©david buffington
 
 
 
 
 

 

Bush venceu. Mau sinal. Gostaria de começar a escrever este artigo com um mínimo de esperança, mas o resultado das eleições norte-americanas e o que isso representa para o mundo deixou tudo obscuro. Os eleitores preferiram a guerra. Quando Bush diz "Ou vocês estão conosco ou com os terroristas", a renomada escritora indiana Arundhati Roy sugere que gritemos um sonoro "No, thank you". No meio de tamanho maniqueísmo, os que se consideram moderados estão sendo esmagados. E a Índia não é exceção.


                   

...and the bad seeds

 

Conheci o nazismo pelo cinema. Me lembro de um filme impressionante sobre o assunto que tive a oportunidade de rever em uma sala cubana, chamada Cine Atualidades (mas que, curiosamente, só passava filmes velhos): A Escolha de Sofia. Serviu para  despertar em mim a rejeição a qualquer forma de exclusão (seja pela religião, classe social, etnia, orientação sexual, etc.). Estava com uma amiga norte-americana, loira, judia e bissexual. Fiquei admirado com a sua decisão de  nunca rir de piadas machistas, racistas ou simplesmente grosseiras (mesmo das mais engraçadas), populares entre os cubanos. Era o seu protesto contra a semente de intolerância que pudesse, por ventura, estar germinando na cabeça de quem contava e de quem achava divertido.

 

No Brasil, o preconceito é velado, mas nem de longe é tão agressivo como o norte-americano ou o europeu. Mas pode ser que, daqui a 15 ou 20 anos, as coisas mudem. Digo isso, porque acredito que as questões que vou levantar sobre a Índia hoje servem para todos os povos, mesmo como exemplo, para que nunca mais se repitam tais fatos em nenhuma parte do mundo. Hilter começou eliminando doentes mentais e outros deficientes, em hospitais  e sanatórios. Daí foi um passo só: judeus, homossexuais, ciganos, eslavos, etc. Ao nos calarmos diante de tais atrocidades, pode ser que não reste nenhuma voz quando chegar a nossa vez.

 


Islã indiano

 

Aproximadamente 11% da Índia é muçulmana. São mais de 110 milhões (só de hindus são 850 milhões). Abraçar a Índia ignorando os muçulmanos é, no mínimo, um paradoxo. O Taj Mahal, um símbolo do país, foi construído por eles, por exemplo. E há um certo islamismo que é próprio da Índia, não se encontra em outro lugar. Tem suas cores próprias, cheiros e sons. A Índia seria outra sem os muçulmanos. E creio que não seria melhor. Como não sou hindu, posso defender a tese sem medo. Caso contrário, estaria em sérios problemas, principalmente, se fosse habitante de Gujarat, o estado-palco do que vem a seguir.

 

Há pouco assisti ao documentário Solução Final (2004), de Rakesh Sharma, indiano e hindu. São 149 minutos da mais pura intolerância religiosa, retratada de maneira imparcial. O horror.

 

Resumidamente: em 2002 houve um ataque a um trem, por parte dos muçulmanos. Queimaram um vagão. Morreram aproximadamente 60 hindus peregrinos. O fato talvez fosse uma represália a um ataque anterior a uma mesquita, que foi destruída por hindus. A partir daí intensificaram-se as agressões aos muçulmanos de  Gujarat. Milhares morreram numa carnificina sem limites. Crianças foram degoladas, mulheres estupradas, homens esfaqueados, todos muçulmanos. Os corpos eram sempre queimados, para evitar a identificação e possíveis queixas por parte dos parentes. Casas e vilas muçulmanas foram saqueadas e destruídas, as pessoas tiveram de recorrer a campos de refugiados. Sem água ou comida, bebiam a própria urina. A polícia, um caso à parte. Sempre corrupta, atuou como escudo para os "manifestantes" hindus. Atirava nos muçulmanos, sem piedade. Transformava estupros em espetáculos. Algo inimaginável vindo do país de Gandhi, aquele da não-violência. E o estereótipo  do indiano vegetariano, que respeita os animais, medita às margens do rio, cumpre seus rituais? Os seres humanos são muito parecidos, não importa onde vivem. Uma multidão com ódio não tem nacionalidade. Uma constatação lamentável.

 


Independência

 

Para se entender estes ataques, precisamos retroceder uns 60 anos. A grosso modo, é preciso dizer que, antes da independência da Índia, o país vinha sendo um punhado de "capitanias" britânicas,  pequenos reinados, com seus maharajs (marajás) e administração local, tudo sob supervisão e "proteção" dos ingleses (exceto por outros países que a exploravam em menor escala, como Portugal, por exemplo). A Inglaterra sabia que, dividindo o povo, seria mais fácil de controlá-lo. Fazia acordos com hindus e muçulmanos, mas nunca com ambos. Mantinha-os  separados. E apesar dos esforços contrários de Gandhi, após a independência foi criado o Paquistão, que seria o país dos indianos muçulmanos. Milhares morreram neste êxodo (de hindus voltando para a Índia e de muçulmanos em direção ao Paquistão), e os problemas fronteiriços continuam até hoje. Não se fez a paz. Gandhi lamentava a falta de tolerância religiosa. Foi morto por isso, por um hindu extremista, que provavelmente queria uma Índia hindu. É como se, no Brasil católico, não fossem permitidas outras manifestações religiosas. Sem a religiosidade  africana e indígena, com quem tanto temos a aprender, o Brasil perderia muito, deixaria de ser o país intrigante que se construiu.

Todos nos lembramos do recente caso de proibição do uso do véu muçulmano em escolas francesas (e de outros símbolos religiosos quaisquer) e ficamos estarrecidos com tal ato, pois implicitamente ele gritava: não queremos mais imigrantes! Porém, é certa e conhecida a intolerância muçulmana. Destruíram os budas gigantes no Afeganistão. Não permitem outros templos em seus países. Me lembro de ser acordado muitas vezes por um sistema de alto-falantes no ano passado, no sul da Índia, que recitava orações muçulmanas antes mesmo do sol nascer. Me sentia invadido. Praguejava. Mas nem de longe pensava em bani-los dali. Adorava tomar chá com eles, enquanto comprava algo. Me lembro de ter reservado, consecutivamente, pelo menos umas cinco maletas diferentes numa loja de um muçulmano em Ernakulam. Mas a cada vez que eu ia efetivar a compra, havia adquirido mais livros e precisava de uma maior. E ficava receoso de levar a escolhida, com medo de comprar mais livros. Por isso, a reservava para o dia seguinte, o que exigia daquele senhor uma paciência do Profeta. E ele nunca se zangou por isso. Não posso julgá-lo pelos talibãs que destruíram os budas ou as Torres Gêmeas. O chá dele era doce, ameno. Era mais um indiano, tanto quanto qualquer outro. Expulsá-lo da Índia seria empobrecê-la (mais ainda).


 

BJP
 
O partido hindu se chama  Bharatiya Janata Party (Partido do Povo da Índia), ou BJP. Fez campanha política utilizando os ataques em Gujarat. O próprio governo patrocinou este genocídio, na medida em que deixou de ajudar aqueles que ainda poderiam ser salvos, com comida, remédios e um teto. Proclamou hindus a varrerem os muçulmanos da Índia. Utilizou as guerras dos épicos da literatura indiana para justificar a sua (isso é muito comum). Chamou Sonia Gandhi (do partido do Congresso) de "papista" e  amiga de muçulmanos. Misturou preconceitos com religião, e o povo acreditou, prevendo um governo protetor de hindus. O BJP foi o grande vencedor nas eleições que se seguiram aos ataques. As escolas passaram a excluir alunos muçulmanos de suas carteiras. Algumas chegaram a exaltar Hitler em textos didáticos (!). Esse partido confeccionou fitas de vídeo sobre o ataque ao vagão hindu, manipulou fatos,  mas não mostrou os horrores em maior escala que se seguiram, contra os muçulmanos. As crianças livremente assistem a estas fitas "didáticas", que mostram corpos carborizados e hinos hindus nacionalistas. Deixaram de brincar com crianças muçulmanas. As sementes estão plantadas. Regadas e adubadas.

 

Os anos 90 presenciaram os conflitos étnico-religiosos mais sérios da História da Índia pós-independência. Um convívio relativamente tolerante tem sido apagado da memória dos mais jovens. A guerra é sempre abominável, mas quando brota no meio de um povo conhecido por sua hospitalidade e caráter pacífico, é de cortar o coração. Pois ninguém se assombrou muito quando, recentemente, holandeses começaram a incendiar mesquitas no sul de seu país. De maneira preconceituosa, já os vemos como nazis embrionários. Mas será esse o futuro da Índia, aquela que se vangloria de ser a maior democracia do mundo?

 

Termino citando a historiadora indiana Romila Thapar: "O fundamento da sanidade da civilização indiana é, em muito, decorrente da ausência da figura de um Satã". Infelizmente, começamos a demonizar então seres de carne e osso, na falta do demônio real. Que algum deus nos ilumine, urgente. 

 

 

 

panditgaram@yahoo.com.br