A
pesquisadora chegou vinte minutos atrasada e disse que era por causa do
trânsito, como se eu fosse besta. Eu sabia que aquilo já era parte do
teste, pois quando eles testam a gente, tudo o que perguntam é
camuflagem para distrair nossa atenção e reparar em outras coisas: as
que interessam para eles. Por isso eu não achei ruim e fiz um comentário
do tipo:
— Nesse
horário o trânsito é horrível.
Depois
ofereci um copo d'água e isso a desarmou. Comentar que naquele horário o
trânsito de São Paulo é horrível e oferecer água num dia quente são duas
coisas normais que qualquer pessoa faria, e eu fiz! Hehe!
A
pesquisadora comentou que a casa era a minha cara e eu respondi muito
obrigada. Daí ela começou a mexer nos meus bibelôs e mudou um deles de
lugar, para ver se eu teria um ataque histérico e começaria a correr
pela casa com uma faca na mão. Eu não fiz nada disso. Disse que ela
podia levar o elefantinho. Era um presente. Ela respondeu que era muita
gentileza minha, mas não podia aceitar. Perguntei se era por causa das
normas da USP e ela disse que não. Então eu coloquei o elefantinho na
mão dela e disse:
—
Leve.
Isto provava
duas coisas: que eu não tinha asco de pegar na mão dela e que eu lidava
bem com perdas. Quando ela me deu as costas e foi xeretar nos meus
livros eu ocupei o lugar do elefantinho com um esquilo, que ficava mais
para trás, na mesma mesinha.
Ela perguntou
se eu morava só e eu disse que havia um animal na casa. Eu sabia que se
me referisse à Valentina pelo nome, perderia pontos. Ela perguntou
que espécie de animal. Daí ela se sentou na beirada do sofá duro e eu no
sofá mole. Eu tirei meu chinelo e cruzei as pernas, para mostrar que não
tinha medo dela. Respondi a uma série de perguntas que não vêm ao caso
porque, como eu disse anteriormente, eram perguntas de fachada para
reparar se meus olhos viravam para a direita ou para a esquerda antes de
responder. Respondi a tudo olhando bem na cara dela, sem piscar. Com
isso ela teria que rever seus critérios científicos. Hehe!
Chegamos nos
hábitos alimentares e a coisa começou a ficar tão chata que, sem querer,
eu ofereci um café. Eu nunca devia ter oferecido um café. Ela aceitou e
me acompanhou até a cozinha. Agora ela ia ver como eu fazia o meu café.
Dei as costas para ela e comecei a falar da minha infância. Eles gostam
de infância. A jarrinha de vidro da minha cafeteira havia quebrado na
semana anterior e eu estava usando uma xícara grande no lugar. Só que eu
gostava de tomar mais de uma xícara, de modo que quando uma estivesse
quase cheia, eu rapidamente a tirava e colocava outra. O café continuava
pingando. Daí eu despejava as duas xícaras na garrafa térmica e dava no
mesmo que a jarrinha de vidro. Por isso eu não fui até a Barra Funda
comprar uma jarrinha nova. A jarrinha velha quebrou enquanto eu lavava
louça e levei um susto. Eu levei um susto porque a filha da vizinha
gritou meu nome pela janela, mas até aí, isso podia ter acontecido com
qualquer um.
— Esse pintinho te marcou muito?
O pintinho a
que ela se referia foi o da minha infância. Para ser mais específica,
ele é o sujeito da minha primeira lembrança. Eu tinha quatro anos de
idade e um pinto amarelinho. Ganhei o pinto na feira. Mamãe disse que
era para eu devolver o pinto para o japonês porque aquilo ia crescer e
virar um frango e a gente morava em apartamento. Não era permitido. Eu
respondi que não ia devolver porque era presente e se dependesse da boa
vontade dela eu nunca teria bicho algum. No fim eu fiquei com o pinto
que nunca virou frango. Ele morreu esmagado pela porta de incêndio que
fechou na cabeça dele. Minha vida começa aí. Antes disso é uma mancha
escura.
— Muito
interessante...
Ofereci bolo
de cenoura com recheio de chocolate para a pesquisadora. Ela aceitou.
Perguntei se ela gostaria de um pouco de mel para acompanhar e ela
também aceitou. Perguntei se não achava que era demais, recheio de
chocolate e mel. Ela disse que não.
— E geléia de morango? — perguntei.
Ela não
entendeu. Expliquei que além da camada de mel, ela podia acrescentar
mais uma de geléia de morango.
— Ou você
acha que daí fica demais?
Ela respondeu
que daí era demais. Uma vez li numa revista que os pesquisadores devem
se manter neutros. Pelo menos com os do Smithsonian é assim. Ela tinha
emitido duas opiniões pessoais: que minha casa era a minha cara e que
adicionar mel e geléia de morango no bolo de cenoura com recheio de
chocolate era demais. Isso, sem falar do elefantinho, que era
interferência no habitat do entrevistado. Eu não podia esperar muita
coisa daquela pesquisadora. Enfim... Agora não tinha volta. Ela queria
ver o armarinho do meu banheiro e eu disse que isso era um
clichê.
— Pode até ser clichê, mas é muito
instrutivo.
Fui junto. Ela não tocou em nada. Anotou várias
coisas. Durante todo o tempo em que ela olhou para meu armarinho, eu
olhei para a cara dela. De tanto em tanto ela me dava um sorrisinho, que
eu não retribuía.
— Eu sei que
essa parte é meio constrangedora.
Os do
Smithsonian nunca falariam isso. Do armarinho do banheiro ela foi para a
lavanderia ver as roupas no varal. Depois pediu para eu abrir a gaveta
de talheres e por último olhou a cama onde eu dormia. Eu disse que ela
podia bater na parede, se quisesse. Ela respondeu que não fazia parte do
procedimento. Mesmo assim eu esclareci que não havia nenhum ponto oco em
nenhuma parede e que ela podia anotar isso no bloquinho dela. Era fato
que eu mesmo havia comprovado.
— Você
poderia falar um pouco mais sobre aquele pintinho?
Se nessa
hora eu olhasse para cima e para a direita, era sinal que eu estava
tentando puxar uma lembrança do passado. Mas como vinha fazendo até
então, falei tudo o que tinha para falar sobre o pinto olhando bem para
ela, sem piscar, em pé e parada no meio da sala. Para isto não há
associação. É uma posição teatral, jamais usada no dia-a-dia. Seria
muito bom para a USP. Para eles aprenderem. Hehe! Eu disse que a partir
daquele dia passei a me vestir de amarelo dos pés à cabeça, até os oito
anos de idade. E como eu disse isso sem piscar e com os olhos vidrados,
ela não teve meios para saber se era mentira. Ficou em silêncio. Eu
teria continuado, dizendo que sentia muita dor quando, diariamente, às
onze e meia da manhã minha mãe me mandava tirar o pijama amarelo e
vestir o uniforme da escola: azul e branco. Mas ela não quis ouvir.
Disse que era suficiente e foi embora. Assim que o carro virou a esquina
eu fui para a rua. Tive que correr feito louca. A loja do chinês dos
elefantinhos fecharia em quinze minutos.