*

 

Abri gavetas,
organizei diários,
rasguei papéis.
Enchi um copo duplo de palavras picadas
e desconexas.
Quando percebi, estava cheio de amizade.

 

 


 

 

*

 

Que aflição acordar em pleno
sol do meio-dia e não ter
um interruptor a interromper
a sua ausência em mim.

 

 


 

 

*

 

Esperar é como tecer,
incansavelmente,
um fio invisível.

 

 


 

 

*

 

Não quero dizer para você o que sinto,
mas meus olhos me traem,
como se tivessem o direito
de me despir em público.

 

 


 

 

*

 

O dia está azul
e eu completamente nuvem...

 

 


 

 

*

 

Leio
Pagu
meio
apavorada
por
uma
alvorada
minha
que
não nasce.

 

 


 

 

*

 

Ela adormece silenciosa,
viagem que não posso acompanhar.
Ao acordar, morrerei de ciúmes,
por não saber por onde esteve,
nem com quem.

 

 


 

 

*

 

A nudez me assalta.
Olho meu corpo e não me reconheço.
Estão em mim tudo o que me forma,
menos a forma.
Foram-se os meus anos,
os meus segredos,
a minha história.
Resgates que não posso mais fazer,
porque a memória falha:
câmera sem filme,
retrato velado,
vôo cego.

 

 
 
 
 
*
 
Que tempo é esse que habito?
Do alto, olho a cidade iluminada...
Quantas pessoas estarão fazendo o mesmo?
Que tipo de pensamentos carregam?
Que rosto estará espreitando a vida?
Existências atravessando o ar...
avião entre nuvens,
um vôo por instrumento,
a tatear a rota.
Viver não é adivinhação:
a máquina pode parar
mesmo que o combustível
não tenha acabado.
 
 
 
 
 

*
 
Uma cidade adormecida
não vê a sua noite.
Luzes contrastam com estrelas
chão com o céu
silêncio com o firmamento.
Sobre a cama você sonha,
enquanto eu engulo a madrugada.
 
 
 
 
 

*
 
As flores murcham no vaso
enquanto assisto, impassível.
O tempo tem estranhas maneiras
de reforçar a nossa transitoriedade.
 
 
 
 
 

*
 
Um vaso
meia água
qual bandeira em dia de luto.
 
Um vaso
meia água
flores que foram terra, murcham.
 
Viajaram 100 km,
de ônibus,
para decorar esta casa.
 
100 km nas mãos de minha mãe.
 
Fosse fotografia:
visão do paraíso.
 
 
 
 
 

*
 
Galos e grilos cantam nos quintais.
A praça está vazia...
Um homem dorme no coreto e a carroça dos pães
passa lentamente.
É madrugada...
Uma lua minguante se contrapõe com a estrela,
no negro céu da minha terra.
O bebedouro dos cavalos murmura um barulho interminável,
meio lágrima,
meio rio,
indo embora...
Vontade de chorar e só.
 
 
 

(Do livro Metade de Mim que Não Sei Onde)
 

 

 
 
 
 

*

 

O seu olhar vazou
pela janela
feito rio em dia de enchente
...

 

 


 

 

*

 

O sal salta do azul
inunda o ouvido
de silêncio e dor.
O peito,
colchão d'água,
não se aquieta.
Quando o telefone tocar,
talvez emudeça.

 

 


 

 

*

 

Dois acenos
Entre eles, um rio
Ponte quebrada

 

 


 

 

*

 

Rua de pedra
Um tapete de flores
Morte em rosa

 

 


 

 

*

 

O vento sopra
Sonho seca no varal
Um sono alvo

 

 

 

(imagens ©imogen cunnungham)

 

 

 

 

 
 
 
 
Josiane Giacomini Alves é jornalista por formação, atividade que exerce atualmente em Campinas, no jornal Gazeta do Cambuí. A profissão foi a forma que encontrou para ficar mais próxima das palavras e, conseqüentemente, da poesia (que começou a escrever lá pelos idos de 1976, em Aguaí, cidade onde nasceu, no interior de São Paulo). Quando completou 40, resolveu lançar seu primeiro livro, Metade de Mim que Não Sei Onde (Campinas: Editora Komedi, 2002). Neste momento, prepara nova fornada de poemas com base essencialmente em haicais (técnica que aprendeu em oficina com Alice Ruiz). Eventualmente, escreve contos e crônicas, herança da Cásper Líbero, faculdade onde cursou Comunicação, em São Paulo.