BALADA PARA UM AMOR DEFUNTO

 

 

Ela mija na minha cova. Sinto que é ela, que mais uma vez chega, de mansinho, antes dos primeiros vermes.

 

Ela reza:

 

"Filho da puta, fraudulento, que amor era esse, fogo que arde um caralho, deveras sente?"

 

Por vingança, reescreveu meu epitáfio.

 

Eu havia entregue à desalmada, num envelope lacrado, a frase pretendida. Naquele mesmo dia em que comemos o nosso próprio fígado envenenado, foie-gras de todas as ressacas, rancores do cão, bílis, bílis, bílis, quizás, quizás, quizás.

 

Ficou ridículo meu epitáfio, como toda carta de amor. Vingança, vingança, vingança afinal.

 

Bebo o mijinho dela aqui debaixo dos seus pés. Ela, viúva dadivosa, pintou as unhas cor-de-terra.

 

Veio com uma saia linda, igual àquela da moça do filme Blow up, que eu dizia que gostava. A fela-da-puta deu pra fazer meus gostos agora.

 

Não é tarde nunca para um cão vadio.

 

Cortou os cabelos. Aqui debaixo a sensibilidade para observar essas coisas também aumenta.

 

O mijinho escorre minha cerveja possível e tem gosto de choro antes de foda.

 

O primeiro verme chega e fala:

 

"Amaste de verdade?"

 

"De muito", digo.

 

"Não sinto o cheiro disso na carne!", o verme provoca.

 

"É fragância que passeia com a alma", arrombo.

 

Ela abre um vinho barato.

 

Liga o cd system.

 

"Requiem pour un C..."

 

"Relax baby be cool".

 

"Partie perdue".

 

Só Serge Gainsbourg na tortura lá de cima.

 

Ela faz um picnic sobre minha cova.

 

Vinho com roquefort.

 

Os vermes se aproximam.

 

Ela em voz alta, sem citar a fonte:

 

"Quando o homem, com o seu piedoso senso de relatividade, olha pelo telescópio e se maravilha ante a imensidade da criação, pretende confessar que logrou êxito na redução do ilimitado ao limitado. Adquire, na verdade, um cruzamento óptico sobre a grandeza infinita de uma criação que lhe é insondável. Que importa se conseguiu pôr mil universos dentro do foco de seu telescópio microscópico? O processo de ampliação só faz ressaltar o senso de miniatura. Mas o homem se sente mais à vontade em seu pequeno universo, ou finge sentir-se, quando descobre o que jaz por trás das suas fronteiras".

 

O sétimo verme chuta: "Plexus".

 

Um outro metido: "Nexus".

 

O próximo: "Sexus".

 

"Em seu vestido persa bem justo, que combinava com o turbante, ela estava encantadora", lembro desse começo de livro não-sei-de-quem.

 

O sétimo de novo: "Plexus".

 

Ela cospe na minha cova, mas sem querer, pedaço de cortiça na garrafa.

 

A carne apodrece, os ossos viram pó, aqui jazz o amor.

 

 

(Episódio do livro Se um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo, Editora Fina Flor)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DA ARTEMISIA ABSINTHIUM E DOS FOGOS, OS FOGOS DE DENTRO

 

 

Naquela hora ali, menina, chegaste já bêbada e a casa também parecia incendiada.

 

Naquela hora ali, menina, a geografia das nossas origens sibilavam mais que os nossos sotaques.

 

Naquela missa de corpo presente te confessei punhetas anteriores.

 

Naquela prece, rezamos lentamente pelos supostamente traídos ligados ao nosso mundo, embora não acreditássemos que estávamos traindo quem quer que fosse.

 

Levius fit patientia*.

 

Naquela reza de joelhos, o boquete dos deuses.

 

Naquela minha cerimônia do beija-pés, a descoberta dos teus passos, além do número que calças... ainda guardado na memória. 

 

Naquela tua bucetinha menstruada o segredo de todos os amores e mares vermelhos.

 

Naquele corpinho, mon amour meu bem ma femme, sem depilar direito.

 

Naquele mato o segredo, os caminhos, as veredas por onde nos levam os pêlos.

 

Naquele momento a tua promessa desnecessária: mais na frente uma phoda cheirosa e sem pêlos teremos.

 

Naquela hora o fósforo riscou os pelinhos da tua buceta, depois que joguei absinto para lambê-la.

 

 

*a resignação alivia

 

 

 

(Do Catecismo de devoções, intimidades & pornografias, Editora do Bispo)

 

 

 

 

 

 

 

NO QUE CONCERNE AO LAPSUS LINGUAE

 

 

Aqui o lapso de língua diz respeito àquela criatura que preguiçosamente se debruça sobre a vulva ou o pau e não se devota, limitando-se a um mero favor sexual sem vigor ou alma. A burocratização do sagrado ato de sorver o objeto de desejo. Falta de manga na infância, no caso dos meninos; falta de espiga de milho cozinho, no tocante às meninas.

 

 

 

DA JUSTIFICATIVA ESPECÍFICA DA PEDAGOGIA DA MANGA

 

 

Chupar manga desde a aurora dos anos educa para o ato de sorver uma buceta com gosto e delicadeza. Lambuzamento sem cerimônia. Vezes só um fiozinho de fibra entre os dentes, como um pentelho; vezes o mergulho da face toda sobre a vulva amada. Chupar com gosto, deixar o nariz pleno daquele cheiro o dia todo, assim como o aroma preservado na ponta dos dedos. Evitar lavar as mãos para explorar, nos passeios, hedonismo do flâneur, o olfato na ponta dos mesmos dedos.

 

 
COMO SE ESCREVESSE UMA CARTA DE AMOR NUM EDIFÍCIO EM CHAMAS

 

 

Primeiro exercício:

 

...como na lição do velho Jota Cheever, amigo platônico incrível, mas sem exercícios de estilo [ou perobices de gênio], ora, carai, aqui vale a cremação e os degraus  do desespero, aqui vale a escada inútil, aqui vale o fogo nas vestais, nas vagabas e na mulher-abismo, como se escrevesse com sangue e gasolina o próprio incêndio, e ainda sobrasse fogo para o isqueiro do idílio, o último cigarro, o último gole, o último suspiro de Caryl Chessman, como se escrevesse uma carta de amor expressionista, depois daquela festa, uma missiva certeira, como um tiro de marido traído, uma escrita-réptil, sem deixar rabos, uma carta ridícula, brega, como todas as outras, selada ao cuspe da derradeira punheta, a carta ali, no lambuzo da munheca, longe do alcance da maldita, na febre do rato, na peste bubônica, na urgência de quem extrai uma bala, alojada no osso de um crânio cuidado frágil.    

 

 

Segunda tentativa:

 

Agora escrevo com o próprio sangue dela, o dedo indicador no tinteiro da buceta,

 

molho o dedo tantas vezes possa, opulência, menstruança, rio vermelho sob lua cheia...

 

o mesmo dedo que agora é lapiseira [a parede branca assimila a prosa]  pequenos veios escorrem lá nas pernas,

 

e do cuzinho também jorra,

 

o mar dos nossos problemas,

 

o gozo desce no taco, lambo tudo junto com as formigas diabéticas.

 

 

Terceiro tiro:

 

Como se escrevesse uma carta de amor, num jato em chamas e piruetas, rabiscando o próprio incêndio, entre ninfas analfabetas, uma carta bem sucinta, assonante, corizada, como quem chora todas as perdas. Uma rasura  em árabe, pelamor mais terrorista, na borra de café eu vi, vou me fuder, vou me fuder, não há mais tempo, vou me fuder, antes de enviar essa missiva.

 

 

 
 
 
 
Xico Sá, 1963, jornalista e escritor, nasceu no Cariri, foi criado no Recife e vive atualmente em São Paulo. Escreve para a revista da Folha, Trip, Tpm, entre outras publicações. Seus livros: Modos de macho & Modinhas de fêmea (Ed. Record), Divina comédia da fama, nova geografia da fome (livro de reportagem de estrada, Editora Tempo d'Imagem), Paixão Roxa (haikais, Ed. Pirata), Se um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo (idílio, Editora Fina Flor) e Do Catecismo de devoções, intimidades & pornografias (Editora do Bispo). Publicado nas coletâneas: Boa Companhia-Crônicas (Cia. das Letras), Os cem menores contos do século (Ateliê Editorial) e Dentro de um livro (contos, editora Casa da Palavra). Na música, foi baterista do grupo Anjos de Klee (Recife) e tem várias parcerias com o Mundo Livre S/A, banda do mangue beat pernambucano. Escreve O Carapuceiro.