Bar do Ceará, noite de quinta-feira.

 

 

— E aí, Cardoso?

 

— Oi, maninho, chegando agora?

 

— Tava no batente... Bota uma aí, Ceará!

 

— Cê tá com uma cara esquisita, Cardoso.

 

— Preocupado, Paulão.

 

— Já sei: brigou de novo com a Alzirinha.

 

— Nada, tá tudo bem lá em casa.

 

— Então desamarra essa fuça, rapaz.

 

— Paulão, eu nem vinha aqui hoje. Mas precisei, só pra te encontrar.

 

— Desembucha, mano. Pode contar comigo. Ceará, mais duas!

 

— Cê sabe que de vez em quando Alzirinha sai do salão pra atender cliente que quer fazer a unha em casa, no trabalho...

 

— Normal.

 

— Tem quase dois meses, ligou um cara, com língua enrolada de estrangeiro. Queria uma manicure no hotel onde ele tava.

 

— Ooolha...

 

— Calma, não é o que você tá pensando. Alzirinha foi. Tinha três caras e duas mulheres, tudo falando meio enrolado.

 

— Ceará, de novo!

 

— Alzirinha fez o trabalho dela, os caras gostaram, deram uma gorjeta muito da porreta, 50 pau, só de gorjeta!

 

— Carái, véi!

 

— Vai vendo, Paulão. Três vezes por semana eles chamavam. Uma hora era um pé, outra era uma mão, outra vez era só lixa e esmalte, essas coisas.

 

— Gente rica é cheia de frescura.

 

— Dois meses, Paulão, três vezes por semana. Acaba pintando uma amizade, o pessoal vai se conhecendo, tomando confiança.

 

— Magina a Alzirinha, com aquele jeito pra lidar com as pessoas.

 

— Pois é.

 

— Que foi, companheiro, engasgou? Que cara é essa, vai me dizer que Alzirinha acabou lavando roupa pra fora...

 

— Porra nenhuma, Paulão. Você acredita em Deus?

 

— Puta que o pariu, Cardoso, você tem dúvida?

 

— Não, não tenho.

 

— E o que é que isso tem a ver com o caso da Alzirinha?

 

— Eu me lembrei de você justamente porque eu sei que você não perde missa no domingo, que reza todo dia.

 

— Quando deito e quando levanto.

 

— Você acredita que vai pro céu quando morrer?

 

— Cardosão, eu armei um esquema que não tem erro. Todo domingo eu comungo, confesso e peço absolvição. Aí, eu saio da igreja zerado de pecado, véi. Até quinta-feira eu seguro as pontas: de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Se eu morrer de domingo a quinta de tardezinha, tô no céu, maninho, comungado, confessado e absolvidão.

 

— Tô entendendo.

 

— Só não posso morrer, Cardosão, de agora, por exemplo, que é quinta de noite, até domingo de manhã, antes da missa. Se eu morrer nesse tempo, amigão, fodeu.

 

— Tô vendo que o lance que eu vou te falar tem que ser entre domingo e quinta.

 

— Não sei que diabo é que você tá pensando, mas deixa eu te dizer. Ceará, duas! Saindo daqui, Cardoso, eu vou direto pro puteiro da Maria Gorda.

 

— Já fui lá.

 

— Mas faz tempo que não vai. Você precisa ver a Lindalva, meu irmão, que chegou por lá nesses dias. Faz é fila pra nego comer a bunda da Lindalva, maninho. Aquilo não é uma bunda, é uma taça de Copa do Mundo.

 

— Paulão...

 

— Calma. Quinta-feira tomo todas, faço merda, Cardoso. Amanhã, sexta, é dia sagrado da patroa. Faço meu dever de casa, meu irmão, dou umas quinze bimbada na Isabel por dia, até perto da hora da missa de domingo.

 

— Você acha que no céu a gente fica numa boa?

 

— Certeza, amigão. O difícil é chegar lá naquele portaozão. Mas, no que chegou, é férias pela eternidade toda, mano. Mas lá vem você com esse papo de céu de novo. Cê tá esquisito, Cardoso.

 

— Aquele povo lá pras bandas do Iraque, da Palestina, sei lá, diz que quem faz uma coisa muito importante aqui na terra vai pro céu e ainda ganha um bando de virgem, Paulão.

 

— Eita, nóis!

 

— Eu vou botar essa chance nas suas mãos, Paulão.

 

— Péra lá, péra lá. Devagar com o andor...

 

— É por isso que eu vim aqui atrás de você.

 

— Ceará, mais duas!

 

— Aquele povo do hotel, que fez amizade com a Alzirinha, mexe com esse negócio de bomba, de explosão, no mundo todo.

 

— Deixa de brincadeira!

 

— Juro. Eles precisam fazer uma explosão por aqui, Paulão, sei lá por quê. Coisa de política. Eles não querem matar ninguém, vai ser no meio da rua, pra chamar a atenção. Só quem vai morrer é o homem-bomba.

 

— Carái, véi! Eles vão trazer um homem-bomba pra cá?

 

— Não dá, Paulão. Tem problema de passaporte, de polícia, essas coisas. Tem que ser daqui mesmo, um homem-bomba brasileiro.

 

— E quem?

 

— Você, Paulão.

 

— Dou-lhe uma porrada, filho da puta! Sempre pensei que você fosse meu amigo, veado.

 

— Calma, Paulão. Ceará, pode deixar, não é nada não. Pára de gritar e escuta, meu amigo. Depois você diz se quer ou não.

 

— Cacete, Cardoso!

 

— Primeiro: você vai pro céu, diretão, e vai receber umas cinqüenta virgens, cara!

 

— Quem garante?

 

— Esse povo do hotel tá com trinta homens-bomba preparado lá na terra deles. Todo mundo com lugar garantido lá em cima. Um vai sair da lista, pra abrir uma vaga pra você, Paulão.

 

— É. Eu vou lá pra cima e largo a Isabel aqui, na mão do Serasa e do SPC, dois filhos e minha pensão fodida do INSS...

 

— Nada disso. Os caras vão te dar 10 milhão de dólar, Paulão, antes de você explodir. 10 milhão! Paulão, é uma Mega-Sena com você... quer dizer, com Isabel acertando sozinha, home de Deus!

 

— Caardoosooo, Cardoso...

 

— Tô dizendo, mano.

 

— E por que você mesmo não topa?

 

— Lembra que eu sou ateu, Paulão? Você acha que eu vou enganar Deus?

 

— Vai não.

 

— Então? Pensei em você. Já que você fica absolvido de domingo pra quinta, sua explosão pode ser na madrugada de domingo pra segunda.

 

— Por quê?

 

— Eles não querem matar ninguém. Você vai explodir ali na Paulista, em frente ao Parque Trianon, numa hora em que não estiver passando carro nenhum.

 

— Acho que já bebi demais, puta merda, porque tô quase dizendo que topo.

 

— Hoje é quinta. Domingo de manhã deixo na tua casa as quatro mala que já vi, tudo entupidinha de dinheiro. Segunda-feira de noite, Paulão, eu venho aqui tomar uma por mim e outra por você, amigo velho.

 

 
 
 

Noite de segunda-feira.

 

 

— E aí, Ceará, tudo bem?

 

— Beleza, seu Cardoso. Vai uma pinguinha?

 

— Positivo. Ceará, você viu o Jornal Nacional hoje?

 

— Vi.

 

— Saiu alguma coisa sobre uma explosão na Paulista?

 

— Não, não saiu nada.

 

— Estranho...

 

— Aconteceu alguma coisa, seu Cardoso?

 

— Não. Nada não.

 

— Seu companheiro tá chegando aí, seu Cardoso.

 

— Pauulãããooo?!!!

 

— Que olho esbugalhado é esse, Cardosão?

 

— O que é que você acha, porra?

 

— Eu explico, eu explico.

 

— Puta que o pariu, Paulão!

 

— Fiz tudo certinho. O povo lá me preparou, tudo gente boa, me deixaram lá na Paulista, bem no meio da rua. Eu tô lá, esperando passar uns carro, quando ouço alguém gritando "Paulão!". Lembra do Tonico Pica Fina? O próprio. Tava com o táxi dele parado num carrinho de angu à baiana. O cara vendia uma gelada e uma merda duma pinguinha por baixo do pano.

 

— Caralho!

 

— Porra, Cardoso, era a minha despedida, cara! Era só a última. Mas entusiasmei, meu irmão, e amanheci no puteiro da Maria Gorda.

 

— E a bomba, cacete?

 

— Uns moleque me tomaram o colete e correram pra dentro do parque. O fio arrebentou e o botão de explodir ficou aqui no meu braço, ó.

 

— Caralho, caralho, caralho!

 

— Calma aí, véi, as mala tão lá em casa, Isabel nem mexeu. E olha que hoje de manhã chegou uma cartinha do cartório de protesto. Cê viu o Nagib por aí? Vou pegar uma mixaria a vinte por cento.

 

— Essa porra não vai pra frente, não vai!

 

— Seu Cardoso, tão escutando lá fora, o que foi? Tenha calma.

 

— Ceará, um país que não presta nem pra ter um homem-bomba é um país fodido e acabado. Quem fala que brasileiro não desiste é um filho da puta. Eu sou brasileiro, e desisto!

 

— Duas, Ceará.

 

 

 

(imagens ©akawisz)
 

 

 

 

 

Gilson Guarabyra (Filho adotivo da cidade de Bom Jesus da Lapa, Bahia, 20/01/1942). Criativo publicitário, com atuação em agências de propaganda de Brasília, São Paulo e Boa Vista.