O Cinema tem lá a sua tradição de filmes sobre pintores, mas não faz filmes exatamente memoráveis sobre eles. Gauguin, Modigliani, Toulouse-Lautrec, Cézanne, Pollock, Picasso, já tiveram suas cinebiografias, alguns até mais de uma. Um caso curioso envolve dois filmes sobre Gauguin — o pintor foi interpretado num filme dinamarquês por Donald Sutherland, Um lobo atrás da porta, e décadas depois pelo seu filho, Kiefer Sutherland, em Rumo ao paraíso. Nenhum dos dois foi um grande sucesso. São apenas medianos.

 

Há coisa de três anos, Modigliani foi vivido por Andy Garcia — não muito convincentemente — em Modigliani. A respeito deste gênio italiano, diz-se que o melhor filme a seu respeito é Os amantes de Montparnasse, em que é interpretado pelo falecido e esquecido ator francês Gérard de Philippe. E este filme não existe, infelizmente, em VHS ou DVD.

 

Sobre Toulouse-Lautrec, há o famoso Moulin Rouge, de John Huston, que é, infelizmente, dos mais frouxos filmes feitos pelo diretor. Já Jackson Pollock, mestre do expressionismo abstrato e da "action painting", foi vivido em cinebiografia recente — Pollock por Ed Harris, e com talento. O filme, no entanto, não tinha nada a oferecer senão uma transcrição meio canhestra da vida do pintor. E sua personalidade — a julgar pelo que foi mostrado — era tão turbulenta, difícil e egocêntrica que a gente sentia era compaixão da mulher que o amava, vivida pela atriz Márcia Gay Harden. Um dia ao lado de Pollock seria uma provação para qualquer ser humano razoável. Mas ela ficou lá, impávida, ao lado dele, por muito tempo.

 

Invariavelmente, os pintores no cinema não são criaturas muito simpáticas. Serão assim na vida real? Picasso comparece, na interpretação de Anthony Hopkins em Amores de Picasso, como um sátiro irresponsável, deixando malucas as mulheres que o amam. Modigliani é um conquistador irresponsável também, no filme em que é interpretado por Andy Garcia. Gauguin, já se sabe, mereceu até livro de Somerset Maugham (Um gosto e seis vinténs) por sua rebeldia contra a civilização, deixando mulher e filhos e a Europa toda pela incerteza e a aventura do Taiti.

 

Mas, esses românticos e lunáticos senhores, com seus pincéis maravilhosos, são um problema danado para as pessoas que os cercam. Parecem tomados de tal maneira por sua arte que um egocentrismo atroz os torna monstruosos, e, como são identicamente cativantes, amá-los é cair na fogueira, não há garantia de nada — eles só têm compromissos com suas visões interiores e um desligamento total dos valores convencionais. O curioso é que essa visão acabou ficando... convencional também, ao menos do ponto de vista do cinema comercial ou dos best sellers literários.

 

 

Vincent: Paradigma e Mistério

 

Talvez em razão dessa vulgarização, quem dispara na frente no número de adaptações de sua vida para o cinema é Vincent Van Gogh, claro. Talvez por ser o mais paradigmático dos pintores, ao menos na visão cinematográfica. Ele é tudo isso — um problema para a família, um problema para os amigos, e, acima de tudo, um enorme problema para si mesmo. O imaginário popular o consagrou como o louco que cortou a própria orelha e certos fatos de sua vida parecem importar mais do que sua própria pintura. Alçou-se à condição de lenda, com tudo quanto isso tem de grandioso e equivocado.

 

Os filmes sobre ele são sempre os mais procurados, e há pelo menos três em VHS e DVDs, sendo o mais lembrado Sonhos, de Kurosawa, onde é vivido por Martin Scorsese, no episódio do trigal com corvos. É só um episódio, mas a tecnologia permitiu que as imagens das telas mais queridas de Van Gogh comparecessem com a força impressionante que sempre tiveram. Os outros dois filmes são Van Gogh, de Maurice Pialat, francês, e Van Gogh — Vida e obra de um gênio, norte-americano, de Robert Altman. Não são grande coisa, o primeiro pelo terrível vício francês de fazer filmes em que a emoção é descarnada pelos discursos, a secura desdramatizante, as racionalizações, o falatório, e o segundo por ser uma redução de uma minissérie realizada para a televisão holandesa. Nos filmes, o pintor é interpretado por Jacques Dutronc e Tim Roth, respectivamente.

 

Até aqui, porém, não existia em VHS ou DVD brasileiro o maior dos filmes sobre ele, SEDE DE VIVER, dirigido por Vincente Minnelli em 1956. Encontrei-o milagrosamente numa simples banca de revistas, a um preço razoável, e não pisquei para adquiri-lo, temendo que fosse mesmo um milagre fácil de se volatilizar. Traz Kirk Douglas no papel principal, e podem esquecer todos os outros Van Goghs: ele é definitivo, com a barba ruiva, a expressão atormentada e uma dignidade a toda prova.

 

Também o filme é o melhor de todos. Dirigido por Vincente Minnelli, cineasta de musicais clássicos e definitivos como Agora seremos felizes e A roda da fortuna e de dramas como Assim estava escrito e Chá e simpatia, deu muito certo essa produção, e é o único Oscar da carreira de ator de Anthony Quinn — no papel de Gauguin, que, infelizmente, é curto, pois Quinn parece perfeito para encarná-lo e ele sim foi o Gauguin que os Sutherlands não conseguiram ser.

 

É uma coincidência feliz que Vincent fosse dirigido por um Vincente, esse Minnelli que, quanto mais filmes dele se revê, mais se percebe que foi um dos gênios do cinema de Hollywood, infelizmente meio esquecido hoje em dia (o sobrenome só faz com que as pessoas se lembrem de que ele foi pai da cantora Liza).

 

Minnelli tinha paixão absoluta pela pintura de Van Gogh, e o filme reflete isso: nele, a cenografia é superior a de qualquer outra produção, as locações foram escolhidas com dedo de mestre e, de vez em quando, o filme simplesmente pára para exibir telas e os lugares em que se basearam, provocando êxtases a partir do mais simples dos expedientes.

 

O que acontece de bom, nessa produção, é que Kirk Douglas é um Van Gogh contido, a julgar pelos padrões das cinebiografias de Hollywood que, exaltando os "grandes homens", sempre tenderam para o meloso e o piegas. Já que a história de Van Gogh é tão naturalmente tendente à ênfase e à hipérbole, Minnelli a conta com simplicidade, sem excluir a paixão. O cuidado que pôs na cor é um caso à parte: nunca se viu tamanha fidelidade à explosão cromática de Van Gogh em nenhum dos outros filmes. O filme é tão bom que o único pecado da produção é falhar no quesito trilha sonora: a música é de Miklos Rosza, que era compositor para épicos bíblicos e faroestes, tinha mão pesada e faz pensar demais na Hollywood tradicional. No resto, não há filme igual a esse, sobre o "fou rou" (o "ruivo louco", como chamavam Vincent pelas ruas da Provença).

 

Quem leu o livro homônimo que deu origem a esse filme? É de Irving Stone, pouca gente se lembra, mas é ótimo, e foi um best seller que fez muito pela divulgação da arte do holandês. Pois, é fielmente seguido. Mas, quem leu a comovente troca de cartas entre Van Gogh e seu irmão, Théo, e também o belíssimo Suicidado pela sociedade, de Antonin Artaud, encontrará razões de sobra para se deleitar com a produção.

 

É indispensável que os fãs de Van Gogh conheçam esse filme muito elevado e pouco concessivo, a despeito de sua aparente concessão às regras comerciais de Hollywood. É muito melhor que o filme de Pialat, e, por um certo pedantismo, certos fãs de Pintura, arte em geral, acham sempre que os filmes europeus seriam mais refinados e cuidadosos em relação a essas coisas. São, mas são também, em geral, presunçosos e, se franceses, particularmente chatos, discursivos e sem emoção.

 

Minnelli não tem medo de emoção alguma, e alguém que o tivesse não poderia filmar a vida de Van Gogh de modo algum. No filme, discutindo com Gauguin, em cenas que levam ao drama conhecido, entende-se que foi um homem de intensidades, de uma grandeza emotiva que primeiro esmagou a ele mesmo, como se fosse literalmente canibalizado por seus grandes sóis vertiginosos. Tratar Van Gogh com dietas cartesianas é um total pecado. Artaud, chegando às glossolalias em seu texto sobre ele, compreendeu-o muito bem.

 

Ele viu aquilo: a Morte na Luz, como, no filme, conta a uma freira de um manicômio, que se deslumbra com a figura da Ceifeira em meio a um campo vibrantemente amarelo de trigo. "Como pode haver Morte em plena beleza, em plena luz?".

 

Van Gogh, homem de mais sentir que falar, não consegue explicar. E o comovente é que é assim que ele morrerá: colhido pela Ceifeira, ardendo em sol e luz. Num final de uma beleza indiscutível. Na mais luminosa tragédia.

 

 

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O filme: Sede de viver (Lust for Live). MGM: Estados Unidos, 1956.

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abril, 2007