©toby maudsley
 
 
 
 
 
 

Num longínquo país chamado Índia, as comemorações "natalinas" deste ano iniciaram-se em primeiro de novembro, que é quando se celebra o Diwali, Divali ou Deepavali. Nesta, também conhecida por Festa das Luzes, Lakshmi é a deidade central, convidada a entrar nos lares. Deusa da boa sorte e riqueza, é atraída pelos ornamentos e lamparinas de óleo acesas nas casas. As crianças recebem presentes e inigualáveis refeições se realizam entre familiares.

 

Compareci a uma destas festas em São Paulo  e aproveitei a presença da deusa para registrar um pedido de ano novo — arrumar, antes do Natal, uma semana de férias só para mim, longe de toda a ocupação cotidiana e tributária.


 

Dia Um - A partida

 

Encharquei os vasos das plantas, mudei a mensagem da secretária eletrônica, abasteci com um coco suculento meu bom Ganesha e, na correria para não perder a carona, sai de casa sem ter certeza de haver trancado a porta. Era o próprio metropolitano estressado num domingo de sol.

 

Meu pedido de descanso tinha entretanto algo de ousado: submeter-me às técnicas de purificação do yoga — kriya — sobre as quais falaremos oportunamente, fazer jejum e permanecer em silêncio. Escolhi para o meu retiro um local afastado, com natureza exuberante e um grande lago por perto, onde se realizam ainda três meditações diárias — www.nazareuniluz.org.br. Tinha certeza de que ali ninguém estranharia a minha repentina mudez.


 

Dia Dois - O jejum

 

É preciso  conhecer bem o seu organismo antes de se lançar nesta prática, ou talvez consultar um médico naturopata. O Dr. Nisal, indiano conhecido por tratar seus pacientes com jejuns, deu-me carta branca na minha última consulta, há dois meses.

 

Pode-se ainda recorrer a livros que expliquem o processo passo a passo — e eu recomendo o inestimável Você sabe se desintoxicar, do Dr. Soleil (ed. Paulus). Basicamente, o livro explica o jejum como uma oportunidade de o organismo descansar e se limpar.

 

Sinto um leve mal-estar por falta dos excitantes (açúcar, sal e temperos — ai, meu curry), mas nada que a água com limão e mel que tenho tomado não resolva. Com muito ar puro e sol, este dia foi relativamente tranqüilo.

 


Dia Três - O curso básico de faquirismo

 

Tal como ensinado atualmente no ocidente, com raras exceções, o yoga não agrada aos patrícios. Na maioria das vezes, resume-se a uma ginástica corporal que tem atraído praticantes interessados em enrijecer músculos e perder barriga. A mídia, atores de tevê e modelos, além dos contorcionistas de plantão, colaboram com esta imagem, curiosamente o oposto do que deveria ser. Yoga virou sinônimo de gente bonita, jovem, torneada e bronzeada.

Entretanto, num passado não muito distante, o yoga era visto por estas bandas como um misticismo religioso de praticantes esquálidos que dormiam em camas de prego. Também equivocada, esta imagem — que remete ao antigo faquirismo — não faz parte do yoga. A mortificação do corpo é fruto de tendências religiosas posteriores (cristianismo e islamismo, embora na Índia já existissem os ascetas) e a própria palavra "faquir" não é indiana, vem do persa.

 

Curiosamente, no Aurélio, encontro a seguinte definição: "faquir S.m. 1. Hindu mendicante, em geral muçulmano, que vive em ascetismo religioso. 2. Indivíduo que se exibe, deixando-se picar ou mutilar, agüentando jejuns rigorosos, sem dar o menor sinal de sensibilidade". Fico me perguntando como é ser "hindu, em geral muçulmano", algo como "umbandista, na maioria das vezes, testemunha de Jeová".

 

O termo kriya vem da mesma raiz sânscrita de karma (ação) e significa algo como "aquilo que deve ser feito". Basicamente entendido como limpeza, kriya tem como função purificar o corpo antes de práticas mais avançadas de yoga. O próprio swami Kuvalayananda (Lonavla, Índia) dizia que o aspirante que ainda não obteve uma "saúde verdadeira do corpo e da mente" deveria primeiro iniciar um curso de kriya yoga.

 

Neste terceiro dia de sol, além das meditações e práticas de asanas, dediquei-me com afinco a cinco kriya:
 
a) Jala Neti -  coloca-se água morna e levemente salgada nas narinas, utilizando-se de uma canequinha parecida com uma lâmpada de Aladim. A água entra por uma narina e sai pela outra. As crianças adoram ver isso!;
b) Sutra Neti - enfia-se um fino cateter de borracha por uma das narinas e puxa-o com os dedos, pela boca, numa espécie de "fio dental nasal";
c) Nauli - considerado o mais importante dos kriya. Partindo de uddiyana bandha, que é quando o abdômen é sugado ao se expandir o peito, sem ar (o praticante não respira), isola-se os músculos do abdômen num movimento ondulatório, da direita pra esquerda e vice-versa. É mais ou menos como fazem as dançarinas do ventre, só que na horizontal (!). Este exercício abdominal serve para limpar o cólon e é uma excelente massagem para os órgãos internos desta região;
d) Basti -  introduz-se água morna no cólon através do reto, para lubrificar e limpar as paredes intestinais. Eliminada imediatamente pelo ânus, esta água traz consigo dejetos fecais. Pratica-se com nauli.
e) Trataka - neste kriya, olhamos fixamente a chama de uma vela — ou outro objeto — sem piscar. É normal lacrimejar. Além da limpeza ocular, trabalha também com questões de ordem interna e emocionais.

 


Dia Quatro - Os vícios

 

A chuva nos amanhece. Acordo indisposto. Isolado, sonhei na última noite com a cidade grande, cinemas, restaurantes, metrôs, etc. Em comparação ao primeiro dia, sinto minha mente muito mais tranqüila, ressentida, porém, da falta de distrações — a todo momento ela tenta sabotar minha proposta e por um instante quase me convence a desistir e voltar.

 

Recentemente, assisti ao filme Quem somos nós? (What the bleep do we know? EUA, 2005), sobre física quântica, e o que mais me chamou a atenção foi a constatação de que somos viciados em nossas emoções. O corpo começa a produzir determinadas substâncias, assim que estamos para nos conectar a uma emoção conhecida: pode ser a companhia de alguém, uma balada de fim de semana ou mesmo a visão de uma torta de chocolate. Para minha surpresa, descubro-me no meio de uma crise de abstinência!

 

Além dos habituais nauli e neti, percebi que era o momento para dois novos kriya:
 
f) Vamana Dhauti - toma-se dois litros de água morna, levemente salgada, até encher o estômago. Insere-se então os três dedos médios na garganta e vomita-se completamente a água. Elimina o excesso de bílis e fleuma;
g) Vastra Dhauti - engole-se uma faixa estendida de tecido fino, de quatro dedos de largura e até sete metros de cumprimento, e ao chegar ao final, deve-se puxá-la para fora, pela boca. Remove o excesso de mucosidade das paredes do esôfago e estômago.


 

Dia Cinco - O silêncio pleno

 

A chuva se alterna com raros períodos de sol. Desisto de ir ao lago. Amanhã chega ao local um pequeno novo grupo de hóspedes e percebo então que o meu retiro termina.


 

Dia Seis - O Buda

 

Depois da meditação habitual em grupo, opto pelo desjejum: as fatias do mamão mais saboroso que já comi! Um rapaz me confessa já ter ficado vinte dias em jejum, inspirado numa australiana que alega não comer há muitos anos. Não sei se isso é possível ou saudável, nem cabe aqui esta discussão, mas a idéia de se consumir menos num mundo que varia entre o excesso e as privações me parece mais equânime. Afinal, nos EUA, as pessoas consomem em média seis vezes mais proteínas  do que necessitam, enquanto se multiplicam os milhares de subnutridos na Índia.

 

Sinto-me mais disposto, com menos sono (nem o desejo da habitual siesta latina que adotei se manifesta) e, obviamente, com o organismo mais limpo e reorganizado. A cabeça leve — pelo silêncio interno e externo — e o corpo relaxado. O fato é que, longe de ser uma penitência para expiar as culpas, o jejum nos permite uma boa reavaliação dos nossos apegos — e não só os alimentares.

 

Gandhi muitas vezes se utilizou do jejum para convencer seus oponentes e/ou partidários e, recentemente, um religioso brasileiro mobilizou o país e o governo, ao jejuar contra a transposição de um rio. Jesus, o mais famoso de todos, jejuou em oração por quarenta dias e noites, dando um grande exemplo ao mundo. Mas dentre todas as histórias que conheço, o pragmatismo do diálogo deste Buda criado por Hermann Hesse — ainda como Sidarta, o príncipe indiano — faz dela a minha preferida:
 
"Sidarta encaminhou-se ao comerciante Kamasvami (...)
— Fiquei sabendo — começou o comerciante — que és um brâmane erudito, mas procuras um emprego no comércio (...) E qual será o bem que tu poderás oferecer? Que aprendeste? Que sabes fazer?
— Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.
— E (...) para que serve o jejum?
— Para muita coisa, meu caro senhor. Para quem não tiver nada o que comer, o jejum será a coisa mais inteligente que se possa fazer. Se por exemplo, Sidarta não houvesse aprendido a suportar o jejum, estaria obrigado a aceitar hoje mesmo um serviço qualquer, seja na tua casa, seja em outro lugar, já que a fome o forçaria a fazê-lo. Assim, porém, Sidarta pode aguardar os acontecimentos com toda a calma. Não sabe o que impaciência. Para ele não existem situações embaraçosas. Sidarta pode agüentar por muito tempo o assédio da fome e ainda rir-se dela. É para isso, meu caro senhor, que serve o jejum".

 

 

 

 

dezembro, 2005
 

panditgaram@yahoo.com.br