o filho da
santa
"Posso ver o
bebê?".
A moça
parou, olhou, ensaiou uma sorriso desconcertado, e afastou o
cobertorzinho que protegia o recém-nascido, enquanto Rita procurava
algum traço, quem sabe de um patrãozinho conhecido na cidade, ou de um
sujeito bem empregado, de um vizinho... "Muito bonito o seu filho!
Desejo-lhes tudo de bom!". Sendo bem sincera, pensava Rita ao
afastar-se, a criança não parecia ter muita saúde, o menino era um tanto
"amarelinho" considerou, compadecendo-se da jovem mãe com sua cria "sem
pai", e sua labuta diária naquele emprego de varar
noites.
O relógio fora
colocado pra despertar às seis e quarenta e cinco, Rita precisava
sair pelo seu portão, no horário em que, antes da esquina, pudesse
cruzar com aquela consumição. Diante do espelho, expressões de ameaça
iam sendo treinadas no olhar. Nenhuma palavra seria pronunciada ao
cruzar com a garota, mas dos seus olhos deveria saltar a
frase: "Estou de olho em você, menina".
Com o pretexto de
cansaço minha comadre Rita foi deitar-se mais cedo, antes, porém, tomou
duas xícaras de café forte. Era sábado, a vizinha bonita não
trabalharia, Rita já fizera um esquema e sabia em quais finais de semana
a moça dava plantão.
Para chegar até o
local onde podia ser visto pela vizinha, o marido da comadre precisava
atravessar a sala e passar pela porta que abria a varanda, e foi bem
ali, na porta da varanda, que a dona da casa esqueceu "Bicudo", o
pequeno regador das violetas, com água pelo meio.
"Filho da puta!"
disse bem baixinho o Téo, quando chutou o regador de plantas. A esposa
manteve-se "dormindo" e logo que Téo iniciou o ritual da paquera, ela
foi de gatinhas espiá-lo na penumbra. Dentes cerrados nas maxilas, para
não soltar uma gargalhada nervosa, ainda mais em situação tão
hilariante, Rita esgueirava-se de vez em quando para ver também a
vizinha. A noite era uma delícia de temperatura e silêncio. Rita não
conciliava em sua cabeça aquela excitação que lhe acometia ao observar o
marido sobre a mureta da varanda. Sentado feito Buda, encostado no
pilar, enquanto a garota debruçada na janela ao lado, mostrava parte dos
seios pelo decote da camisola curtinha. Na transparência do tecido dava
para ver o restante.
Ela sorria
naquelas horas mortas! A consumição sorria, justo ela, que à luz do sol
ninguém ouvia dar uma palavra, ou via seus lábios se moverem para
sorrir. Ela sorria! Que sorriso convidativo ela dava pro marido de
Rita... E ele ali. De vez em quando levantava-se, acendia um cigarro, a
mão esquerda ocupando-se com o pito, a moça bonita sorrindo, sorrindo na
noite quieta, uma delícia, a outra mão dele dentro da bermuda. Na janela
aqueles peitinhos... quase tudo para fora da
camisolinha.
A comadre,
estranhamente excitada, de quatro, espiando. Que coisa mais
desgastante ter que dividir sua energia entre o ciúme que sentia do
marido e a taquicardia que lhe vinha, ao percebê-lo cheio de tesão. Isso
era o mais intrigante, Rita estava gostando do suplício! Téo ali,
velhaqueando dentro do potreiro.
A noite não acabava
nunca, a esposa de olhos secos, arregalados, com a alma partida,
duas xícaras de café forte, e a vontade de estrangular a moça
bonita.
Tudo transcorrera
tão bem entre Rita e Téo, até que aquela família mudara-se para a casa
azul. Aquela jovem, de dia calada, séria, e de noite, sorridente. E
justo pro Téo! O pior, bem pior naquelas noites na varanda, foi perceber
que o interesse do marido, guardado na mão direita dentro da bermuda,
deixava a Rita cada vez mais excitada. Isto sim era humilhante! Ficar
com a libido a mil naquela posição, naquelas
circunstâncias!
Amanhã ela não
trabalha, é dia de azaração... pensava Rita, enquanto tentava um jeito
de abrir o jogo com o marido. Havia uma loba dentro daquelas noites,
dando tirão nas amarras, furiosa, correndo por dentro da minha comadre,
mas ela nascera sem tempo para o confronto, não queria sangue. Os
trincos da porta da varanda foram deixados de maneira a denunciar a
passagem de alguém, se fossem abertos.
"Téo, vou lá dar
um abraço na Regina, que ela tá de aniversário e volto logo". Claro que
os trincos haviam mudado de posição e claro que Rita esgotou naquela
noite toda a disposição física que sobrou da estadia do Téo na varanda.
Foi na mão, foi na boca, foi na própria gruta que ela surrou. Ela só
parou de mexer no marido quando ele, esgotado, alegou que precisava
acordar cedo. Quem acordou mais cedinho foi a esposa. Seis e quarenta e
cinco.
Lá vem ela. É bem lindinha essa moça, pensava minha
comadre. E como é sério seu rosto. Há um arzinho de tristeza misturado
com algo que lembrava desejo. A garota andava macio, vinha pisando
delicada e por trás tinha aquela bundinha perfeita, aquele reboladinho
macio, ritmado, que nenhum travesti conseguiria imitar, por mais
talentoso que fosse. Havia mesmo um arzinho de santa nessa menina,
pensava Rita, enquanto caminhava em direção à mocinha vestida de calça
branca, jaleco branco na mão... tudo branquinho. Foi muito, muito
estranho, lá vinha a belezura e aquele ódio no peito de Rita foi
amainando sem explicação. A consumição caminhava em sua direção, mas já
não incomodava, ela era tão lindinha, tão seriazinha misturada com
tristinha. Pronto. Rita passou por ela, olhou-a, e enxergou-a toda
delicada, toda insone, assim toda de branco, retornando
para descansar de uma noite de plantão. Rita voltou para a casa,
compreendendo de uma vez por todas que tivera a graça de uma aparição.
Era mais do que certo! Aquela moça era uma santinha! Uma santinha
entranhara-se naquele corpinho lindo, naquela carinha sonolenta, doce,
triste e com ares de saciedade temporária. Rita precisava colocar mais
vezes a própria mão dentro da bermuda do Téo! Foi no estalo que a coisa
fluiu.
Ela precisava
insistir, mesmo quando sua mão parecia ter cãibras, ela precisava
fazê-lo, obrigá-lo a pedir trégua nas madrugadas. Era a mensagem da
santa! Justo ela, que não abria a boca para nada, dera o recado para
Rita.
Em menos de um mês a
família da casa azul mudou-se dali e a aparição foi vista ainda outras
vezes por Rita, claro, a cidade era um ovo. Numa dessas oportunidades a
moça bonita estava com um figurão numa festa, de outra vez, estava com
outro senhor já menos famoso, depois Rita viu os dois senhores com
outras mulheres. Pelo jeito, a santinha ainda vai padecer muito na mão
desses hereges pecadores que não sabem a dureza que é criar filhos com
salário mínimo, que eles nem sequer querem registrar. Não registram
filhos, nem salários! Covardes e injustos! Sórdidos impunes! Até hoje
Rita afirma pra quem quiser ouvir: ela foi uma santinha que apareceu na
minha vida, ainda bem que a reconheci a tempo! Ainda bem que o
filho dela não se parecia com ninguém da minha rua!
Ainda bem que os
filhos da comadre Rita não eram assim amarelinhos, com cara de doentes.
Matutava eu. Aquela criança era só mais um pobrezinho dentre inúmeros
que nascem pra viver largados, como guaipecas sem dono. Aquele era o
filho da potra! Quer dizer, da outra. Da santa!