O que Cuba representa para você, hoje? Pretende voltar a Havana algum dia?

   

Eu me esforço para que Cuba não seja uma representação, mas um fato. O fato de meu nascimento, o lugar projetado de minha morte. Lugar: e como tal invariável, uma vez que sujeito a mudanças; nesse sentido, devo falar de um processo. É lugar geográfico e espiritual, história e a história de uma família (a minha) e de uma vivência (a minha até os vinte anos de idade, mas prolongada no tempo até agora, em que, com quase sessenta anos de idade, continuo fazendo e recebendo essa história). Cuba: recordação e uma linguagem. Recordo, de fato, mais sua linguagem que seus aromas, suas paisagens, suas cores. Uma música muito íntima, espécie de elegia tropical. Os judeus ortodoxos rezam movendo o corpo, às vezes com certa violência, para a frente, para trás e para os lados (esse movimento se chama shukeling). Eu movo o corpo de dentro para fora com dois movimentos aparentemente contraditórios, que procuro dia-a-dia harmonizar: um movimento cubano, outro judeu: posso dizer jocosamente que combino o mambo com o shukeling, não como corpo dançarino, mas como corpo devoto. Uma dupla devoção: pela nação que me viu nascer e pela cultura "outra" que me acolheu desde criança e (ato voluntário) me acolherá na hora de minha morte, morte judia e no seio do que é judaico. Esta amálgama, que implica um desenraizamento diaspórico (o galut que nós judeus conhecemos tão bem) e uma dupla visão do cotidiano (a ancestral, judaica, e a novo-mundista, cubana) tem nutrido há quarenta anos os meus poemas. "Roupa velha" é o nome de um prato cubano feito com uma carne de segunda desfiada: eu sou em meus poemas, em parte, essa roupa velha, caftán judeu (kappoteh, se diz em iídiche, palavra evidentemente espanhola - capote) todo puído e, por outro lado (são os fiapos cubanos) carne saborosa misturada com arroz branco (dupla coloração, espécie de prato mulato). Uma mestiçagem. Mestiçagem que de algum modo define o mundo de hoje, cujo caminho evidente é o pluralismo, tão desejado por mim, a partir de uma perspectiva aberta, de diálogo e tolerância: perspectiva dupla, judia e cubana. A poesia, em todos, se nutre cada vez mais da multi-referencialidade. A poesia se nutrirá cada vez mais do pluralismo ecumênico.

 

O tema do regresso a Cuba é tortuoso para qualquer cubano que tenha vivido a maior parte de sua vida fora de seu país. Tortuoso e doloroso. Falamos desse país com a consciência de que não sabemos nada do país atual. Os jovens cubanos que tenho conhecido, na maioria poetas e intelectuais, são muito diferentes dos jovens de minha época. Por um lado, porque os jovens de hoje mudaram em relação aos de minha época e, por outro lado, porque eles têm vivido uma experiência duríssima que me custa muito compreender (no sentido de que eu não a vivi, como se costuma dizer, na própria pele). Eu os sinto ariscos, distantes, pouco carinhosos, talvez  austeros e secos se comparados com aqueles com quem cresci num país que é puro carinho. Só posso dizer que para mim já não há regresso definitivo; que não regressaria sob as atuais condições de monopólio político (não aceito, essa é minha intolerância, o fanatismo religioso nem o político); que a realidade me diz que aí não represento nada, que minha casa já não está lá, e, portanto, não está em lugar nenhum.

 

 

Seus poemas foram escritos num exílio não apenas geográfico, mas também lingüístico e cultural. Como foi a experiência de escrever em espanhol num país anglo-saxão? A mudança para a Espanha, de certo modo, é um retorno ao berço de seu idioma? 

 

Escrever em espanhol vivendo em Nova York desde 1960, e sobretudo escrever poesia (que exige, em quase todos os casos, escritura na língua materna), foi muito difícil. Perdi muito espanhol, não o falei durante mais de uma década; submergi no inglês, na vida nova-iorquina, numa época em que havia pouca imigração latino-americana. Essa perda foi algo atroz e quando saí desse atoleiro não só recuperei um idioma perdido, mas também trouxe (daqueles fétidos fundos sem idioma para a poesia) uma linguagem renovada, mais consciente, multiplicada e aberta, carismatizada. Meu espanhol é um espanhol marcado: na infância pelo iídiche, na adolescência pelo inglês, na velhice pela irradiação da Morte, que é a carência de idioma, a não necessidade de falar. Um bom amigo, Jorge Guitart, cubano como eu, e como eu muito aberto ao inglês (em seu caso, além disso, é um  lingüista especializado na fala do Caribe espanhol), me disse certa vez que eu empregava as preposições e o subjuntivo, em muitas ocasiões, de um modo nada castelhano, de um modo "estranho". (...) "Suas preposições soam como iídiche, seus subjuntivos à fala agramatical, assintática, desordenada, dos judeus da Europa Oriental que imigraram para Cuba nos anos 20 e 30" (meu pai, cujo espanhol afetou profundamente minha infância). Essa multiplicidade herdada e depois, por desenraizamento, vivida fez com que minha relação com o idioma fosse ao mesmo tempo defensiva (conservá-lo) e ofensiva (atacá-lo, mulatizando-o com espelhos partidos que provêm de outros idiomas: digamos que um pouco joyceanamente). Por um lado, me incomoda muito o mau uso do idioma, sua vulgarização (todos esses solecismos fáceis e cômodos), tendo a um certo purismo; por outro lado, tudo bem, que a língua flua com os tempos, que se expresse como possa, que diga o que tenha vontade. (...) PERSONA, que quer dizer etimologicamente larva e máscara, é também o per-sonare do latim. Pois bem: para mim, o idioma é larva, só que nunca sei que bicho sairá da crisálida; é máscara porque se traslada para os poemas, e todo traslado é mascaramento. E é per-sonare no sentido de eco e eco de ecos, que ressoa interminável nos poemas, nos meus poemas, e sobretudo nos dos demais poetas que configuram a história da poesia, uma história não só de poetas através dos séculos mas sobretudo de poemas, pois estes são a verdadeira história da poesia, seu "per-sonar" verdadeiro.

 

Ter me mudado para a Espanha não significou muito do ponto de vista do idioma. Este é um mau momento para a criação na Espanha. Não noto riqueza espiritual nem vontade de risco (portanto, não há crescimento). O idioma está esclerosado. Aqui gostam de imitar "com raiva" e "com desprezo" o inglês, coisa que lhes parece muito chique e que acreditam ter um grande valor publicitário: imitam mal, muito mal. Todo mundo quer aprender inglês, quase ninguém o aprende, muito menos o ama (isso nem lhes ocorre): o resultado é que o espanhol se torna spanglish, não é "ni chicha ni limonada". Logo haverá uma reação, porque este é um grande país, com uma forte tradição lingüística: apenas está nas mãos de novos-ricos fofos que não entendem nada. A relação com o idioma na Espanha neste momento me parece prepotente, diurna, atônita. Estamos seriamente pensando em ir viver em Miami, porta aberta para toda a América: uma América com países como Cuba, México ou Brasil, onde o idioma, a literatura, a inquietude profunda, o estado de alerta e de alarma ante o mundo atual são fortes, estão vivos: vive-se a ruptura da modernidade, sua ruptura ecológica, visceral, moral. Questiona-se tudo, e, sobretudo, há interesse por tudo. Uma voracidade ecumênica. Na Espanha só se ouve falar da desgastada Europa, uma Europa que, para mim, se converteu em um museu que eles mesmos, se não mudarem, um dia arrasarão (again).

 

(NOTA: o poeta vive hoje em Miami, nos EUA.)

 

 

O que levou você a ser poeta em vez de ocupar-se de profissões mais rentáveis, como senador, magistrado ou gerente de alguma multinacional?

 

Isso é um mistério. Por que, na penumbra da sesta, em meus quatorze anos de idade, em Havana, me fecho em meu quarto e, depois de cochilar e de dar rédea solta a minhas fantasias sexuais, sinto a necessidade de escrever? Não sei, nunca saberei. Certamente, nem me lembro quando começou. Mas recordo que passava as horas metido na cama lendo e escrevendo, que comecei a conceber esse "sofrimento" e essa "distinção" como vocação (de mártir, de santo, de excluído e diferente). E que, num dado momento, minha vida tinha se definido. Sabia claramente aos quinze anos de idade que passaria toda a vida lendo e escrevendo (como as crianças): não só o sabia, ardia de desejos de seguir essa vida, de ir por aí a ler e escrever, de não fazer outra coisa, de tornar minha vida monástica e ser um monge da escritura e da leitura, ler vinte e quatro horas por dia, escrever trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Desde adolescente fui troglodita, omnívoro e grafômano. Um obsessivo.

 

 

Que poetas influenciaram mais o seu trabalho?

 

Influências, mil: todo bom poeta me obcecou, me influenciou em um dado momento. Posso dizer que sou descendente de Lorca, Vallejo, Quevedo, Góngora, Rilke, Brecht, Celan, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé não, Martí sim, Lezama por que não?, de Akhmátova, Mandelstam, San Juan de la Cruz, Pound, Eliot, Stevens, e quem não? Creio que ocorre comigo um fenômeno bastante estranho e que explica em parte o caráter proliferante de minha escritura, seu caudal. Aquilo que em um momento dado estou lendo se converte ipso facto em influência momentânea. Se estou lendo, digamos, Tolstói, sai um poema tolstoiano; se leio Carlos Martínez Rivas, faço um poema rivasiano. A historia de todos os meus poemas está nos livros que fui lendo, dia-a-dia. Neles e, claro, em outros dois lugares: o de minha própria individualidade, com sua história; e o do mistério que não se explica e que forja poemas a partir de um ein sof (imanência; em si) cabalístico.

 

 

Você já escreveu mais de 5.000 poemas, um feito muito raro na poesia do século XX. Aliás, você próprio já definiu sua obra como sendo um verso único, "o maior verso da história da literatura". Fale um pouco sobre o seu método de trabalho: você escreve todos os dias? O que vem primeiro, o tema ou algum verso, alguma palavra? Planeja o poema antes de executá-lo? Você tem o hábito de reescrever os seus textos, ou a primeira versão é sempre a definitiva?

 

Com efeito, escrevi uns 5.000 poemas desde 1970 até hoje. Agora, corrijo todos esses poemas, já que os guardo em meu computador. Assim, em um par de anos saberei exatamente quantos poemas escrevi, pois descartei muitos: só conto os que não descartei. Meu cálculo, ainda algo impreciso, é de haver escrito uns 5.000 poemas, give or take. Como os escrevi? Sem dar-me conta. Nunca me dou conta de que os escrevo. Eles se fazem. E em curtíssimo lapso de tempo. Por longo e complicado que seja o poema que escrevo, raras vezes me toma mais de uma hora. A média são vinte minutos. E eles se fazem (eu os faço?) de uma sentada; quero dizer, de súbito, sem deixar para amanhã nem para depois. Às vezes eu os escrevo caminhando, às vezes em um metrô, às vezes sentado na postura de lótus, outras movendo o corpo como um velho rabino ortodoxo, de pé; escrevi poemas dando aulas, entre uma aula e outra, em reuniões do professorado, falando com minha mulher Guadalupe, em pequenos povoados mediterrâneos, no inverno enquanto nevava ou em pleno verão no calor asfixiante da costa atlântica dos EUA; eu os escrevi cantarolando, ou no maior silêncio, um silêncio na verdade sagrado. Escrevi defecando, purificando-me, dormindo. Cheguei a escrever dormindo, despertando de repente, sobressaltado e tendo de anotar, mais ou menos, os restos de um interminável poema. E, no entanto, apesar de sua dificuldade, não creio que seja possível dizer que minha poesia é incoerente. Difícil, sim; incoerente, não. Vou polindo e entalhando antes de publicar (é o que faço agora, aproveitando o "ócio" da aposentadoria (jubilación), essa alegria (júbilo) de não ter mais que ir ganhar o meu pão no dia seguinte). Poemas sem planejar, sempre inesperados. Poemas escritos, se não todos os dias, ao menos com um ritmo cuja periodicidade pode, estatisticamente, conhecer-se: mais ou menos um poema a cada dois dias. Assim como o pintor pinta todos os dias, o escultor esculpe todos os dias, o romancista escreve diariamente, eu, poeta (?), faço poemas todos os dias, e por escrito.

 

 

Ao contrário de outros poetas contemporâneos, que privilegiam a síntese, a concisão, os seus poemas são longos, pletóricos, recordando por vezes Góngora. Porém, o seu discurso não é linear, convencional; você cria uma sintaxe própria, em que a elipse e o uso do parêntesis quebram a lógica rotineira. Você faz pequenas colagens verbais, associando idéias conhecidas para criar o desconhecido, o sugestivo, o mutável. Fale um pouco sobre sua técnica de composição. 

 

Talvez esses poemas longos que caracterizam uma parte de meu trabalho não sejam mais do que superposições de poemas curtos, um cordão de haicais. A palavra sutra tem em sua origem relação com sutura e ambas com a palavra fio. Rezar (sutra) é suturar com fio a ferida, estancá-la. Talvez esses poemas não sejam longos senão na aparência. Por isso gosto de dizer que meus poemas longos são brevíssimos, já que se compõem de um só verso. Pode ser longo, pode ocupar inclusive três páginas, mas não deixa de ser um só verso. Nesse sentido, esses poemas são mais breves que um texto de Ungaretti. Em parte gracejo, claro, mas estou convencido de que tudo se constrói com base em tijolos, de modo que esses longos poemas são edifícios compostos por numerosos tijolos, melhor ou pior cimentados. É curioso que não se costuma considerar, na métrica, a existência do poema de um só verso. Há exemplos na história da poesia, mas passam desapercebidos. Já o dístico ou parelha tem existência, o poema de um só verso, não: como se o um só, o uno, só pudesse ser associado à presença divina (no judaísmo há uma tradição ortodoxa que chama a Deus pelo nome de Uno): isso não nos diz respeito, parece dizer a métrica, isso não se faz. Bem, eu o faço, descobri em mim essa necessidade, a de estender o verso solitário ad infinitum, como se através dele buscasse a esse Uno que é Deus: meu verso nomeia constantemente, não cessa de nomear, como se buscasse encontrar por acaso o nome do Verdadeiro, o nome do Inominável. Sei que é impossível, mas também é impossível deixar de fazê-lo.

 

 

O seu vocabulário é extremamente rico. Você utiliza neologismos, arcaísmos, expressões coloquiais próprias de Cuba, nomes de plantas e árvores e - o que fica muito evidente, lendo seus poemas - termos próprios dos ofícios do sapateiro e da costureira. Segundo Eduardo Milán, você procura "uma origem que não seja de ouro", e o resultado é uma autêntica mitologia pessoal. Sua pesquisa vocabular é resultado de suas experiências pessoais?

 

Uma riqueza de léxico em espanhol é algo natural em um idioma que, além de sua enorme riqueza, o segundo quantitativamente depois do inglês, tende à utilização sinonímica, ao adágio e ao provérbio, à amplificação retórica, à enumeração de modo consubstancial e sem forçar: o espanhol se regozija no espanhol, goza cativando-se no espelho da retórica, desfruta a empolação, rouqueja e gargareja sons como o jota ou o erre, dos quais desfruta tanto que, estou seguro, inconscientemente, o falante do castelhano busca palavras que contenham tais sons. Some-se a isso o fato de que não existe um espanhol, mas uma vintena de espanhóis: primeiro, na península, onde o idioma se enriquece pelos acréscimos de cada região, província, cidade e inclusive povoado; e depois a América: apenas o México dá para uma vida de aprendizagem e enriquecimento léxico. Duas culturas cruzadas, interpenetrando-se, cada uma desconfiando da riqueza própria e da alheia, tomando palavras emprestadas, roubando-se às escondidas perífrases e modismos, refazendo-os para dissimular a simbiose, a ansiedade da influência ao pedir emprestadas as ditas palavras. Essa complexidade, em meu caso, se exacerba por ter crescido em dois idiomas diametralmente opostos (o castelhano e o iídiche). Tenho raízes no espanhol de Cuba, mas com uma consciência precoce de que esse espaço lingüístico não era unívoco nem monocórdico, que fora do perímetro da fala da Ilha (que por sua vez se compõe de várias falas, pois varia de acordo com as províncias, época, classe social, grupo étnico etc.) existia, aguardando-me, um idioma duplo, triplo, polifônico e multivalente. Aos vinte anos, a expulsão: e com esta, a entrada em cheio no Mar Oceânico da língua. Agora converso com gente que fala como porto-riquenho, dominicano, peninsular, andaluz, mexicano, colombiano, argentino ou que fala spanglish. Em vez de proteger minha raiz lingüística cubana, o que faço é aceitar o ladino diaspórico, o esperanto que recebe de todos os idiomas a mestiçagem de vocabulários. E aprendo, incorporo, torno-me vasilha porosa e receptáculo. Veja-se (isso foi assinalado pelo crítico cubano Gustavo Pérez-Firmat) a enorme quantidade de receptáculos que aparece em minha poesia: vasilhas, pratos, bacias, gamelas, tigelas, escudelas, ânforas, cálices (enfim, toda a concavidade da Mãe): deve haver algum motivo. Converti-me em uma semi-esfera disposta (desejosa) de receber o maná de todos as linguagens. Minha relação com o espanhol no início do exílio se viu reduzida pelo inglês; sentindo-se ameaçada, reagiu como mãe protetora, opondo-se ao inglês, mas, ao mesmo tempo, dado o assédio da cultura anglo-saxônica em que vivia e tenho vivido boa parte de minha vida, aquilo enriqueceu meu sentido do idioma, retorcendo-o, abrindo-o, transformando-o.

 

A transformação, como bem diz Eduardo Milán, procura uma origem que não seja de ouro. Como poderia sê-lo? Minhas origens são obscuras, minha identidade indecisa, minha filiação questionável. Falo como minha mãe ou como minha avó? Sinto em espanhol ou em um substrato iídiche, rabínico, totalmente alheio a esse espanhol? Estou fundamentado na fala decomposta do pai ou no prístino idioma da mãe? Mamo espanhol no regaço materno ou nas empregadas que tagarelavam em casa? Resisto à fala das ruas ou protejo um conhecimento do idioma mais "elevado" e "culto" dos livros que comecei a ler aos treze anos de idade na penumbrosa habitação da rua Estrada Palma, em Havana, Cuba? Eu o protejo ou me protejo? E de quê? Todas estas perguntas são retóricas: é evidente que participo de todos esses elementos na hora de expressar-me. Assim, o vocabulário enriquecido torna-se arma de ataque e contra-ataque, uma vez que é instrumento: utensílio de alfaiate, apeiro de lavrador, ferramenta de mineiro.

 

O menor ganha altura, é maior. Bravo. Já era hora. Já era hora de enfrentar a história com a divergência, a miscelânea, "o arroz com manga" e o solto rebolado de todas as formas de expressão. Aqui está a verdadeira democracia do futuro, que se sustenta na aceitação de todas as falas, sem reprimir nem desprezar, sem supremacias idiotas. Quando a linguagem se abrir a todas as tendências morrerá de um golpe o fundamentalismo, o totalitarismo, nós riremos nos narizes dos politicastros castradores e castrados, a castrada militância dos ignorantes que pretendem redimir os ignorados, sendo eles os primeiros a ignorar.

 

Lembro-me que, desde criança, detestava a má retórica, o dizer fácil e pomposo, a falsa exuberância, o barroco mesquinho. Eu o ouvia nos discursos políticos, nas normas escolares, no lixo radiofônico e televisivo, e isso me tirava do sério, estimulava em mim fantasias criminais. Sonhava em acabar com a casta dos oradores e dos eloqüentes vácuos, e em seu lugar ver instaurar-se um mundo de poetas, escritores maiores, gente respeitadora do peso de cada palavra, conscientes de que cada palavra é um presente de Deus, um alto dom.

 

A fim de escapar à cacofonia ambiente, pus-me a ler os clássicos e os modernos, pus-me a escrever.

 

 

Em sua poesia há referências a temas e paisagens do Oriente, em especial da China e do Japão. O seu interesse por essas culturas é estético ou também filosófico? Fale um pouco de seu trabalho de tradutor de poesia medieval japonesa.

 

Kipling diz, mais ou menos, que "East is East, West is West, and the two shall never meet". Isso já não vigora. Hoje, mais do que nunca, a abertura leva também ao reconhecimento do "outro" oriental, outridade que é mesmidade, bifurcação nutritiva que alimenta e recompõe os complexos fios das nacionalidades, culturas, etnias e religiões (aí está, por exemplo, o fenômeno dos JUBU, Jewish Buddhists (Judeus Budistas), com sua marca de extravagância bobalhona e sua marca de profunda seriedade. Nesse caldo há e tem havido de tudo, porém, mais que tudo, há futuro: e eu tenho vocação de futuro, tendência idealista e às vezes utópica. Assim, vejo na conjunção Oriente/Ocidente não só um retorno às origens, mas sobretudo uma confluência de vigorosas riquezas que augura um mundo melhor e uma escritura muito mais rica (escritura que irá tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita e que será tanto horizontal como vertical).

 

Não posso escrever se minha emoção mais íntima não se torna voraz, totalizadora, carnal: quando comecei a entrar no mundo oriental descobri que algo muito forte, e ao mesmo tempo muito delicado, encarnava em mim. Por isso entrei nesse reino: porque senti sua encarnação; e que essa entrada me levava a uma mudança profunda, a uma radical e muito suave transformação. Li, pensei, padeci a transverberação laica: e dessa experiência saíram montões de poemas, como só costuma acontecer comigo. Integrei parte de minha vida à prática zen (sem mestre, por conta própria: o que é um erro; como fazer psicanálise sem psicanalista?), procurei conhecer esse mundo, sua arte, sua poesia, seu modo de encarar historicamente a vida material e a vida espiritual. A rigor, recuperei aspectos tranqüilos de meu corpo, vivências interiores foram apaziguadas: e isso me disciplinou mais. Eu vinha de uma fase de muitas leituras medievais, de sonhos e fantasias monásticas, e tinha passado por uma segunda fase de leituras cabalísticas, de regresso ao judaísmo em seus aspectos mais árduos e complexos. Estava, como se costuma dizer, feito pó. O Oriente me fez subir à tona: limpou certos textos, disciplinou minha mente, moderou o corpo, redirecionou a energia erótica. Tudo isso, a partir da sensação de algo vivo, tem feito com que eu escreva uma série de poemas mais lacônicos, mais silenciosos, que são como a membrana interior que protege toda minha outra poesia, barroca, retorcida, verbalizadora. O que dizer, senão que meu afã é espiritual? O que dizer senão que, traduzindo os japoneses (Saigyo, Soseki, Akutagawa, Mokichi, por via indireta, já que os traduzi do inglês) minha vida se tornou "outra"? E, é claro, isso tinha de se refletir na poesia que faço.

 

 

Não está na hora de haver um maior intercâmbio entre os poetas e intelectuais da América espanhola e do Brasil?

 

Fiz estudos graduados de literatura luso-brasileira e fiquei impressionado com a riqueza extraordinária dessa literatura. Com os anos, e pelas circunstâncias, fui afastando-me do idioma português (os brasileiros sempre me diziam que eu tinha "sotaque português" e os portugueses sempre me diziam que "o senhor é brasileiro") assim como de suas literaturas. Porém, guardo o sabor de ter lido autênticas maravilhas nos poetas, narradores, autores de viagens marítimas etc., dos portugueses e dos brasileiros. O impacto que causou em mim, aos 26 anos de idade, ler sobre a Semana de Arte Moderna de São Paulo foi tremendo. Reforçou a minha noção do ano milagroso de 1922 ao qual não contribuíram apenas Eliot, Vallejo, Joyce. Esta é uma zona de meu (des)conhecimento que quero remediar, à qual quero voltar: reaprender o português, ler seus escritores, e sobretudo os de hoje, que na maioria desconheço, como eles a nós. Ainda tenho a impressão de que no Brasil se conhece muito melhor o que fazemos nós, os hispano-americanos, do que nós aos brasileiros: e isso graças a escritores como Floriano Martins, Jorge Schwartz, Josely Vianna Baptista e muitos mais. Creio que é hora de estendermos um arco cordial, diferenciador e fraternal, entre nossas literaturas. Seria bom para a poesia em geral e, mais concretamente, para aquela que se faz nestes dois idiomas, de tronco comum e ramo distinto.

 

 

Qual sua opinião sobre a atual literatura cubana?

 

Nós, cubanos, temos muito a contribuir na hora de dar forma a esta engrenagem. Cuba conta hoje, dentro e fora da Ilha, com uma plêiade de poetas em verdade extraordinária e que ultrapassa a rica tradição que parte do século XVIII e chega, digamos, a Lezama e a Piñera. Depois deles, de Baquero, de Eliseo Diego, de Arrufat, há um grande número de poetas jovens (para eles, eu já sou um avozinho) que estão experimentando com tudo: a sintaxe, o multiculturalismo, a meta-referencialidade, o poliglotismo. Gente diaspórica, marginal, materialmente pobre, mas rica espiritualmente. A eles corresponde a tarefa de unir poemas, poetas, poesia de todas as esferas: e, claro, um primeiro passo lógico, saudável, é a cooperação entre poetas de fala portuguesa e espanhola.

 

 

Tradução: Claudio Daniel e Luiz Roberto Guedes

 

 

 

 

(Publicada, originalmente, no Suplemento Literário de Minas Gerais)