ENTRE MÃES E MENINOS

 

         Ao fundo, a brusquidão. As nuvens que se formavam no céu eram assustadoramente negras. Nuvens atormentadoras que corriam e corriam acima do campo, como dotadas de pés, milhares de pés; eram nuvens-centopéia. O vento que chegava de longe, sem convite, e fuçava, adentrava os cantos dos campos, os cantos das pedras gigantes, das árvores velhas e cantantes, das flores pequeninas, das carcaças esturricadas, ia além das montanhas azuis, levantando e rodopiando folhas secas, trazendo poeira em rodamoinho, anunciando em extensos assovios: aí vem chuva!...

         —... Aí vem chuva! gritou a mãe da janela do quarto. Entra, minino!

         O menino, sentado com as pernas cruzadas, levantou-se. Ele seguia sujo, cabisbaixo, enraivecido pela quebra na brincadeira de criar homens de barro. Suas mãos, lambidas pelo mesmo barro vermelho-nervoso, balançavam-se livres pela cintura. O barro crestava-se aos poucos; mãos e barro agora eram um só. Calmamente, pezinhos descalços e cobertos de terra pisavam a varanda; girou-se, com cuidado, a maçaneta da porta.

         — Minino, entra! — gritou novamente a mãe, apavorada, segurando o bebê no colo — e este quase caindo de seus braços —, sem notar que o outro acabara de subir a varanda da casa.

         — E corre logo pru banho!

         O menino entrou na sala e bateu a porta de leve. De relance, no fundo do corredor, ele viu a mãe seguir direto ao terreiro para recolher as roupas presas à cerca e os lençóis do varal. O cheiro pesado de chuva cumulada chegava perto — sentia-se na pele e no ar esse peso, era como uma tonelada de matéria invisível sobre o corpo.

         — Minino, cê já entrô?

         Ele não respondeu.

         — Minino, cê já tá no banho?

         E nada.

         Algumas janelas da casa começaram a bater violentamente contra a parede descascada da parte de fora. As roupas se levantaram. Os lençóis brancos e quase secos tremulavam belos pelo ar. Era o vento. Era o vento...

         A mãe adiantou-se, esquecendo-se do menino, deixando o bebê no chão da cozinha, perto do fogão de lenha, a empilhar blocos de madeira e carrinhos espedaçados, sem rodas, com apenas um barbante para puxar-lhes arrastado. Ela correu. A porta aberta, ela no terreiro como um polvo e seus tentáculos a caçar as roupas, o coque no cabelo sendo desfeito, cabelos sendo levados com o ar, o grande cesto a engolir as roupas, a cerca, o varal, o bebê no chão, perto da brasa que se extinguia, o vento morno e perfumado de capim silvestre que entrava. Divina tarde de verão! Simplicidade. Que simplicidade.

         — Eu num vô! — de repente ele aponta na porta da cozinha, encarando de longe a mãe.

         — Inda num foi?

         — E nem vô. Não quero toma banho. Quero brincá.

         Um prendedor se desvencilha da mão da mãe. Ela arruma os fios caídos sobre os olhos.

         — Mas cê vai e vai sê agora. Entra. Já!

         — Não.

         O rosto queimado de sol da mãe ficou imóvel. As rugas finas e leves ao redor dos olhos apaziguaram-se como banhadas a camomila. A mãe ficou irritada.

         — Não vem com tentação pru meu lado. Ara, que audácia. Vâmo vê se ocê num vai entrá.

         Ela levantou a mão para ele, em aviso. O menino exasperou-se. Correu por afora, correu pelo terreiro.

         — Eu disse que num vô e num vô.

         A mãe soltou o cesto no chão e foi tratar do outro assunto. Pingos finos começaram a cair sobre o rosto — refrescos sobre a pele. Uma pré-chuva. Uma pré-anunciação de temporal.

         — Vem cá agora.

         E eles começaram a correr no meio dos lençóis. O menino entrava atrás de um lençol ainda úmido, a mãe o perseguia atrás de outro — o cheiro de sabão de coco recendia quando os lençóis eram tocados. A mãe ficou ainda mais furiosa quando reparou nas manchas terrosas deixadas em rastro pela mão barrenta do menino.

         — Óia, lavei isso tudo hoje. Ocê vai apanha de vara. Volta’qui.

         — Há, há, há. Mí péga!

         Ela continuou perseguindo-lhe. Era uma perseguição injusta entre uma mãe cansada e um garoto em pleno impulso infantil.

         — Para di rí feito o Cão! A chuva vai engrossá. Vâmo entrá agora, minino mardito.

         — Não, não, não e não!

         — Seu Cão!

         Corre, corre, corre. A mãe fatigada perdia o fôlego a cada pernada. O vento diminuía sua intensidade, mas a água chegaria as trombas.

         — Cão mardito, tenho que guarda as rôpa! Pur favor, passa pra drento.

         — Mí péga primêro.

         Ela então preparou o bote de polvo e seus tentáculos ao bicho veloz. Ela o olhou nos olhos. As pernas nunca haviam tido tanta força e rapidez. Daquela ponta do varal a mãe alcançou a outra em que o menino estava. Este entrou atrás de outro lençol. A mulher, num ato rápido, desaparecera.

         — Mí péga! Vêm, muié! Mí péga... — gritava o menino. — Mí péga! Mí péééé... (Vup!)

         — Peguí! E muié é a mãe!

         Ela havia conseguido afinal. Grudando-o pelo colarinho da blusa, alcançara-o, puxando-o para o colo. A chuva então começou a cair torrencialmente.

         — Pur curpa sua as rôpa tão moiãno. Minino du Cão!

         Foram-lhe sopapos atrás de sopapos ao pé-da-orelha, nas ancas.

         — Nas anca não, mãe. Pára, mãe. Não bate, faiz farvor. Pára, pára, ai. Nããoo!...

         — Procê aprendê!

         A mãe seguiu com o menino no colo, os cabelos ficando molhados, as mãos barrentas do menino se desfazendo, derretendo, a chuva morninha de verão nas costas. A mãe sabia que aquela audácia toda era coisa de criança, mas tinha a roupa. A roupa... Ela sabia — e sabia até ter a máxima certeza — que aquilo era coisa de menino. Coisa de um menino que não queria parar de brincar. Tentação de menino — e não do Cão. Coisa, coisa de menino. A dela era coisa de mãe, que só queria que o menino tomasse um banho. Que só queria que o menino tomasse um banho. Tomasse um banho. Um banho. Um ban...

 

 

UM CAFÉ

 

         — Um café, um café! — gritou a senhorinha que ia entrando naquele barzinho de esquina. — Um café, um café!...

         Ela entrou e foi se chegando numa mesa de canto, espremendo-se toda, colocando a bolsa de tricô no banco único, ajeitando o corpo gordo naquele pequeno espaço.

         — Pois não. O que a senhora deseja? — perguntou o jovem garçom.

         — Moço, um café, faz favor.

         — Sim.

         E lá se foi ele. A senhorinha esperava, olhando ao redor. O bar estava meio lotado, não muito cheio, mas um cheio significativo para àquela hora daquela tarde de garoinha. Devem ter entrado para se abrigar. Para não se adoentarem. Pingos finos que não param. Frio. Brrr!

         O garçom voltou com a bandeja. Uma xícara branca com café, açúcar e adoçante.

         — Tá quente?

         — É claro. Servimos bem nossos clientes, senhora.

         Ele pousou a xícara na mesa da velhinha e foi logo empurrando o adoçante. Impondo.

         — O que é isso? Quero açúcar. Sou velha, mas ainda posso aproveitar.

         Nos lábios do garçom se esboçou uma risada — uma risadinha com o canto da boca, aquela risadinha sarcástica —, e uma colher cheia de açúcar caiu dentro da xícara.

         — Mais, mais — disse a velhinha. — Como te disse, ainda posso aproveitar.

         — Sim, senhora...

         Ele pôs mais algumas colherinhas, mexeu, e se foi. A velha olhou bem a xícara de café, conferiu para ver se estava mesmo quente, olhou bem para o garçom. É, ele é bem bonito. Tem seus dotes. Um bumbum bem gostoso, pensou a velha. Um bumbum bem gostoso. Seria ele então? (Mordidinha nos dedos.) Pode ser. Será ele? (Mordida violenta.) Sim, com certeza. Huumm.

         Ela pegou a xícara e preparou-se para beber. Aquele líquido doce, ansiado há tanto tempo — pois o médico dissera para ela parar com o café se quisesse continuar mais alguns anos de vida —, desceu com um prazer imenso pela garganta. De princípio deu-lhe até certa ânsia. Líquido doce e novo. Não, novo nem tanto, mas era de uma renovidade instantânea para a velhinha, era aquela velha novidade se refazendo por dentro. Um arroto subiu. Seria a alergia? (E tinha também o diabete.) Se for não tem problema, não duro muito mesmo. Glub, glub, glub, fazia a velhinha. Glub, glub, glub, o canto da boca se sujava. Glub, glub, glub, ela limpava com a manga da blusa os vestígios de café.

         — Ô garçom! — gritou novamente.

         Ele chegou.

         — Sim?!

         A velha corou. Virou o pescoço para o lado, riu baixinho.

         — Posso te perguntar uma coisa?

         — Claro.

         Ela não teve coragem.

         — Nada não. Me traga mais café, sim?

         — Tudo bem. Açúcar?

         — Sim, açúcar;

         Ele voltou rápido.

         — Aqui está.

         — Muito obrigado.

         Ele se foi.

         A velha bebeu com tanta voracidade a segunda xícara de café que nem dera tempo de o garçom cruzar a mesa ao lado da dela. Ela o chamou pela terceira vez.

         — Ôôôô garçom! — grito com uma voz estridente e corajosa. Grito dado com uma voz nova.

         — Siiiim! — retornou ele.

         — Volte aqui.

         Ele voltou.

         — O que quer desta vez?

         — Posso te perguntar realmente uma coisa?

         Ele se irritou.

         — Pode, pode. Pergunta logo que ainda tenho que atender os outros clientes.

         A velha pegou a bolsa, a ajeitou no ombro, e soltou:

         — Está certo. É... você, assim, não quer se deitar comigo?

         — O quê? — espantou-se o garçom.

         A velha baixou o tom de voz, quase em sussurro. Mas no ambiente nem era necessário tanto, ninguém lhes dava atenção. Talvez seria sensualidade?

         — Isso mesmo que você ouviu. E eu ainda pago bem. Aceita?

         — Oh!, pelo amor de Deus, minha senhora — disse ele, exaltado.

         O bar inteiro então se virou para o garçom. Espantadas, as pessoas pensaram que o homem maltratava a pobre senhorinha.

         — Não se preocupe, pessoal. Essa velha maluca já está de saída.

         — Posso te ajudar, senhora? — disse um homem forte e barbudo que estava próximo, que se levantou batendo estupidamente na mesa.

         — Não, não está acontecendo nada de mais, meu filho.

         Então ela voltou a falar com o garçom.

         — Eu pago bem, entendeu? Aceita?

         — Suma daqui! Pervertida. Não precisa nem de pagar o que bebeu.

         O garçom a levantou pelo braço — quantas sobras de pele — e a arrastou até a porta de vidro. As pessoas que lá estavam assustaram-se com a cena, criando de momento certa piedade pela senhorinha.

         — E não volte mais aqui! Guardei tua cara enrugada — gritou o garçom, lançando-a com violência para fora do bar.

         Pela porta ele ainda a observou cruzar a rua, meio cambaleante (pelo diabete ou pelo ato de brutalidade?), ajeitando a bolsa no ombro. Ele viu-a cruzar a rua cinzenta, naquela garoinha fria, subir o passeio e entrar no bar da outra esquina. O garçom deteve-se aos clientes postos às mesas, que já tinham se esquecido da senhorinha. Mas um som ao longe — e deu-se para ouvir muito bem —, mesmo estando lá, atento, o garçom teve a precisão de escutar, em tom de desejo, a voz arrastada da velha que entrava pela porta do outro bar, gritando:

         — Um café! Um café! Moço, por favor, um café! Um café!...

 

 

 
 
 
 
 
 
 

QUADRO

 

         Não mais que nuvens, é tudo o que há. Nuvens que começam a se desfazerem, são algodões ressecados, corpos algodosos se desmontando lentamente, fios e linhas de costura — não acredita? olhe pela janela. E um sabiá-laranjeira macho canta no telhado uma triste canção — para saber que ele existe não é necessário olhar, apenas ouvir. Ouviu?

         Eu sou nuvem —

         Olha.

         O tempo passa.

         Se não ouviu, acabou, não dá mais. Não há mais som, o canto do pássaro com ele voou, o som desapareceu, restaram apenas imagens — o pássaro também é imagem, mas dele eu só conhecia o canto, então ele era som —, muitas imagens, são elas as coisas de se pegar: agora veja! (tudo é de se pegar? talvez, talvez) um sol, o céu, a terra, duas mangueiras, um limoeiro, uma amoreira, um maracujazeiro que se entrelaça, se enrosca, em cima das duas mangueiras, esparramando flores coloridas e frutos amarelos por cima daquela verdância, a flor do maracujá é a flor da paixão, minha avó dizia, da paixão, e há também o meu cão (meu Teodoro malhado), mangas cheirosas pelo chão, algumas amoras também, cá dentro minha mesa redonda, duas cadeiras, vários livros, meus escritos, um piso frio, e mais nada — por acaso preciso de mais?

         — quando te vi, me desfiz um pouco, te reparei e me desfiz por inteira —

         Nós nunca precisamos de mais: o essencial basta.

         — fios e linhas de costura —

         Os olhos que se enchiam quando você se aproximava, a água é salgada, a pele que arrepiava quando, sem querer, me tocava, tudo isso conta, às vezes nem percebemos o que ao outro damos de presente, uma lágrima morna ou gritos raivosos, depende do presente, às vezes não sabemos que para alguém somos alguém. Certa vez gritei doce por dentro, um grito tão doçagudo que me estouraçucarou o corpo, gritei quando certa vez você me pegou de surpresa a ler um livro, é O livro, perguntou-me o título, respondi baixo porque não conseguia erguer a voz, não escutando, levantou a ponta da capa e leu: Orlando. Eu sou Orlando. A travessia do ser.

         — ando em busca de uma recomposição, refazer-me toda, não mais ser linhas esparsas, mas o antigo carretel —

         A minha travessia. Travessia de vida.

         — ser a antiga mulher, a que não te conhecia —

         Quero voltar no tempo e te destruir, Ganimedes — pois agora te nomearei assim, homem de Aquário, esconderei seu nome, e me nomearei Europa, mulher de Touro, eu sou de Touro. Acabar contigo, cavar um buraco e jogar seus restos. Minha forma antiga não te encontrará, poderei viver em paz durante dois mil anos. O que estou dizendo? Não quero mais. Se estiver mesmo lendo o que te foi destinado, e desejar encontrar-se comigo, venha à minha velha casa. Aguardo ansiosa, tenha certeza. Dias, meses, anos, séculos, milênios — pois sou milenar, Ganimedes. E aguardo. São os dizeres de sua Europa.

         — não ser mais nuvem, e sim o que se pega: repara.

 

 

 

(imagens ©enigma | polina | malyalbert)

 

 

 

 

Leonardo Fernandes Paiva (Pedralva-MG, 1989). Foi publicado na antologia Algumas ficções, de autores inéditos da Editora De Leon (2007). Conseguiu boas colocações em concursos literários nacionais. Teve um conto selecionado entre os dez melhores no concurso "Saia do Casulo", edição 2007, do jornal O Casulo.