A Contracampo nasceu em 1998, e é publicada mensalmente na internet. Produzida por muitos autores, que já se renovaram algumas vezes nesses sete anos, a revista de crítica cinematográfica é tão múltipla quanto seus integrantes. As opiniões variam tanto quanto a forma dos textos, que pode ir da objetividade jornalística ao aprofundamento acadêmico, passando pelo poético. "Não, não temos identidade e não temos uma alma", diz o editorial do número 9. Cinema brasileiro 1995-2005: revisão de uma década é o primeiro livro do selo Contracampo, uma coleção de ensaios e entrevistas seguindo o formato da revista. É um panorama assumidamente parcial e fragmentado do que foi produzido nessa década. E aí reside um de seus maiores méritos. Livres da pretensão de realizar um estudo concludente, os autores podem produzir sentido mais livremente a partir do conjunto dos filmes da época, cuja característica mais importante é justamente não ter uma cara.

 

Esse aspecto já seria suficiente para diferenciar o livro de outras obras publicadas recentemente (podemos citar Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada, de Luiz Fernando Zanin Oricchio e O cinema da retomada, de Lucia Nagib). Mas existe um ingrediente a mais de contestação, a começar pelo conceito de diversidade, normalmente utilizado para descrever a produção da época. No ensaio de abertura, Histórico de uma década, os autores preferem uma visão mais pessimista: "sem nome e sem rosto, assim se passaram estes dez anos da história do cinema brasileiro". O próprio termo retomada, definição comum aos filmes pós-Era Collor (quando o fechamento da Embrafilme implicou no fim dos subsídios governamentais e quase paralisação da produção de longas-metragens), é posto em cheque, ao lembrar-se da realização de curtas-metragens, nunca interrompida, e de projetos mais distantes do mainstream, como os filmes pornográficos da Boca do Lixo.

 

Se esse primeiro ensaio não serve de diapasão, funciona como uma introdução aos demais, tratando dos aspectos da produção e distribuição ao longo da década, e colocando essa última etapa como principal problema para os filmes brasileiros. Por esse texto, já dá para perceber que a Contracampo fala sobre cinema do lado de dentro: muitos dos integrantes participam ativamente do meio cinematográfico, como Eduardo Valente, diretor de Um sol alaranjado, vencedor da mostra Cinéfondation do Festival de Cannes, atualmente preparando seu primeiro longa, com o título provisório de Vórtice. Ou Daniel Caetano, protagonista de um dos episódios mais representativos abordados no livro: o filme Conceição: autor bom é autor morto, primeiro longa-metragem produzido por alunos da Universidade Federal Fluminense, envolvido em uma polêmica com a distribuidora Riofilme há quatro anos — e até hoje buscando recursos para finalização.

 

O envolvimento na produção cinematográfica é um dos principais aspectos que levam às comparações com a Cahiers du Cinéma, revista francesa deflagradora da Nouvelle Vague, que já teve entre seus integrantes Jean-Luc Godard e François Truffaut, certamente a maior influência da Contracampo. Essa influência se faz presente no comprometimento com o cinema de autor, como pode ser notado na divisão das entrevistas feitas com profissionais do cinema em dois grupos: técnicos e cineastas (embora a simples decisão de entrevistar outros profissionais além dos diretores já seja um mérito). Essa fixação com um determinado tipo de cinema resulta, às vezes, numa miopia por parte da crítica no tocante a outras formas de realização, além de uma certa arrogância, ao ver a arte cinematográfica como algo para "iniciados".

 

Outro ponto que pode ser identificado é a preocupação com o aspecto político dos filmes, como no ensaio Homens sem sombra: uma tendência intelectual em tempos recentes, que termina por cobrar dos diretores um posicionamento. Ao se colocar como polícia ideológica, o crítico sai do seu papel, e acaba trabalhando contra o cinema, ao restringir as possibilidades ao invés de ampliá-las. Essa preocupação excessiva com a política, aliás, está presente em boa parte do meio cinematográfico brasileiro (herança do Cinema Novo?).

 

É importante lembrar, nesse ponto, que como o livro é composto por ensaios muito diferentes entre si, as características de alguns podem estar distantes de outros. O ensaio Oficinas em perspectiva, por exemplo, joga o foco nas oficinas de produção audiovisual e capacitação técnica realizadas em comunidades no Rio e em São Paulo. O cinema que se faz nessas oficinas é um dos mais importantes sopros de renovação nascidos nesses últimos anos, distanciando-se não apenas do mainstream da produção brasileira, mas também do cinema de autor – trata-se muito mais de um cinema de equipe, de cooperativa. Além disso, serve como uma das respostas possíveis às inquietações políticas mencionadas acima, oriundas, em grande parte, do quase monopólio da produção cinematográfica brasileira por uma classe. Ao invés de cobrar este ou aquele posicionamento por parte da classe média, dá-se voz a outros grupos.

 

O fato de o livro ter sido lançado antes do fim de 2005 e portanto falar sobre um ano que ainda não terminou reforça a idéia de não ser um estudo fechado. A própria escolha do termo ensaio para definir os textos do livro nos mostra que o pensamento presente ali está em construção, como define um dos autores, ao afirmar que sua análise não buscará um sentido geral para o seu objeto. Por isso mesmo a última parte de ensaios do livro traz duas crônicas, uma lembrando Jairo Ferreira e sua particular relação com o cinema, e a outra revendo algumas idéias de Paulo Emílio Salles Gomes. É uma conclusão que não exatamente conclui, dialoga com alguns conceitos apresentados anteriormente, mas deixa o pensamento em aberto.

 

 

 

 

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Cinema brasileiro 1995-2005 revisão de uma década. Daniel Caetano (organizador), Eduardo Valente, Luís Alberto Rocha Melo, Luiz Carlos Oliveira Jr, Cléber Eduardo, Guilherme Sarmento, Paulo Ricardo de Almeida, Juliana Fausto, Tatiana Monassa, Filipe Furtado, Luciana Corrêa de Araújo, Arthur Autran, Bernardo Oliveira e Inácio Araújo. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005.

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dezembro,2005