Metro: Av. de la Paz


Puxou as duas mangas até ficarem lindeiras com as mãos. El tren efectuará su entrada en la estación. Sorriu profundo, quedou sério. Terno cinza, repousando sobre o largo corpo, sapatos pretos espelhando seu rosto de barba espessa e cabelos longos, úmidos e lisos, que tocavam os ombros indiferentes. Na mão cansada, um livro. No bolso vazio, um lenço. Nos pés, o movimento, o trem já chegara, já apitara, já entrara, ele. Nas suas costas a porta, na sua frente 39 pessoas silenciosas, olhando o tempo ir-se. Segurou-se até o trem partir, cinco minutos até a próxima parada, abriu o livro na página 28. Leu por uns segundos em voz baixa, depois voltou o rosto para cima, fez seus olhos brilharem com a verdade, levantou a mão trêmula contorcendo os dedos abertos e começou o discurso em tom fúnebre. Ustedes que son corderos de una mentira; ustedes que son ovejitas de un cielo que está inmerso en sangre; ustedes que no desean quedarse para siempre como un lapso de oscuridad, porque pueden tener la virtud de la eternidad (neste momento trocou a página do livro e subiu a entonação da voz); ustedes que no están aquí para morir solos, que desean abrir fuego contra un Dios que nunca habrá de salvarlos; aquí, ahora, pueden tener un nuevo Dios, un misericordioso Dios y que guiará todos para la súper vida eterna de Catón. (Voltou a subir a entonação da voz, dando sua ordem final) ¡Para Catón!, vengan todos conmigo. Nisso deu as costas para as ovelinhas, o trem parou, ele desceu e, sem abrir os olhos, ergueu a cabeça para os céus. Gracias, mi señor Catón, ahora nuestra comunidad está pronta para hacer la última viaje. Abriu os olhos para contar quantos estavam ao seu lado. Nenhum, estação com eco. Ele baixou os braços que quase tocavam o céu, puxou as duas mangas até ficarem lindeiras com as mãos, passou rapidamente a mão cansada sobre o cabelo ainda úmido, fechou o livro e pôs-se a esperar. El próximo tren llegara en três minutos. Sorriu profundo.

 

 

 

 

Eu tive um pesadelo agora


Acordou suando coito. Donde estou? Que fizeste, José? Donde andas? Nu, estava, mas fez questão de rapidamente mergulhar nas calças, meter a camisa, pisar o sapato. Foi com as mãos ao bolso, nem dinheiro, nem chaves, nem nada. Donde estou? Passou a mão sob a água do banheiro azulejado, a mão no rosto, ainda foi até a janela ver de que lugar e de que altura olhava. Segundo. Teve cuidado pra não fazer barulho. Podia ouvir alguém conversar na cozinha, era o que parecia. Que fizeste, José? Suspirou, abriu a janela e se pôs a descer, segurando-se ao cano que também descia, depois ao muro de cacos de vidro, depois à rua. Donde andas? Pelo sol, deu crédito de horas ao meio-dia. Ajudou-lhe o olfato de comida, zona residencial. Donde estou? O sol da Porto Alegre de janeiro evaporava seu fedor de sexo. Que fizeste José? Foi cruzando as ruas, até encontrar uma parada de ônibus, observar um a um, já sei por onde andas, José. Fez sinal ao primeiro, correu pressionado pela calça de escritório, a camisa de escritório, o fedor do sexo de escritório, e entrou sem cumprimentar o motorista. Faça a fé, seu moço, tô sem grana, me assaltaram. O cobrador olhou para o sujeito de escritório, desconfiou do bigode sem barba, fez cara feia para o cheiro e tudo bem. Senta aí. Ele sentou, ficou vendo o sol cair do céu, a panela de água quente que descia de lá virando fumaça em segundos. Limpou a testa com a mão, a mão na calça, a calça no banco. Uns quinze minutos e levantou-se, agradeceu ao cobrador, desceu na Protásio. O cabelo preto lhe enrolava o suor, aquecendo a cabeça, o bigode aparava o suor que a sobrancelha aparava que ia escorrer pelo pescoço e lhe molhar a camisa. Desabotou o primeiro botão, via-lhe a regata branca. Entrou no primeiro bar. Uma bem gelada, seu Antunes. O tal olhou desconfiado, foi até a geladeira, serviu a tal, o outro bebeu. Bota na pendura que hoje a coisa tá ruim. Pendura, só pra conhecidos. Sorte a minha. Paga a cerveja pra não se incomodar rapaz, disse um outro da mesa. José olhou para o lado, voltou a olhar o velho Antunes, sabe lá que pensa José. Tô sem nada, tô duro, seu Antunes, vai me deixar numa dessas? O relógio, respondeu de trás do bar, deixa o relógio. José botou o relógio na mesa, saiu puto. Velho filha da puta, como se não me bastasse acordar na porra do fim do mundo, este velho puto ainda me faz desta. Explica isso pra Rosinha, explica? Sem chave, sem dinheiro, sem documento, sem a porra do relógio. Entrou no portão de casa, cheiro de comida, ainda sol do meio-dia. Três batidas na porta, um grito. Rosinha! Três vezes o tamanho de José, abre a porta um homem alto, barba fechada, cara feia. Quer o que com ela? Como, quer o quê, é minha mulher, porra! Tua mulher o cacete, Rosinha! Chega esta. Quem é, amor? Um safado dizendo que é teu marido. Tu conhece? Nunca vi mais louco, nem mais fedorento, e saiu a dar risada, levando uma menina pequeno com ela. Peraí, quem é essa menina, perguntou José, quem é? Minha filha e isso não é da tua conta, tarado. Bastou o “filha” para que José perdesse a força dos braços, se deixasse jogar para trás pela força que o outro exercia na porta e blam, tá lá porta fechada, homem lá dentro, José lá fora. Que fizeste, José? Tomaste uma bomba, José? Levantou, ficou olhando a casa, da janela o homem ainda olhava com raiva. Nem engolira e já vomitara José. Dos fundos, vem o cão a latir, vade retro, José levanta apressado, junta a si mesmo, se toca até a rua, bate o portãozinho de ferro, olha mais uma vez para o marido de sua mulher. Vai embora, José. A mesma água quente dançando no ar, deve ter queimado o vento. Para em frente à casa da vizinha, pergunta as horas, ela responde. Quinze pra uma, moço. Moço, quer dizer que nem tu me reconheces, Joana, porra? Desculpa, moço, se conheço o senhor e não tô lembrada, mas nem sua cara nem seu tom de voz me parecem comuns. E vai lá pra dentro a Joana, a moça brava, vai cozinhar e lavar para o marido, vai ler revistas e costurar camisas e deixa José na rua. Mais uma vez a mão na testa e sai a caminhar, pega uma sombra, caminha tantas quantas quadras forem possíveis, não são muitas. Ainda o cheiro de almoço subindo das casas, ainda o cheiro de sexo subindo do corpo. Pára em uma ruela, olha uma casa, família almoçando nos fundos com os amigos, a porta da frente aberta, bons tempos de fé nos homens, a carteira sobre a cristaleira, ali ele entra de mansinho, de malandro, pega a carteira, da sala uns olhos o encaram, um menino não mais que seis, não mais que sete. Teu pai pediu que eu pegasse a carteira dele aqui. Meu pai não tá aqui. E onde é que tá? Meu pai tá na vó. Pois, guri, também eu tava lá agora, vim cá só pra buscar a carteira pra ele, mas ó, não conta pra ninguém, bico fechado, viu? Não entendeu se foi o cheiro ou foi o tom de voz, só viu que o piá se botou a chorar, engoliu o ar do mundo a chorar, vieram todos a escutar e ver o choro, que era choro lindo de se ver, e José já era só vento em meio ao mormaço. Desapareceu. Quando o menino engoliu as lágrimas, já estava quilômetros dali. Três cervejas, aqui não dá mais que três cervejas, pensou José olhando a carteira, que porra que eu vou fazer? Pegou a Venâncio ensolarada e foi até a João Alfredo, vou falar com o Marquinhos, quem sabe passo lá a noite, quem sabe ele me empresta uma grana, quem diria o Marquinhos ter que me emprestar uma grana. Chegou até a entrada do prédio, era só ele e o sol que estavam ali. 112. Sim? Marquinhos, é o José, preciso de uma grana, cara. Peraí, vou descer já. Graças a Deus, José, Deus não esquecera dele, se o Marquinhos também não. Nem três minutos levou, apareceu uma sombra no fundo do vidro, a luz do elevador, o homem vem até a entrada, mal abre a porta. Já falei que vou pagar, porra. Que pagar, quero uma grana, Marcos. Mas o outro nem ouvia José. Sai daqui, minha mulher não sabe de nada, vou pagar até terça, prometo, agora sai daqui. Tá falando do quê, porra. Sai daqui, some daqui, eu vou lá e pago tudo, já falei. Não me empurra, porra. Sai daqui, some daqui. E fecha a porta o homem, o Marquinhos. José dá com a mão na porta, puto, puto, que merda de sol, que merda. Que fizeste, José? Donde andas? Sai dali, sem opção, que fazer, sai dali e vai pela João Alfredo, pega a Sebastião Leão, um bar na João Pessoa, o refúgio é um bar na João Pessoa. Senta, pede uma cerveja. Fica sem ver o mundo, mas o mundo cai lá fora, vai deixando o sol se ir, vem o jogo na TV, o Inter ainda tem o mesmo time, José nem vê, mas o seu time ainda é o mesmo, nem vê quanto paga ao velho do bar. Obrigado, moço. E ele responde. Meu nome é José. Mas que fizeste? Sai da João Pessoa e resolve voltar em casa, já está suando a camisa que é do corpo, a calça que é do corpo, a lembrança que é da alma. A cara ainda é de escritório, o bigode é de escritório. Chega na ruela da Protásio, senta do outro lado da calçada, escondido atrás da Sibipiruna. Espera, espera, uma hora saem, é domingo, Rosinha sempre sai no domingo. Ele cochila na sombra, o sol nem se lembra mais dele quando os três, a família, a sua que é de outro, saem cruzando as mãos, fecham o portão, deixam a casa. José já acordou, já viu, já pulou o portão, já fugiu do cachorro, o trancou no pátio da frente, já está forcejando a janela dos fundos. Já entrou. É o seu quarto, abre o armário mas não são suas roupas, escolhe camisa e calça ao seu gosto, mas não é o seu gosto. Abre a gaveta ao lado da cama, não é seu radinho, não é sua foto sobre a cômoda, é a foto da sogra abraçando o homem, o homem beijando Rosinha, Rosinha beijando o homem, o homem abraçando a sogra. Quanta raiva é não ser quem se pensa que é. Pula até o banheiro, nem há lâmina de barbear, nem há escova de dentes sua, só a deles, abraçadas uma com a outra, dançando a rotina uma ao lado da outra, dividindo as horas uma ao lado da outra, sendo casal uma ao lado da outra. Ele ao lado, sério. Tira sua roupa fedendo a tudo, entra no box, hesita alguns segundos antes de passar o sabonete no corpo, vai, azar, que merda, que merda, lava-se do cheiro, limpa-se de si, despido de identidade, nu de história. Do chuveiro cai um pranto esquecido. Já saiu do box, já colocou a camisa que sobra, a calça que sobra, o sapato é o mesmo. Joga a toalha sobre a cama, deixa ali também o cheiro do escritório. Abrem a porta, não é ele, é o outro, com Rosinha, com a filha que seria dele, ele pula a janela, agora do avesso, o puto do cachorro está a latir, já houve o homem, já corre o homem, já está na janela dos fundos a gritar. É aquele filho da puta, é aquele filho da puta! José chuta o cachorro do outro, corre até o portão, correu até a rua, corre até a esquina, correu atrás de si, o outro também vinha correndo, cansou, desistiu. Quiçás com medo de encontrar um amante da sua esposa, vá lá saber. José não era amante da sua esposa. Era marido. O ar seco entra no peito feito cinza de cigarro, ele descansa, estrala o pescoço, se joga na parada de ônibus. O mesmo que o trouxe pela manhã já chega. Já chega. Ele chama, entra, desta vez paga com o dinheiro do pobre coitado que estava a visitar a própria mãe, o pai do menino traumatizado com o tarado que uma vez lhe aparecera na porta de casa. José desce do ônibus. Pára na rua. Donde estou? Que fizeste, José? Sobe pelas casas com cheiro de janta, anda em torno do muro com vidros, não vai pular a janela. Bate à porta da casa. Uma menina olha da janela, grita. Mãe, é o pai. Nem se surpreende. Uma esposa abre a porta, olha as roupas do marido. Donde estava? Por aí, responde José. Ontem foi tão bom, tudo tão perfeito, pensei que irias passar o domingo em casa. Cá estou. Bom, sempre é tempo de recomeçar. Recomecemos o domingo, então. Vem pra dentro de casa. Já foi.

 

 

 

 

De momento


Por um segundo, ela teve vontade de caminhar de costas até a cama, pegar o celular sobre o livro do Cortázar, ligar para alguém, pedir que viesse, não estava bem. Não o fez. Ficou ali, comparando-se ao rosto, ao olho, à voz. Sentia-se à vontade, quase sozinha. Pergunta-me, a outra disse. E ela nunca havia pensado nisso. Perguntar o quê? Já o sabe, está claro, que vai aparentar os anos, que é inverdade, enfim, o que dizem os cremes da Avon, isto já está estampado entre o marco da porta, a mirar seus próprios olhos. Oportunidade única, insiste a outra. Ela olha com avidez para si mesma, pensa no trabalho, não; no marido, não; nos filhos que virão, não; pensa no Brasil, também não. Franze a testa, olha desvendando os olhos, enquanto ela continua congelada, esperando pela pergunta. O frio entra lentamente pela porta e esconde-se em suas pernas. Ela apressa o pensamento. Terei outro homem na minha vida? Por que fizeste esta pergunta? Porque foi o que me veio, o que há de mal nesta pergunta? Então é isso. É isso o quê? Já tinhas esta incerteza nestes tempos. Que dizes, do que está falando? Sim, esta é a resposta à tua pergunta. Terei outro homem? Sim, terás. Mas por quê? Está aí, por esta tua incerteza. Botarei tudo a perder, é isso? (Fez sinal de afirmativo com a cabeça). Ai, mas como posso evitar? Acredite, estar aqui é, em verdade, uma tentativa de que repenses esta idéia louca que tens aí na nossa cabeça. Lá estás triste, é? Seria melhor se nunca tivesse pensado nesta bobagem. Hmmm, mas que pensas que devo fazer? Sei lá, precisas tentar algo, levantar esta auto-estima, acabar com esta insegurança. Que tal voltar para a academia? Não, ele é de lá. Quem é de lá? O outro homem. Hmmm, melhor não arriscar. E pra aula de piano? Com o Marcos, o Lúcio iria enlouquecer, capaz de ser pior. Não, pior não dá. Muito ruim, é? É. Tenho que dar um jeito. Temos. (Suspiro) Quer entrar um pouco? Não, tenho que ir ou perco a hora. Bom, quando puder apareça aqui, às vezes é bom relembrar o passado. Quando der, prometo. E foi saindo pelo corredor. Quando foi virar a escada, ela falou da porta. Mas foi bom? O quê? A vida, até onde sabes? Foi difícil, mas foi. E o Lúcio? Fica longe das academias. Tá, não esqueço. Também não.

 

 

 

 

Enfim

 

Não entendo por que hoje. Ainda se viesse no próximo mês, na próxima semana, que fosse, mas hoje, por quê? Na sexta, por exemplo, Virginia já teria saído de viagem, poderia instalar suas coisas no quarto ao lado. Mas assim, tão na correria e hoje, por quê? Na última vez que esteve aqui se preocupou com minha situação, notei bem como trocou palavras em silêncio com Dr. Osgavitz, com o próprio Dr. Barreto. Mas desde lá não ligara, não enviou sequer uma carta, coisa que mamãe costumava fazer mesmo quando o câncer já a consumia profundamente. Vá lá entender agora esta urgência em vir. Talvez o Dr. Osgavitz tenha esquecido de avisar-me da viagem, largou o envelope que ela enviara na mesa, depois esqueceu — são tantas as ocupações que lhe cabem —, vieram alguns papéis por cima, algumas revistas e acabou não se lembrando de me dizer. Talvez por isso é que estivesse estranho esta manhã quando pediu que Virgínia me arrumasse, avisando que ela estava por chegar. O suor avermelhado destes dias do alto verão contrastavam com sua pele branca, que ironicamente é tal qual a neve do inverno. Sempre achei sua aparência divertida. Nos primeiros dias — quando ainda conseguia sair do quarto — costumava espiar seus movimentos no escritório, sorria ao ver como seus braços pequenos esforçavam-se para trabalhar ao redor do corpo roliço. Seus óculos redondos, a armação dourada, os olhos fundos, cada coisa parecia dar sua contribuição à atmosfera estranha, misteriosa, quase bizarra. Costumava ser carinhoso comigo quando há pouco havia chegado. Depois do ocorrido com a jovem Luana, do vinte e dois, é que foi se tornando um pouco mais bruto, o sorriso como que apagando-se aos poucos. Daquele fato me lembro somente do choro no corredor, os gritos, as enfermeiras a correr. Depois vieram avisar-me que Luana tinha sido transferida para um hospital na cidade. Nem tive a oportunidade de devolver-lhe o livrinho de contos do Oscar Wilde, a fita com Fred Astaire cantando Irving Berling. Pobre Luana, foi tão importante companhia pra mim e eu talvez nunca saiba o que se passou com ela. Naquele dia todo Luana não aparecera no meu quarto porque havia recebido visita da família. Devem ter vindo para a transferência, mas tenho certeza que pra ela também foi uma surpresa, teria me avisado. Ou então achou melhor que eu não soubesse. Eu já estava triste o bastante naqueles dias, a doença não dava sinais de enfraquecimento, tratamento com coquetel vinte e cinco e aqueles dois compostos malditos. Hoje sim, tenho motivos para comemorar. Quatro horas, ela deve chegar logo. Mas por que hoje? Também já chega de me preocupar. É até bom. Posso contar-lhe como estou melhorando, que a medicação já não está tão forte. E que apesar de ainda não poder voltar a sair ao sol, Dr. Barreto já me disse que logo estarei outro, que o coquetel será substituído por um tratamento mais moderno, uns raios não-sei-o-quê, disse que será o fim dos enjôos. Talvez até ela tenha lido algo sobre este novo tratamento, talvez me traga algumas revistas para que eu saiba tudo tintim por tintim. Gosto de saber o que se passa no meu corpo. É só um corpo, como diria o Padre Milton, mas é meu, ora bolas. Pode ser que ela confie mais nas minhas melhorias, sei que é difícil para ela me sustentar aqui, bem sei. Pobrezinha. Depois da morte da mamãe ela se pôs cada vez mais estranha, cada vez mais distante. E agora esta visita assim, de surpresa, sem aviso prévio. Tenho certeza absoluta que Dr. Osgavitz esqueceu de avisar-me. O sentimento de culpa estava grudado em seus olhos hoje. Mas logo ela chega, conversamos, como nos velhos tempos: ela me conta dos namoros, do emprego, eu conto a ela sobre meus coquetéis, os avanços e os recuos da doença. Talvez ela desista daquela idéia louca de me levar para casa, de desistir destas do Instituto. Mas eu confio no Dr. Osgavitz. Tenho certeza de que logo vamos encontrar um tratamento que acabe de vez com este demônio que me atormenta, logo poderei voltar ao sol, à vida, ao trabalho, quem sabe até arrumar uma namorada. Ah, que saudades do Parque do Silêncio, do verde entrelaçado com o azul do céu, os passarinhos a dançar. E pensar que só de imaginar tudo isso me volta a vertigem, como se fosse um alarme dizendo que ainda não estou curado, ainda falta muito. Mas o Dr. Osgavitz garantiu que vamos tentar de tudo antes de desistir. Eu confio muito nele, dizem que sabe mais do que todos os doutores da capital. Juntos. Só não consigo entender por que não me avisou antes que ela viria. Por que este tom de surpresa, de mistério?

 

Pelo barulho do motor reconheci que ela estava chegando. Poderia sabê-lo onde e quando fosse. Estas capacidades são um privilégio — se é que existe esta palavra em um lugar como este — de quem passa o dia em uma cama, distraindo-se a classificar os cantos dos pássaros, os verdes ao longe, o avançar das estações. E também a parte mórbida, os gemidos de cada paciente, os maltratos das enfermeiras, as discussões no andar de baixo. Sorte que Virgínia, minha enfermeira, cuida bem de mim, tenho certeza de que é uma excessão aqui dentro. Quando ela se for de viagem, na sexta, não sei quem será responsável por me carregar daqui até o banheiro, dar-me o banho, comida. Só de pensar minhas pernas tremem, sinto um vento congelante desde o calcanhar até a metade das costas, como se fosse mesmo uma mensagem ao coração. Se ali chegou, pronto, já está, já passou. Agora ela está a conversar com Dr. Osgavitz, posso ouvir suas vozes, talvez ele esteja a dizer que estou melhor, quase bom. Ela admirada lhe perguntando quando poderei voltar pra casa, já pensando em arrumar meu quarto, organizar minhas coisas, comprar-me uma coleção de revistas e a torta de ameixas da confeitaria da Arenal. Mas o tom não era de tanta felicidade quando Virgínia entrou no quarto com cara de choro, sentou-se ao meu lado sem dizer palavra. Que passa, mulher? — perguntei. Ela deu de ombros, fez uma careta com a boca e disse que estava ali para se despedir de mim, que faria sua viagem hoje mesmo, que desejava que ficasse bem enquanto ela não estivesse por perto para cuidar-me. Eu respondi somente com um sorriso, mas não acreditei na minha própria teoria de que Virgínia viajaria somente para que seu quarto ficasse livre, agora que eu tinha visita. Me perdi nestes pensamentos e só acordei depois que já havia me beijado a testa e se recolhido ao seu quarto, quiçá para arrumar suas coisas. Resolvi dormir mais um pouco para estar descansado na hora em que ela chegasse.

 

Somente duas horas depois do barulho do carro é que ela entrou no meu quarto, sentou-se ao meu lado. Não sei bem o que me deu, resolvi fingir que continuava dormindo, vendo entre os cílios sua face cansada, tristonha, fragmentada pelo meu olhar semicerrado. Vi que vez em vez descia-lhe uma lágrima no rosto, ela levava o lenço com a mão esquerda, engolia seco. Depois ficou uns bons minutos com os olhos na direção da minha janela, a mesma da qual eu mirava os passarinhos, os verdes, as estações. Voltou a olhar-me maternalmente, com um doçura que lembrava em tudo nossa mãe, mas depois cerrou a face, franziu a testa e levantou-se de forma brusca, pondo-se a caminhar pelo quarto, como se estivesse pensando em uma solução para um problema muito sério. Talvez só estivesse esperando que eu acordasse. Ela sempre foi assim, nervosa, decidida, a mais velha. Depois foi até a mesma janela, abriu as cortinas, pois o sol já baixara, e acendeu um cigarro. Agora eu só podia vê-la graças ao espelho do armário do outro lado do quarto, já que qualquer movimento denunciaria meu sono fingido, que nem sei por que o fazia. De sopetão, sem que eu pudesse chamá-la, saiu pela porta do quarto e ouvia descer as escadarias. Fiquei morrendo de culpa por não ter dado atenção à ela e me mordendo também de curiosidade, afinal ainda não sabia o motivo da sua visita relâmpago.

 

No outro dia pela manhã, quando acordei, pude ver que tinha sido medicado. Não sei a que horas nem de que forma, mas esta sensação de enjôo, esta visão embaçada e, claro, a impossibilidade absoluta de falar, denunciavam que recebera uma alta dose de anestésico. Não podia sequer mexer meus braços, só via o branco do teto, com as estrelinhas e planetas da Coleção Espaço que Virgínia havia me regalado no último dia de Reis. Tive a sensação que passei algumas horas assim, viajando em minha própria galáxia, até que entrassem no quarto os doutores Osgavitz e Barreto, mais duas enfermeiras que desconhecia. Todos os quatro com semblantes carregados. Eu só queria saber onde ela tinha ido, será que a visita surpresa foi assim rápida, nem sequer ficou esta noite? Mas então por que as férias adiantadas de Virgínia? Dr. Osgavitz fez um sinal com os olhos para um dos enfermeiros, que sacou um pequeno recipiente de vidro, furou-o com uma agulha, já o devolveu às mãos do Dr. Osgavitz. Confio nele tanto que nem sequer questionei o que estavam fazendo. Nem mesmo quando o doutor solicitou que o deixassem a sós comigo, ao que até mesmo o Dr. Barreto assinalou que sim com a cabeça. Na verdade me senti até mais tranqüilo, não gosto que estranhos como estas enfermeiras entrem no meu quarto, toquem meu corpo. Pensei até em dormir, mas desisti quando notei que ela já entrava devagar pela porta do quarto de Virgínia, como se não quisera que o doutor percebesse sua presença, quando vi que ela trazia algo reluzindo nas mãos, quando vi os olhos profundos assustados debaixo da armação dourada, quando senti o sangue quente espirrar no meu ventre e me parecia que era a salvação, o remédio, a cura que chegava assim, no mais, de surpresa.

 

 

 

 

Gabriel Otero (Gabriel Silveira) é natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Escritor e poeta, reside atualmente em Madri, onde escreve e publica diversos artigos e trabalhos literários. É colaborador do Cronópios, e edita o blogue O Literato.