley Hopkins (1844-1889) conseguirá aproximar-se mais do estalo
sináptico:
A R. B.4
A alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.
Nove meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.
Fogo maior, senhor da musa — uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa
A vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.
A labareda da inspiração
é fugaz, mas concede à mente a energia para fazer brotar o poema.
O cérebro o embala por um tempo indefinido, até estar seguro de que
a idéia foi moldada perfeitamente. À sinapse, no caso de Hopkins,
segue-se um longo processo de maturação, angustioso, sem qualquer
alegria, ao qual o poeta dá o nome de "mundo-inverno".
A impressão final
é de que o escritor nunca tem absoluta consciência dos seus processos
criativos ou do real valor das suas idéias, por mais originais que
elas sejam. Ele simplesmente cria, cegamente, impulsionado por uma
energia interior, uma força indefinida, um complexo ou uma neurose,
algo que o faz expressar-se, nestes casos, através da escrita. Com
a arte, ele busca, tem a ilusão, pretende criar uma realidade paralela
à vida. E, de fato, momentaneamente, o faz, residindo aí a catarse
que o salva de suas próprias dúvidas, insatisfações ou angústias.
Há, certamente, muito de acaso nessa seqüência de acertos felizes
que, por fim, formam uma obra fadada a permanecer como referência
ou exemplo. Edmund Wilson cunhou uma bela analogia para explicar tal
seqüência: "As novas anomalias e acidentes da vida constantemente
sendo assimilados pela faculdade artística — imediatamente tomados
e incrustados, tornados simétricos e iridescentes, como a pérola da
ostra — até que, quando as ostras morrem e só resta sua obra,
os anais da espécie humana parecem ser não uma sucessão de mortes,
e sim um colar de pérolas."5
Certamente, quando
se trata da produção artística, parecerá a alguns um sortilégio falar
em acaso. Mas creio não existir uma expressão melhor para definir
a coincidência entre estímulos exteriores, experiência acumulada,
sinapses e reflexos estéticos. O poeta Wystan Hugh Auden (1907-1973),
por exemplo, relata6 ter começado a escrever
poesia "porque numa tarde de domingo, em março de 1922, um amigo me
sugeriu que o fizesse. A idéia jamais me ocorrera. Conhecia pouquíssimos
poemas (...) e tinha pouco interesse na chamada Arte Literária. (...)
Naquela ocasião, a sugestão de que eu escrevesse poesia parecia uma
revelação do céu, pois nada em meu passado justificava tal curso."
Em outro ensaio7,
Auden cita um curioso exemplo, extraído de uma carta de Rossini a
Louis Engel: "Quando escrevia a parte do coro em sol menor, sem querer
enfiei a pena no vidro de remédio ao invés do tinteiro; fiz um borrão
e, quando sequei a tinta com areia a mancha assumiu a forma de uma
nota natural. Então, imediatamente, ocorreu-me o efeito que teria
a mudança de sol menor para sol maior. Àquele borrão, todo —
e qualquer — efeito se deve."
Alguns prefeririam
dizer que a mão de Rossini foi guiada por uma outra Mão, uma entidade
maior, talvez sagrada, à qual poderíamos chamar de Destino, Providência
Divina ou, simplesmente, Deus. No entanto, devemos a solução encontrada
por Rossini ao acúmulo de conhecimentos e experiências que ele detinha
naquele momento e, sobrepondo-se a tal somatório, primeiro, à feliz
proximidade entre o tinteiro e o vidro de remédio, e, depois, às sinapses
que, nascidas do ato de ver o borrão, provocaram a idéia de fazer
a mudança de sol menor para sol maior. Nada mais.
De fato, a experiência
armazenada na memória parece ser um fator excitante ou potencializador
das sinapses. Ao analisar o princípio de sua produção literária, Auden
relata que, olhando retrospectivamente, recorda-se de, desde sempre,
ver as palavras de uma forma muito pessoal: "(...) Lia a prosa tecnológica
de meus livros favoritos de uma maneira peculiar. Uma palavra como
pyrites (pirita de ferro), por exemplo, não possuía, para mim,
simplesmente um único conteúdo significativo; era também o nome próprio
de um Ser Secreto, de modo que quando ouvi uma tia pronunciar pirrits
(em vez de páirits), fiquei chocado. A pronúncia era mais do
que errada; era feia. A ignorância era ímpia."8 Há,
portanto, antecedendo a toda criação, um pré-requisito, um dado pessoal,
único e intransferível, ao qual poderíamos denominar de senso estético,
e que parece reformular-se e rever-se permanentemente, na exata medida
em que novas sinapses ocorrem, recriando tentativas, possibilidades,
urgências e motivações, todas elas passíveis, contudo, de serem experiências
infrutíferas ou erros.
Revendo o arcabouço
de casualidades que o levariam a transformar-se em poeta, Manuel Bandeira
relata9 que, na meninice, quando escrevia
alguns versos, "era com o mesmo espírito desportivo com que me equilibrava
sobre um barril lançado a toda força das pernas, o que de modo nenhum
me fazia sentir com vocação para artista de circo." Anos depois, vindo
a São Paulo para matricular-se na Escola Politécnica, pois desejava
tornar-se arquiteto, ele não imaginava que os fatos acabariam por
redirecionar sua vida: "Pensava que a idade dos versos estava definitivamente
encerrada. Ia começar para mim outra vida. Começou de fato, mas durou
pouco. No fim do ano letivo adoeci e tive de abandonar os estudos,
sem saber que seria para sempre. Sem saber que os versos, que eu fizera
em menino por divertimento, principiaria então e fazê-los por necessidade,
por fatalidade."
O que Bandeira chama
de "fatalidade" é apenas o conjunto de infelizes coincidências que
o fizeram contrair tuberculose em 1904, e forçaram-no a exilar-se
, entre 1913 e 1914, no sanatório suíço de Clavadel. Do ano em que
o poeta adoece até 1917, quando publica seu primeiro livro, A Cinza
das Horas, é que se dará a etapa decisiva e a inusitada gestação
de um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Treze anos de hesitações,
buscas, leituras, ociosidades e decepções, tendo a tuberculose como
um mórbido pano de fundo, somaram-se às experiências da infância e
a bilhões de sinapses para gerar um poeta, comprovando, nas palavras
de Edmund Wilson, que "a literatura é apenas o resultado de nossas
brutais colisões com a realidade, cujas repercussões, depois de nos
recolhermos ao abrigo de nosso íntimo, tentamos explicar, justificar,
harmonizar, colocar numa ordem lógica na corrente uniforme de um pensamento
que se reestrutura depois de ser, por um momento, destroçado e dilacerado
por elas"10.
Essa longa e sinuosa
marcha — cujos frutos e raízes ganharam especial atenção de Manuel
Bandeira, e acabaram por servir à construção de uma sólida obra poética —,
tentaremos analisá-la na segunda parte deste ensaio.
II
A ciência caminha,
cada vez mais, no sentido de comprovar que as sinapses são a forma
encontrada pelo cérebro, após séculos de seleção natural, para armazenar
e dinamizar as informações obtidas através da experiência. Pesquisas
recentes asseveram que indivíduos com maior treinamento profissional
chegam a ter, para cada neurônio, 17% mais sinapses do que os não
preparados, havendo correlação, inclusive, entre educação e ramificação
de neurônios.
As sinapses ocorrem,
assim, numa progressão cumulativa. Os neurônios, quando estimulados,
produzem sinapses; e essas sinapses armazenam, num movimento incessante,
sob a forma de novas conexões sinápticas, as informações adquiridas,
qualificando sempre mais as interligações entre os neurônios, formando
ciclos que se repetem numa aspiral ascendente, o que talvez explique
porque muitos artistas — e tantos outros profissionais —
conseguem superar-se constantemente, além de explicar também o fato
da ciência — e do conhecimento humano em geral — progredir.
Esse efeito cumulativo
das sinapses é muito visível no trajeto pessoal do poeta Manuel Bandeira,
evocado nas páginas memorialísticas de Itinerário de Pasárgada11.
Experiência após experiência, casualidade após casualidade, a começar
da infância, serviram para formar a personalidade poética, o senso
estético e o somatório de referenciais que desembocaram numa das mais
sólidas produções literárias da língua portuguesa. Bandeira recorda
seus primeiros contatos com a poesia, lendo os versos pueris encontrados
em algumas histórias da carochinha; depois, as cantigas de roda, as
trovas populares, as "coplas de zarzuelas", os "couplets de operetas
francesas" e mais os "versos de toda sorte que me ensinava meu pai".
Entre os oito e nove anos, recorda-se de procurar, no Jornal do Recife,
"a poesia que diariamente vinha na primeira página". E, aos dez anos,
faz quadrinhas "gracejando a propósito dos namoros" dos tios maternos.
A figura paterna é,
sem dúvida, um elemento preponderante na formação do poeta: "Na companhia
paterna ia-me embebendo dessa idéia que a poesia está em tudo - tanto
nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas."
O pai fazia-o, também, decorar poemas, além de influenciá-lo com a
curiosa mania de invocar, dias a fio, com determinadas palavras.
Poeta "por fatalidade",
como Bandeira se autodefine, ele publica seu primeiro livro, A
Cinza das Horas, em 1917, "sem a intenção de começar carreira
literária: desejava apenas dar-me a ilusão de não viver inteiramente
ocioso". O homem cuja confessada ambição, semeada pelo pai, era a
arquitetura, tornou-se poeta graças "às circunstâncias", transformando-se,
finalmente, também segundo sua própria definição, num poeta das
circunstâncias: "(...) Meus primeiros versos datam dos dez anos e
foram versos de circunstância. Até os quinze não versejei senão para
me divertir, para caçoar. Então vieram as paixões da puberdade e a
poesia me serviu de desabafo. Ainda circunstância. Depois chegou a
doença. Ainda circunstância e desabafo. Fiz algumas tentativas de
escrever poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas fracassaram."
As declarações acima,
contudo, escamoteiam muito da formação intelectual de Bandeira, contradizem
as explicações que ele fornece para a gestação de alguns de seus principais
poemas e simplificam, exageradamente, uma criatividade em permanente
reelaboração.
Dizendo-se "instruído
pelos fracassos", ele confessa ter tomado consciência de suas limitações
entre 1904, quando adoece, e 1917. Uma autoconsciência que emerge
de processos paralelos, como se dois afluentes corressem um ao lado
do outro, confluindo, subitamente, em determinados momentos, e transbordando
na forma de poesia.
De um lado, Bandeira
afirma ter verificado, em sua experiência pessoal, que seu esforço
consciente para criar resultava somente em "insatisfação, ao passo
que o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou alumbramento,
tinha ao menos a virtude de me deixar aliviado de minhas angústias".
Após sucessivas experiências, ele diz recusar o processo de escrever
em estado de lucidez, resignando-se a fazê-lo "quando Deus é servido".
Há um outro Bandeira,
no entanto, complementar a este primeiro, é verdade, mas diverso.
Um Bandeira que se aproxima das palavras e do exercício poético como
um incansável estudioso. Alguém que afirma ter compreendido,com o
tempo, "que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras
e não com idéias ou sentimentos". Um poeta que, conscientemente, diz
aproveitar-se "dos lapsos de memória" e "dos exames de variantes":
"Quantas vezes, querendo lembrar uma estrofe de um poema, uma trova
popular, e não conseguindo reconstituí-la fielmente, fazia da melhor
maneira o remplissage, depois, cotejando as duas versões —
a minha e o original, verificava qual delas era melhor, pesquisava
o segredo da superioridade e, descoberto, passava a utilizá-lo nos
meus versos."
Incansável, ele pesquisa
e coteja versões diferentes de um mesmo poema, exercitando-se e aprendendo
"a conhecer os valores plásticos e musicais dos fonemas", demonstrando
conhecer muito bem a nossa fonologia: "A poesia é feita de pequeninos
nadas e (...), por exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar
um verso."
É surpreendente como
ele enumera, sem qualquer receio ou pudor, suas influências literárias
e extraliterárias, citando, inclusive, os escritores e os amigos que
o marcaram, recordando como, em sua infância, as pessoas comuns ganhavam
aos seus olhos uma densidade inusitada - o que ele define como "o
caráter de personagens homéricos" —, e ditando as lições complexas,
frutos de minuciosos estudos, mas que em suas palavras ganham uma
aparente e convidativa facilidade: "Cedo compreendi que o bom fraseado
não é o fraseado redondo, mas aquele em que cada palavra está no seu
lugar exato e cada palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo
ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem
vibrar cada parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores."
Portanto, aqueles
que se satisfazem com o Bandeira "poeta das circunstâncias" pouco
apreenderão de um processo criativo que pode, de fato, explodir em
sinapses arrebatadoras, mas que só o faz por trazer uma base sólida,
uma formação clássica e um penetrante conhecimento de versificação,
comprovando que a criação, antes de tudo, é um processo eminentemente
racional.
Acompanhar as elucidações
de Bandeira sobre as diferentes gestações de seus poemas é compreender
como as sinapses podem ser realmente cumulativas e como, reagindo
aos estímulos da realidade, elas se imbricam, se interagem, respondendo
ao apelo da vida, das emoções e, ao mesmo tempo, recriando-se a partir
desses mesmos estímulos. Pasárgada leva anos para ter o primeiro
verso gerado e mais alguns para, finalmente, ser concluído. Outros,
nascem enquanto o poeta dorme. Outros, por fim, surgem de abrupto,
e A última canção do beco talvez seja o mais curioso desse
grupo: "Na véspera de me mudar da rua Morais e Vale, às seis e tanto
da tarde, tinha eu acabado de arrumar os meus troços e caíra exausto
na cama. Exausto da arrumação e um pouco também da emoção de deixar
aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoção se rimou
em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de vestir-me
para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabeça, desci à rua,
no beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo
sempre, e eu com medo de esquecê-los, tomei o bonde, saquei do bolso
um pedaço de papel e um lápis, fui tomando as minhas notas numa estenografia
improvisada, se não quando lá se quebrou a ponta do lápis, os versos
não paravam... Chegando ao meu destino, pedi um lápis e escrevi o
que ainda guardava de cor... De volta a casa, bati os versos na máquina
e fiquei espantadíssimo ao verificar que o poema se compusera à minha
revelia, em sete estrofes de sete versos de sete sílabas."
Eis o resultado, caros
leitores:
Beco que cantei num dístico
Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!
Vão demolir esta casa.
Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!
Beco de sarças de fogo,
De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!
Beco das minhas tristezas,
Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas...
E eras só de pobres quando,
pobre, vim morar aqui.
Lapa — Lapa do Desterro —,
Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres, —
Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.
Beco que nasceste à sombra
De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
As sete estrofes de
sete versos de sete sílabas não podem, certamente, ser obra do acaso.
O poema é fruto da emulação do real e do desencadeamento de informações
armazenadas desde o surgimento, no embrião, das primeiras conexões
de neurônios; e, nelas, estão os versos das histórias infantis, os
pregões dos vendedores ambulantes, os exercícios de tradução, a memória
paterna, a obsessão do artista e, também, o que Ribeiro Couto disse
em seu discurso, ao recepcionar Bandeira na Academia Brasileira de
Letras: "(...) Trouxe-nos aquilo que a leitura dos grandes livros
da humanidade não pode substituir: a rua."
O artista nada mais
é senão o que, de forma prolixa, Edmund Wilson decifra: "Os maneirismos
do artista, seu estilo fortemente marcado, que seus admiradores particularmente
apreciam, podem na verdade, do ponto de vista de suas ambições e de
sua concepção original, representar apenas as limitações do hábito,
a queda no sulco do menor esforço, os estigmas lamentáveis porém inevitáveis
(...) de suas peculiaridades físicas, dos fracassos de sua família
e das limitações de sua nação e raça."12
Ou o que, de forma sintética, Bandeira nos diz: "Somos duplamente
prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos".
Frágil em sua aparente
perenidade, o poeta nasce do ensejo, do instante, mas também da história,
da sucessão de experiências cujos resultados mais íntimos sempre nos
escapam e, para os quais, o poema, a obra de arte, é, ao mesmo tempo,
uma sublimação, uma escapatória e uma afirmativa, um sim irrepreensível.
Solitário em seu instante, subjugado por suas sinapses e emoções,
"aos olhos dos outros, um homem é poeta se tiver escrito um bom poema.
Aos próprios olhos, ele é poeta apenas no momento em que faz a última
revisão num novo poema. No momento anterior, era apenas um poeta em
potencial; no momento seguinte, é um homem que parou de escrever poesia,
talvez para sempre."13
Toda obra
nasce da incerteza, ainda que alguns, após a glória e a fama terem
se manifestado em suas vidas, afirmem o contrário. A angústia e a
capacidade de, em meio às incertezas, refletir sobre o próprio processo
de criação conformam parcela da energia que impulsiona o escritor.
Contudo, toda obra está presa a essas infinitas e dessemelhantes conexões
que expusemos neste breve ensaio, sempre emolduradas pelo binômio
espaço/tempo, mas cujo verdadeiro nome é, apenas, fragilidade.
1Sábado, 31 de agosto de 2002.
2Recomendo, aos que
se interessarem pelo tema, o artigo da pesquisadora Sílvia Helena
Cardoso, Comunicação entre as células nervosas,
onde busquei as informações aqui utilizadas.
3Tradução de Henriqueta Lisboa. In Liboa,
Henriqueta. Poesia Traduzida, Editora da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.
4Tradução de Augusto
de Campos. In Campos, Augusto de. Hopkins — A beleza
difícil, Editora Perspectiva, São Paulo, 1997.
5Os Anos 20, Editora Companhia das
Letras, São Paulo, 1987.
6"Fazer, saber e avaliar", in Auden,
W. H.. A mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo, 1993.
7"Escrever", op.
cit.
8"Fazer, saber e avaliar",
op. cit.
9"Itinerário de Pasárgada", in Bandeira,
Manuel. Seleta de Prosa, Editora Nova Fronteira, 2ª reimpressão,
Rio de Janeiro, 1997.
10Os Anos 20, op. cit.
11In Bandeira,
Manuel. Seleta de Prosa, Editora Nova Fronteira, 2ª reimpressão, RJ,
1997.
12In Os Anos
20, Editora Cia. das Letras, São Paulo, 1987.
13Auden, W. H., "Fazer,
saber e avaliar", in A mão do artista, Editora Siciliano, São Paulo,
1993.
Rodrigo Gurgel é escritor e editor. Escreve
regularmente para vários sites na web e em seu blogue. Também possui
um site pessoal. É membro
do núcleo de redação de Novae. Presta serviços
de consultoria editorial, prepara originais e revisa provas para várias
editoras. Foi um dos dez ganhadores do Concurso de Contos "450 Anos
de São Paulo", promovido, em 2004, pelo Caderno 2
do jornal O Estado de S. Paulo.
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