24.04.2004 | Vou me desviar um pouco da literatura para comentar coisas que pedem comentário.

Assistimos a episódios muito desagradáveis, na suposição de que têm a ver com religião. A religião, que nunca deixou de ser uma força política, volta ao centro das atenções pela decisão francesa de proibir o véu das muçulmanas nas escolas — sim, porque trata-se disso, já que é tolerável você usar uma cruz escondida por debaixo da camisa, e é impossível vestir o véu por dentro do crânio. Há também o filme de Mel Gibson, que dizem excitar o ódio religioso (contra os judeus), quando não passa de uma película sobre o proverbial sofrimento de Jesus, que exalta a fé dos católicos e é, nesse sentido, fervorosamente católica e talvez a maior contribuição a essa fé desde a Contra-Reforma. Evidente: as pessoas não estão nem aí para discutir o filme em si, isto é, como Gibson escolheu filmar sua história, que tem aspectos muito interessantes: o in medias res, o recurso pontual dos flashbacks, o ousado emprego do aramaico e do latim como verossimilhança e distanciamento, a arte de Rembrandt e Caravaggio na construção das cenas, etc. Não, vamos nos pegar nessa de anti-semitismo. O tipo de polêmica de uma época demonstra o nível mental das pessoas dessa mesma época.

Portanto, é adequado ouvirmos uma voz mais branda e inteligente (não "tolerante"¹). Eu estou me referindo a Frances Yates², em seu livro The Occult Philosophy in the Elizabethan Age, bastante recomendado em tempos como os nossos, de pessoas tão refinadas e compreensivas, cujo exemplar mais destacado é esse tipo delicadíssimo, Mr. Bush. Ela comenta a expulsão de judeus e muçulmanos da Espanha, logo em seguida à tomada de Granada, para que a nação ficasse "toute Catholique": "Assim, como tão freqüentemente, a Europa tomou um caminho equivocado e desperdiçou recursos espirituais que poderiam ter sido usados de modo construtivo". E hoje usa-se sem muita vergonha a grande tradição do ensino laico como desculpa para censura.

Essa situação cria um estado psíquico de desespero, brutalidade e, na prática, o vale tudo.

Repisam que a situação religiosa é confusa e complicada, mas omitem o fato de que há fundamentalistas de todas as cepas, e que eles são muito parecidos quando o assunto é ódio, um sentimento que não só conhecem bem como cultivam. A resposta que vemos oferecida é a limitação das liberdades e direitos civis, jogando-se pela janela o que levou séculos para se construir, assim como arremessam nos últimos anos a ONU, a diplomacia internacional e o bom senso ao cesto de lixo. Estamos, meus caros e minhas caras, num mundo de tecnologia acéfala e de brucutus com armas devastadoras; o pior: talvez suas armas mais mortíferas sejam mesmo as mais primitivas de todas: a mentira, a coerção, a violência, a ignorância. A Idade Média não foi a idade das trevas. Atualmente somos muito melhores nisso de trevas: ignorantes, genocidas e infelizes.


chamaeleonte@yahoo.com

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¹As pessoas gostam de usar o verbo "tolerar" e o substantivo "tolerância". Meu desagrado pessoal consiste na flagrante inutilidade de ambos, pois você tolera apenas quando é completamente mal-sucedido em compreender ou apreciar.
²Yates, Frances. The Occult Philosophy in the Elizabethan Age, Routledge Classics, London & New York, 2003.