Adriana Versiani

 

O dia em que Deus derramou uma lágrima no céu de Realengo

[breve relato de uma criança que sobreviveu à chacina]

 

naquela hora não havia para onde correr

então, desesperada, ela implorou:

— não atire.

e ele respondeu:

— não existe saída, agora é sua vez de morrer.

 

 

 

 

 

Afonso Caramano

 

Realengo

 

   Quando a fala

              de si

           não fala

        no silêncio

              bruto

       isolamento

    qual um grito

   que atravessa

   feito bala

   a invisível

           redoma

  do que em vida

  já é coma

  não diz

  de si

        a couraça

 

  estilhaça

  a alheia

          vida

  como quem

     de si fala

  a linguagem

  do horrendo

  espetáculo

  no manifesto

  excesso

  da violência

  a matar

  o descontínuo

             de si

  na dor que

      não sente

      não pode

      não vê

 

  senão

 naquilo que não é

        como forma

           a devorar

            a própria

                  vida

 

 e as vidas

 que a alimentam

 diante do perplexo

              lamento

 de todos

 que olhamos

   no espelho

     e não nos

              vemos.

 

 

 

 

 

Anderson Fonseca

 

Conselho para um anjo

 

Ouça, criança, hoje serás como os anjos, dotada de asas esplêndidas, livre a correr o céu. E, assim como os anjos, serás livre, por isso, todos os homens terão de você ciúme e inveja, porque Deus lhe concedeu o poder de se igualar a Ele, enquanto a nós foi dado somente olhar para cima e lembrar. Ó, criança, não queiras retornar, pois hoje, como anjo, teus olhos só contemplam Deus. Ó, não queira mais, não mais, contente-se em ser puro e belo e, viva essa sua liberdade até que Deus o dê de volta a mim.

 

 

 

 

 

André Ferraz

 

Entre a roda

 

Samsara!

Você está em cima ou em baixo?

Por cima ou por baixo?

A cabeça atingida pela bala avisa:

— Alguém está na roda

Sozinhos não vemos a nós mesmos,

Nem os outros.

Doze vidas, doze apóstolos.

E um chamado de redenção,

Aquele que a roda ainda massacra

Como a borboleta à bicicleta e o tambor do revólver.

 

 

 

 

 

Beatriz Bajo

 

curinga

 

Qualquer lugar que se abre no sempre de todo dia

 

entre violares e violinos,

 

          em nome de uma gente atravessada pelo medo

pela miséria pela bala perdida

          piedade é o timbre estridente entre a corda

e o arco da canhota medida que pede

a um sol poente

opaco

não refletido no olhar que se entreabria

diante do vermelho vivo transbordando

           olhos vermelhos

           sala encarnada

           peitos escarlates

espar r amados esparramantes  inflamaram

           manhã desajeitada pelo sangue diluído

           magma lágrima

           senhora, não ignore o que se cria na perfeição preterida

desaprendida regência daquele abraço prometido

tantas vezes tido

dedilhado em papel machê que não envelhece

           tudo é cria entre acordes e acordares

nascidos da mesma armadilha

           lambidas de gatilho

leite oblíquo fugindo pelo ladrilho

ensopado

           carretéis ao revés

           piedade entre bocas

sob os pés

mesmo idioma hasteado

axioma que reverbera pelo blues

sem máscara de agudeza estendida

que se tange no ser e converte pela mão

vem morado nas digitais consteladas  de nação

           mergulho na brancura convicta

que não deflora

 

 

                   indecorosamente

 

 

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                                          migalhas apavoradas pelo pó de agoras

 

 

continua >>>

 

 

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