I D E N T I D A D E S
 
 

A caixa de fotografias antigas se abriu, e eu tropecei no meu passado. As fotos espalhadas pelo chão, me mostraram a menina que eu fui, fotos amareladas pelo tempo, fotos de primeira comunhão, vestida de branco, coroa de rosinhas na cabeça, véu pelos ombros, filha de Maria, ensaios na igreja, fotos do curso primário, do quarto ano. Naquele tempo tirava-se diploma de quarto ano, depois se fazia curso de admissão para o ginásio, a professora me entregando um livro de histórias de prêmio de aplicação, a foto na mesa com o globo ao lado, de uniforme, tudo tão apagado, tão feio, tão amador.

Espalhei as fotos pelo chão do quarto e fiquei ali olhando o passado e os desvios do tempo, de criança boazinha e comportada me transformei na mocinha cobiçada por todos os rapazes da escola que comentavam que eu era ótima, todos me queriam, tanto, que às vezes me via sufocada de tantos beijos gulosos, tinha a impressão de que queriam derramar em mim todo o amor do mundo; iniciaram-me, bem desajeitados é lógico, nos primeiros passos do sexo, como aceitar carícias nos mamilos, percorrer com a mão ansiosa os caminhos até o sexo, eu me gabava de minhas conquistas, tinha todos os homens na mão, e minhas amigas diziam, lógico, você é muito dada, era inveja pura, eu era alegre, popular, tinha amizade com todo o mundo, mas era verdade, eu tinha essa mania de experimentar sensações, como fulano beijava, como sicrano apertava, depois esquecia, não me apaixonava, e aqui está a Clotilde a beata, cabelos escorridos e longos de crente, gola apertada no pescoço, meias soquete, dura como um pedaço de pau, na foto da turma, e ela me dizendo, ele se matou por sua causa, se jogou em baixo do bonde Como eu ia adivinhar que ele estava apaixonado por mim, apenas um colega de classe, nunca sequer havia tocado a minha mão, era tímido, tão tímido que ficava roxo como beterraba quando me via, depois, muito depois, a Matilde, a de vermelho na foto, olhos verdes, corpo de atleta, pé no chão, me contou, imagine, por sua causa coisa nenhuma, a Clotilde é louca, ela era gamada por ele, uma vez ele a agarrou no corredor da escola, enfiou os dedos pelo seu corpo, deixou a coitada imaginando coisas, ele era esquizofrênico, a mãe dele contou para o padre na missa de sétimo dia, era vigiado o tempo todo, e eu passei o restante da minha adolescência temendo que mais alguém se jogasse debaixo dos bondes por minha causa, até parei de beijar um pouco os namorados, fiquei um tempo com o Osmar, me transformei não em garota muito séria, não estava no meu sangue, restringi-me um pouco, mas não gostei, e resolvi voltar ao que era, depois quando tiraram os bondes da cidade achei que o perigo havia passado, retornei ao desejo antigo de experimentar bocas e mãos de rapazes, e tudo o mais que eles possuíam, o que custou uma fama nada atraente para uma menina do interior, a ainda tive que ouvir da Clotilde, já está na hora de ter juízo, você virou uma galinha. Minha mãe ficava louca comigo, me levava a sessões espíritas dizendo que só podia ser encosto de uma antiga prima que se perdera, meu pai até que achava divertido e minhas amigas escreviam diários contando todas as proezas da avançadinha da turma.

Osmar, de short na foto, bonitão, cara de artista, em quem dei um retumbante fora, nunca me perdoou, foi a gozação da cidade, cara você virou bobo da corte, cair na mão da Clarisse. Flora, a de roupa verde, adorava uma roupa justa, sexy, como ela dizia, um Martini com azeitona, a gente nunca imagina o que será do futuro quando se é adolescente, e Flora, a Flora ruiva, tipo Rita Hayworth, grandalhona, gostosa, virou alcoólica, e não parou só no Martini, todas as noites algum dos rapazes tinha que levá-la para casa, e sabe lá o que acontecia nesse trajeto, de tão bêbada, acabava passando a noite pela rua, ou dentro de algum carro, depois ficava uma semana sem aparecer de vergonha, mas na época, Flora era apenas, a gente achava, uma desmiolada, que mais tarde iria colocar a cabeça no lugar.Foi a primeira garota da cidade, a usar heroína, LSD e todas as drogas da moda, e a primeira e única a morrer de overdose. Flora, a caçadora da felicidade. Esta outra é a Bia, loira, parecia um cromo, nadadora, corpo lindo, no alto do trampolim era uma deusa. Recriava saltos e arabescos dos filmes de Esther Williams. E foi num salto anjo que quebrou as asas, caiu de prancha na piscina, todos os vasos capilares se abriram, teve uma trombose fulminante aos dezessete anos, ficou paralítica, nunca mais andou, nem voou. Glória, morena, longos cabelos negros, a índia, como a chamávamos, logo depois do acidente da Bia se afastou do grupo, nem quis mais ver a amiga, disse que não ia agüentar, hoje eu compreendo a reação esquisita, o amor secreto pela amiga, logo depois mudou de escola, desapareceu das nossas vidas. Dessa foto restamos eu, a Zilda e o João, eterno apaixonado pela Zilda, onde quer que estivéssemos, lá estava ele, assumia a culpa de todas as nossas estripulias no curso colegial, recebeu inúmeras advertências por nossa causa, mas ganhou a Zilda, casou com ela, casei com ela porque não andou de mão em mão como você, me disse o João, acho que por despeito, afinal eu nunca havia ficado com ele, com aquela boquinha de chupar ovo, pensando bem, acho que foi o único da turma que eu dispensei, depois proibiu a Zilda de andar comigo para não ficar falada, eu a via de vez em quando, já não tinha assunto com ela, hoje é mãe de cinco filhos lindos, engordou ficou obesa. Eu, mudei, mudei para a capital. Aqui me apelidaram de garota de programa. É como chamam as meninas "dadas" do interior. Não posso dizer que não me divirto encontro caras de todo o tipo e escolho os mais sarados às vezes, e os mais cheios de grana outras vezes. Tenho um belo apartamento decorado por um amigo, um veado famoso, cheio de estrimiliques exagerados, santa pra lá, santa pra cá, eu acho que esses trejeitos fazem parte da profissão deles, forrou as paredes do meu quarto de brocado dourado, botou uma lareira falsa, linda, na parede da sala, é elétrica, acende na tomada e tem umas chispas de fogo que imitam bem as chamas, graças à minha profissão entrei de pé direito na vida, queria que as meninas da foto me vissem agora. Aliás, outro dia topei com a Glória, agarrada com uma loira baixinha, mas ela fingiu não me reconhecer. Talvez não tenha reconhecido mesmo, eu soube que era ela pelos cabelos de índia.

 Meu preço é sempre o mesmo e alto, comigo não tem liquidação e mesmo que eu quisesse a agência não deixaria, é uma proteção para as meninas, dizem os donos. A minha mãe já se conformou com a minha liberdade, mas eu compenso, mando muita grana pra ela. Bem, valeu a pena recordar o passado, porque do futuro ainda não tenho fotos. Só queria encontrar o Osmar mais uma vez na minha vida, juro que pediria perdão das minhas gozações, e quem sabe poderia até desistir dessa minha vida maluca, e virar a Zilda, gorda e cheia de filhos. Bem, o jeito é guardar essas fotos, sempre resta o passado. Hoje vou ver um homem casado, me ligaram da agência, o cara quer eu vá de preto sem roupa de baixo, esse promete, bem, ainda gosto dessas sensações, ainda tenho corpo pra me mostrar pelada, à meia luz ainda sou muito bonita, homem casado gosta de sexo proibido, como eles dizem, principalmente os do interior com a cabeça de alfinete que eles têm, imaginem se existem proibições nesse campo, dizem que as esposas não aceitam sexo fora do papai-mamãe, não sei até quando vou ficar nessa vida, só se eu encontrasse o Osmar e ele me perdoasse juro que esqueceria essas coisas que tenho com o sexo, e ficaria só com ele. Bem está chegando a hora, vou para o hotel, o cara já deve estar me esperando.

Meu Deus, nunca esperava que fosse ele. Não pude recusar, perderia meu emprego, não está na hora de procurar outra agência, eles estão dando preferência para as mocinhas de corpo liso, cabelos longos, os meus são crespos, tive que me submeter, tive que ouvir ele falando que sempre me desejou, que eu o deixava louca, que todos os rapazes contavam como eu era quente, gostosa, que dançava em cima deles, diz que guardou tudo na memória, e então não agüentou mais, o amigo deu o endereço da minha agência de modelos, a Zilda já não faz mais sexo, dizia, talvez, pensei, para compensar o chifre que estava pondo nela, depois está tão gorda não dá mais tesão, sua vagina está larga de tanto filho, continuava ele, eu passei a vida sonhando com o seu corpo, quero que fique essa noite comigo, como ficava com o Osmar, foi ele que encheu a minha cabeça de desejo por você, imaginem o Osmar, então ele também gostava de mim, passei a noite com ele desejando o Osmar, não traí a minha amiga, sou uma profissional, eu lhe pago por fora se você satisfizer minhas fantasias, todas, quero você em todas as posições, trouxe até um livro de sacanagem, eu reclamei, calma com o ardor meu caro, não é bem assim, então ele me agarrou, não se faça de santinha, sou eu o João, lembra-se? Ande logo com isso, estou morrendo de tesão, mordeu-me os mamilos, exigiu o meu sexo, explorou-me em todas as posições, exibiu sua masculinidade agressivo e orgulhoso, e quando finalmente nos apartamos, ofegante e satisfeito, arrematou com um tapa em meu traseiro, você é mesmo a safadinha da turma, então eu perguntei sobre o Osmar, ele falou com desprezo, ah, ele, casou com aquela certinha, a Clotilde, Clotilde, a foto dela me veio à cabeça, com ela, ela, a mais feia de todas, e nós quando nos veremos de novo, venho duas vezes por mês à capital, quero essas duas vezes para mim, cara, tudo o que me falaram de você era verdade, não marque nada no seu caderninho, seu caderninho deve ser lotado, não? Sim está lotado, lotado, não dá para ver você mais, e assim que o deixei, corri para o banheiro, vomitei, sangrei, feito uma cadela estuprada, e agora, estou aqui em casa sozinha, revendo essas fotos amareladas, tão gastas pelo tempo olhando meu rosto descorado pelos anos, não sei mais nem como eu era, mas garanto que nenhuma das minhas amigas teve uma vida mais divertida que a minha. Olho o céu estrelado daqui do meu apartamento do vigésimo andar, sempre tive atração por altura, deve ser porque não tenho raízes, não pertenço a lugar algum, cada noite me aposso de uma nova identidade. Quem diria, o João apaixonado pela Zilda, transando comigo depois de todos esses anos, me torturando, tripudiando sobre o meu corpo, se vingando, mas esquecendo de que qualquer espécie de sexo me atrai, está no meu sangue.

Como todos os dias depois de um encontro, o telefone está ali à espera da minha decisão, com uma ligação mudo a minha vida, volto para o interior, às minhas origens, recobro a minha individualidade, e então, com a cara da Clotilde me olhando de frente, decido. Ligo para a agência, Lola, marque dois homens casados por dia para mim, todos os dias da semana, até o ano que vem, até o fim de minha vida.

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

QUERIDA AMIGA

 

 

Roma, 20 de Outubro

 

Querida Ana.

Como vai você? E a sua vida?

Sinto a sua falta. Tenho a sensação de estar sem meu braço direito. Por vezes o remorso atormenta-me o coração. Só por breves momentos. Não escolhemos nossos atos. Não decidimos sobre eles. Principalmente quando se fala de paixão.

 

No início

 

Quando me lembro do acontecido, meus sentidos todos, minha sensibilidade, se inflamam, sinto-me uma fêmea no cio. Tenho orgasmos espontâneos. Revejo-me seduzindo o seu Fábio. Pelo olhar, pelas atitudes, pelas roupas. Agora posso falar livremente sobre isso. À distância, como se eu estivesse falando ou lendo sobre outra pessoa. Como se fossemos três desconhecidos. Uma passagem, que se nos custou caro, deu-nos muito prazer. O prazer da liberdade.

 

Você tentando descobrir se ele a amava realmente. Quase desejando que a traísse. Não sabia porquê, apenas desconfiava. Hoje sei, desejo e amor não se identificam. A paixão sim, é o desdobramento do desejo, a conseqüência deste, o alimento da fantasia que nos leva muitas vezes à frustração. Ou ao cadafalso.

 

Naquele primeiro dia, ensaiei meu número muitas vezes. Assim que me deitei sobre o sofá do consultório, iniciei a minha performance. Desde o primeiro cruzar de pernas. Ele não se surpreendeu, ou fingiu, quando descobriu que estava nua por baixo do vestido vermelho-sangue. Talvez ele esteja acostumado com esse tipo de paciente, pensei, afinal é psiquiatra. Porém, ao deslizar minhas longas unhas sobre as meias de náilon, percebi que se agitara na cadeira. Permiti que ele visse meu sexo desnudo por alguns segundos. Não interrompi as minhas queixas sobre a minha pretensa depressão. E no final da consulta, ao descruzar as pernas, abrindo-as o suficiente para uma visão total, percebi gotas de suor em sua testa. Não entendi, porque não me questionou. Teria percebido o nosso trato? Ao me despedir, fingindo timidez, dei-lhe a minha mão quente e senti a sua mão gelada. Minha querida amiga, você nunca deveria ter me feito esse pedido. Estremeceu tanto a nossa relação!

 

Na segunda consulta, lembra-se? Eram duas por semana. Vesti-me numa armadura. Um macacão inteiriço, de mangas compridas, escondendo todo o meu corpo. Apenas os mamilos despontando agressivos sob a blusa grossa. Quando fingi tropeçar no tapete, e ele tentou segurar-me, virei-me propositadamente e ele teve meu seio na mão em concha. Estranhei a sua reação. Descaradamente, apertou-me os mamilos com as pontas dos dedos e levou-me até o sofá. Tive medo, permeado do desejo de gostar daquele corpo másculo, de que fosse possuir-me naquele exato momento. Porém, abriu o seu caderno de notas e iniciou a sessão. Querida amiga, um homem de aço. Mas se pretendeu excitar-me, conseguira. O feitiço virava contra o feiticeiro. Como lhe contar isso na época? E mais excitada fiquei ao notar que ele não conseguira esconder a sua masculinidade sob a calça esporte. Falamos, ou melhor falei sobre a minha horrível solidão, discursei sobre a minha necessidade de um companheiro, olhar fixo em seu sexo. Não me sentia devassa, a luxúria acalma, e notei que despertara seu apetite carnal. Porém,

 

Minha amiga, não sei se devo continuar. Talvez você não esteja mais interessada. Lembro-me de sua tristeza ao descobrir que eu me entregara. Responda-me, diga-me qual é a sua vontade. Eu a respeitarei. Eu a farei como sempre fiz.

 

Digo-lhe que Roma está linda. É abril, o sol brilha, a cidade floresce.

 

Espero sua resposta.

 

Eva.

 

 

Roma, 10 de Novembro

 

Querida Ana.

 

Bem, pela sua resposta, devo contar tudo. Dar-lhe a minha versão para você comparar com a dele. Por quê? Isso se deu há tanto tempo. Qualquer versão que ele lhe desse não seria aceita. Não foi esse o trato? Mas se você assim o prefere. Conto-lhe agora, para provar que tudo terminou, e estou pronta a recebê-la a qualquer hora.

 

A terceira e última consulta, minha querida, foi a definitiva. Descobri então que o sexo comanda o mundo. Descobri o medo. Do abismo em que ia me atirar, do olhar de fera daquele tigre de andar manso, do brilho que senti sob o dourado de suas pupilas, temor daquele corpo que me subjugaria. Minha querida, o medo é um lado do prazer. O asco também. A labareda da lareira acesa dourava o seu corpo, quis morrer de deleite naquele sofá das confidências. Mãos que deslizam procurando, orifícios que se rendem, línguas que se procuram, membros que se interpenetram, o fascínio do ventre duro, a doce ternura dos seios, corpos se dobrando, joelhos em alavanca, e finalmente o gozo. Chamas dançando em suas costas, a fome saciada, o ponto G encontrado. Esse é o ato erótico do sexo? Por ele, Eva perdeu o paraíso, rendeu-se ao sofrimento da maternidade, Adão sujeitou-se à agonia, e essa Eva, eu, esqueci minha amiga, do nosso intento. O desejo é mais forte que tudo. Depois da sede estancada, o julgamento. A frieza. Dois brinquedinhos nas mãos do deus do amor. Eros? A flecha certeira no meu coração, não a dele, mas a sua, o arco estava em suavocê — que me testou covardemente. Entretanto foi desse ato de paixão que descobri o verdadeiro amor. A preferência pela mão que acaricia levemente, o corpo sem pêlos, a textura da pele, as pernas o gozo despertado pelo tato. Ele não entendeu quando o agradeci. Por nós duas. Demorou a perceber o que havia feito. E que, através desse ato, libertou-nos. Mostrou-nos a saída do labirinto. Não adiantei mais nada, e você lhe revelou tudo. Bem, o escândalo foi forte. Os diferentes ainda são apedrejados. As bruxas queimadas. Não aqui em Roma, essa cidade aberta, minha cara, onde o tempo tudo cicatriza. Espero você. Ardentemente. Você e sua fragilidade. Diga-me quando virá. Comprarei flores, enfeitarei a casa. Queimarei incensos a Shiva. Depois de todos esses anos, nosso quarto está à nossa espera.

 

Sua Eva.

 

 

 

 

(imagens ©olyjanka)
 
 
 
 
 
 
Nilza Amaral (Piracicaba, SP). Ficcionista, publicou as novelas O dia das lobas, Modus diabolicus, Amor em campo de açafrão, O florista, entre outros. Mais no Klick Escritores.
 
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