A morte promete jardins

Este teu brilho de agora
são cacos — rastros errantes
que persistem na busca inútil
da tua primeira semente.

Este teu brilho de agora
é a sombra do que foste,
e se ainda és girassol celeste
é que a morte promete jardins.

 

A sagração do pecado

Não importa Tróia ou Esparta,
eu quero a mulher de Menelau
— escultura que não moldei.

Não importa se traição,
eu quero a mulher de Urias
— salmo que não cantei.

Não importa Sodoma ou Gomorra,
eu quero a mulher de Lot
— sal que não suei.

Não importa se labirinto,
eu quero a mulher de Teseu
— novelo que não anelei.

Não importa se blasfêmia,
eu quero a mulher de José
— ave que não voei.

Ah Maria Madalena,
só tu me tiras deste madeiro
e me libertas o desejo.

 

Cantiga de amor

I

Por que não me acompanhaste?
Por que não me acompanhaste
se sabias que sem ti o alvorecer não faria sentido?
Que o brilho das estrelas ficaria desnutrido
e seríamos mesmo como ovelhas desgarradas?

Por que eleger outros interesses que não os do amor?


II

Por ti fui capaz das metáforas mais exageradas,
fiz chover versos de gerânios sobre o reino
e bêbado de paixão padeci na amurada do teu castelo
e tangi a lira numa toada que resplandeceu
por todo reino durante uma década.

E as extravagâncias se sucederam:
arranquei todas as pedras do reino com a boca
e levantei um altar para todos os dias
agradecer aos deuses o presente
de contemplar tua face — verônica do amor —
e sentir a vida transbordando de teu hálito.


III

És tanto e tudo e como dói a tua ausência.


IV

É certo que ainda comungaremos dos cânticos dos êxtases,
está escrito na nossa história — os oráculos não se enganam.
Então, vou caminhando pelos tempos
até o dia em que minhas lágrimas encontrarão o teu sorriso.

 

Caramujos

Os caramujos da Ribeira do Traipu
mugem em um tempo que se foi.

Os caramujos eram os bois da minha boiada.
Quando os invocava era prontamente atendido,
mas eles tinham lá seus nomes e matizes
(e ali já estava o poeta batizando as coisas):

e vinham Manjerona, Paixão, Diamantina,
Fachada, Chuvisco, Carnaval, Meia-Noite,
e vinha toda a vacaria de caramujos
encantar aqueles dias com seu leite de sonhos.

De repente, dava um redemoinho
na minha cabeça de vento
e já era outra história:

Ivaldo, numa atitude inaugural,
— possível apenas para quem goza
da sabedoria dos cinco anos —
bradava para que fôssemos
ouvir o mar nos caramujos.

 

Dois momentos

Entrava no poema como quem entra num bar
e sai bêbado caindo pela falta de chão.
A poesia era um buraco maior que o buraco.

Entro no poema como quem come cuscuz
e sai dia afora para encarar a existência.
A poesia lava os pés e as lágrimas.

 

Fiat lux

Era uma vez o escuro,

e fez-se a luz,
a tênue luz de um candeeiro,

então questionei:
— Mal se divulga um vulto?

O candeeiro flamejou:
— Para quem está no breu
qualquer lampejo é alumbramento.

 

Insônia

Em cima do telhado da infância
Tem um chato de um pavão
Que não me deixa dormir
                                  assossegado.

 

Lajedo e lua

A pedra que piso diz do silêncio
e das águas que molham as plantas dos pés
para que os arvoredos dos passos possam brotar.

A pedra que olho diz do espelho
e da luz que persigo a cada instante,
como palha que busca ser brasa da eterna fogueira.

 

Lar

Sim, sinto o cheiro do ambiente:
terras torradas pelas brasas do Sol.
Este é o lugar onde me conjugo.

No meio da tarde bato as asas,
saio por aí no vôo de um concriz.
Dessas plagas sou semente e fruto.

 

 

 

Memória

Gosto de subir no telhado da casa
e olhar para dentro do quintal,
é lá que estão o menino e a arte.

A incompreensão vestiu o menino.
Ele se exibiu para o azul do dia
e para os olhos daquelas línguas.

O infante, dentro da sua solidão,
encontrou a estrada e caminhou
e enveredou por tantos descaminhos.

Quantas vezes dormiu ao relento?
Quantas vezes tombou e caiu?
Quantas vezes seguiu por miragens?

Ah essas cicatrizes, esses calos
pelo corpo e pela alma do menino,
ah, esse deserto de ilusão.

Mas assim como existe a sede,
existe a imensidão do mar,
e as coisas vão à balança.

E o que é viver cada dia
senão beber da água
e entender os merecimentos?

Ouço vozes — muitas vozes —
dentro de mim mesmo,
todas dizem que é preciso prosseguir.

 

Registro da fala do silêncio

O que mais tem falado em mim é o silêncio,
mas um silêncio plural — de fogo —
que com sua língua escarlate abrasa as palavras
e as queima antes de serem.

Um silêncio de lá, de longe — das plagas interiores —
que fala o tempo todo sem dar nome ao dito.

Em sonho é imagem: e vejo, inebriado,
a sua cara — semblante formidável:
tão formoso quanto pode ser um deus.

O silêncio, este que fala e de que tanto falo,
é um hieroglífico poema,
e estes versos: tradução e codificação.

 

Vanitas

A tua face é uma máscara de cosméticos.

Os teus cabelos sofrem em fornos infernais
e sonham com o dia em que deites o cabelo.

A tua cara é um salão sem beleza.

 

(Do livro A terceira romaria, Prêmio Capital Nacional 2005 de Literatura,
do jornal O Capital, de Aracaju, Sergipe.)

 

(imagens ©m korb)

 

José Inácio Vieira de Melo nasceu em Olho d'Água do Pai Mané, povoado do município de Dois Riachos, Alagoas, em 16 de abril de 1968. Publicou os livros Códigos do silêncio (2000), Decifração de abismos (2002) e A terceira romaria (2005). Publicou também o livrete Luzeiro (2003) e organizou Concerto lírico a quinze vozes — uma coletânea de novos poetas da Bahia (2004). É jornalista e co-editor da revista de arte, crítica e literatura "Iararana". Atualmente coordena o projeto "Poesia na Boca da Noite", em Salvador, onde mora.