Em
1973, morava no Rio e fazia parte do trio Sá, Rodrix & Guarabyra,
que antes era uma dupla apenas, Sá & Rodrix. Minha adesão se deu
quando, após encontrar Sá perambulando por Ipanema, soube que acabara de
se separar da mulher e que ficara sem ter para onde ir, visto que a
ex-esposa continuaria a ocupar o apartamento do casal. Convidei-o,
então, para morar comigo num quarto na rua Alberto de Campos, ali mesmo
em Ipanema, num apartamento que eu dividia com alguns jornalistas,
aparelhagem de som, instrumentos e caixas de bebidas — além das duas
Marlys, serviçais da casa, de quem desconfiávamos seriamente de que
completavam o ordenado com suspeitos programas
noturnos.
Convite
aceito, Luís Carlos Pereira de Sá, a quem também denominamos Dr. Pereira
- já que possuía
carteirinha da OAB, ainda na edição antiga, vermelha e vistosa — veio morar conosco. A tal
carteirinha, inclusive, tirou-nos de variados apertos estrada da vida
afora. Por exemplo, aquele em que, no tempo da ditadura, quando a PM era
ainda mais belicosa do que hoje, fomos cercados num bilhar da rua das
Palmeiras, aqui em Sampa e enquadrados numa sinuca de bico. Os meganhas
olharam as nossas figuras cabeludas e cavanhacudas e foram até legais,
pois antes de tomar as providências de praxe, quando se tratava de
abordar elementos daquela estirpe — que consistia em aplicar logo um
cacete para verificar se reconheciam se eram gente boa ou não pelos
sotaques expressados nos gritos de ai — tiveram a gentileza de nos pedir
documentos.
Iniciaram
pelo Rodrix, que tinha a vantagem de exibir os trajes menos escandalosos
dos três e de portar uma carteira de músico profissional, de capa
azul-claro e novinha em folha. Não foi liberado, mas pelo menos foi
esquecido de lado por uns instantes. Ao aproximarem-se de mim, percebi
que meus companheiros ficavam mais nervosos do que eu, uma vez que
tinham conhecimento do que eu apresentaria como cédula de identidade.
Foi assim que assistiram frios, quando eu meti a mão no bolso traseiro e
trouxe de lá um monte de papéis em frangalhos. Depois, gentilmente pedi
licença ao policial, que se interpunha entre mim e a mesa de sinuca, e,
calmamente, montei uma desmontada carteirinha de papelão, de músico
amador, no pano verde da mesa entre as bolas
coloridas.
O
primeiro momento foi de indescritível impacto. Os milicos que formavam a
guarnição, agora incrédula, foram acercando-se, um a um, e debruçando-se
sobre o tablado verde, calados e de olhos arregalados. Súbito, o
sargento, de dois metros, foi acometido de um tremelique que lhe
perpassou todo o corpo, enquanto suas mãos tomavam a forma das de um
estrangulador prestes a fazer mais uma vítima. Assim que as veias de sua
garganta incharam a ponto de explodir, o Dr. Pereira saltou entre nós
dois, já portando aquele misteriosíssimo caderno de capa vermelha e
dura, que identificava os indivíduos habilitados pela Ordem dos
Advogados.
O
gesto do PM, graças a Deus, pairou no ar, enquanto seus olhos encaravam,
magnetizados, a aparição cor-de-sangue. Vai ver que era
mesmo a única cor que os trazia de volta a qualquer coisa parecida com a
realidade. Mas o fato é que, naquele tempo, existia esse estranho
paradoxo no Brasil. Tanto a polícia era totalmente arbitrária, quanto
uma carteira de advogado ainda impunha algum respeito. Hoje, acho que,
das duas opções, a habilitação dos chamados defensores do Direito não
impõe mais respeito algum. Enquanto a polícia, honrando a tradição,
continua transmitindo os mesmos valores, geração a
geração.
Porém,
ia contar apenas que, após aquele encontro com Dr. Pereira, a dupla Sá
& Rodrix passou a ensaiar em minha casa. E foi sugerindo que aquele
acorde poderia ficar melhor e que aquela palavra na letra faria melhor
sentido, que acabei sendo admitido na brincadeira e a dupla virou um
trio — que anos mais tarde acabaria se tornando novamente uma dupla, com
a saída do Zé Rodrix. E contaria também que, antes de o trio se
desfazer, viemos morar em São Paulo, a fim de trabalhar no mercado de
jingles, contratados pelo fabuloso maestro Rogério Duprat. Desembarcamos
aqui, ávidos de aventuras e nos deparamos com o enigma dessa cidade de
estrutura rígida de concreto e de coração tenro, como iríamos aprender
depois.